Textos aristotélicos – Demonografia de Lucifer

Textos aristotélicos – Demonografia de Lucifer
      Demonografia de Lúcifer, Príncipe-Demónio da Preguiça
      A vinda ao mundo de uma criança ideal
      Há muito tempo, numa pequena vila situada a alguns quilómetros a sul de Oanylone, uma esposa e um marido preenchidos, felizes no amor e que se contentavam com o pouco que tinham, deles nasceu um pequeno bebê a que chamaram Lúcifer. Ambos os pais, Lúcia e Fernando viviam em felicidade, não nadavam em ouro, mas o produto do seu gado era o suficiente para os alimentar. Eles sempre quiseram ter um filho e, naquele dia memorável de alegria, todos os seus desejos foram satisfeitos. Foi assim que Lúcifer que começou a sua vida, no amor mais querido e sob a protecção de dois pais carinhosos e muito dedicados do seu cuidado.

      Lúcifer crescia demasiado depressa para o gosto dos seus pais, mas nada podia perturbar o perfeito equilíbrio familiar que começou com a sua chegada e Fernando não deixava de louvar a gentileza e benevolência do seu filho. Lúcia não poupava elogios quanto às suas capacidades e delicadeza. O seu pai e a sua mãe estavam tão orgulhosos de ter trazido ao mundo este menino tão sábio, tão amoroso que nunca deixavam de se maravilhar com ele. Foi quando ele chegou à adolescência que compreenderam que Lúcifer estava reservado a um grande destino.
      Os jovens amigos de Lúcifer queriam sempre passar o tempo com ele, era uma boa companhia e tinha a confiança de muitos. Recebia sempre elogios daqueles que conhecia e os seus pais tinham poupado até ao último centavo para lhe permitir uma educação correcta. Fernando sempre disse que não queria que o seu filho fosse um simples camponês e mantinha os sonhos mais doces em respeito a ele. Lúcia compartilhava a mesma visão e ambos deram o que tinham pelo seu filho. Lúcifer era honesto, era realmente bom, condescendente e um verdadeiro amigo, ele colocava em prática todo o amor que tinha recebido dos outros. Um nobre cavaleiro, Calistan, que governava um domínio longe da aldeia ouviu falar sobre essa criança tão bem descrita por rumores. Ele decidiu encontrá-lo e certificar-se que não lhe tinham contado fantasias. Em toda a aldeia ele interrogou os moradores e todos responderam a mesma coisa:
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Aldeãos: Lúcifer o bom? Você o reconhecerá, é um belo e jovem homem com um olhar benevolente. Você pode ficar aqui, meu senhor.

 

O valente cavaleiro não tardou a cruzar-se com o olhar cheio de amor do jovem rapaz, não lhe tinha tido que perguntar se era Lúcifer porque os olhos do menino não faziam mentir a sua reputação. Ele sugeriu que fossem juntos ao encontro de seus pais, porque desejava-lhe oferecer um belo futuro. Calistan explicou a Lúcifer que tinha procurado durante muito tempo por um jovem escudeiro, ele queria-o justo e corajoso, bom e honesto; e a reputação do jovem rapaz tinha-o atraído até ali. Assim, propôs a Fernando e a Lúcia levar com ele o jovem adolescente e ensinar-lhe a cavalaria, ao que todos os três concordam sem pestanejar.

A aprendizagem da virtude e da fé

Lúcifer acompanhou o cavaleiro ao seu domínio para uma aprendizagem que durou vários anos. Numa cerimónia liderada pelo seu guia espiritual, foi nomeado escudeiro e comprometeu-se a servir o seu novo mestre, respeitando os valores da cavalaria e vivendo sempre na virtude. Calistan propôs-se fazer daquele jovem rapaz um grande cavaleiro e, para começar, falou-lhe de Oane:

 

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Calistan: Meu jovem amigo, tu conheces Oane?Lúcifer: Ele foi o fundador da grande cidade de Oanylone, certo?Calistan: Não foi somente isso meu amigo, foi uma grande figura do nosso mundo porque é graças a ele que temos uma alma! Vou contar-te a sua história…

 

E Calistan contou-lhe a história dos homens, como se sentiam abandonados por Jah e como se sentiam privados de talento, como se consideravam marginalizados por causa da inferioridade da qual se imaginavam vítimas. Contou como Jah reuniu as suas criações e a pergunta que lhes colocou. Ele explicou como uma criatura se chegou à frente e deu a sua resposta, então, Jah ordenou a Oane que lhe desse outra. Finalmente, o cavaleiro revelou-lhe quais foram as palavras de Oane que nos deram o estatuto de filhos do Altíssimo. Lúcifer ficou sem palavras diante deste homem que conseguiu compreender o mundo, ele mesmo compartilhava essa visão desde há muito tempo. Ele nunca tinha compreendido do que se tratava, mas Lúcifer estava certo que, agora, tinha encontrado as palavras para descobrir como se sentia. Calistan então contou-lhe como Oane, agora líder espiritual, conduziu os homens por uma grande planície, durante muitos anos de viagem. Seguiu essa história descrevendo a morte de Oane e a aceitação que tinha tido, terminando com a criação de Oanylone e o culto consagrado a Oane por aqueles que veneravam o Altíssimo. Lúcifer ficou tão encantado e tocado que procurou aprofundar o seu conhecimento de Oane e dos primórdios da humanidade por muitos anos, além do seu trabalho como escudeiro de servir o cavaleiro.

O jovem escudeiro mantinha uma servidão impecável, com respeito a Calistan e nunca criava dificuldades, não apenas para lhe ceder o lugar de honra em todos os lugares, mas também para lhe obedecer ou para lhe levar o seu escudo. Esta grande subordinação permitia-lhe abraçar o desejo de fazer-se digno da cavalaria, pelas suas acções de valor e boa conduta, mas também pela virtude, essencial para se tornar um cavaleiro perfeito. Lúcifer venerava o Altíssimo e partilhava esta devoção com o seu cavaleiro e, ao mesmo tempo que compreendia o sentido da vida e rezava com fervor, ele também treinava o combate e o uso de armas. A sua aprendizagem foi longa e difícil, durante mais de sete anos ele trabalhou com afinco, comportou-se como um perfeito cavaleiro e, para todos os seus professores, ele era um aluno talentoso. Um dia, enquanto conversava com o seu mestre, ele perguntou-lhe:

 

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Lúcifer: Mestre, se o sentido da vida é o amor e se nós somos todos iguais perante o Altíssimo, porque nós treinamos para combater? Não deveríamos explicar a vontade de Jah? Partilhar o nosso amor em todas as circunstâncias?Calistan: Meu jovem escudeiro, Jah ama-nos e nós O amamos, mas Ele deu-nos a opção de compreendermos isso, e portanto, de negar este estado de amor! Ele também deixou conosco a Criatura que deu a primeira resposta com o fim de nos tentar e de nos permitir fazer uma escolha livre. Assim, muitos, infelizmente, seguem os preceitos desta infame Criatura.Lúcifer: Mas, neste caso, não nos deveríamos contentar em matar a Criatura?

Calistan: Não, meu jovem escudeiro, a morte seria desrespeitar a vontade de Jah e acima de tudo isso, seria impor o amor do Altíssimo pela força. É indispensável para compreender que Ele nos ama e a quem nós devemos amar de volta.

 

Ambos conversaram assim e Calistan explicou porque o cavaleiro deve defender a justiça, a honra e a bravura, e fez-lhe compreender que um verdadeiro e valente cavaleiro deve proteger os fracos e torcer o pescoço da injustiça. Assim, eles discutiam mais e mais e durante todo o tempo que Lúcifer acompanhou o seu mestre. Para terminar a sua formação, depois de dez longos anos de aprendizagem no cargo de escudeiro ao serviço do cavaleiro, este último levou-o a léguas do seu domínio para ver a cidade de Oanylone que tanto tinham falado. O jovem homem estava longe de imaginar o que Calistan lhe tinha reservado.

A cavalaria e a glória de Jah

Calistan e Lúcifer cavalgaram até ao sopé da cidade de Oanylone, já bastante contaminada pelo vício e o pecado. Se o cavaleiro tinha contado a história desta cidade, ele não se tinha esquecido de esclarecer o que ela se tornou e como os vilões e outros bandidos tinham o poder de lei por vezes. Lúcifer permaneceu maravilhado com a imponente cidade, os seus olhos ficaram impressionados pelo símbolo que representava e sentiu no fundo de si a inveja de devolver a este lugar o seu esplendor lendário.

Calistan levou assim Lúcifer até ao túmulo de Oane e, perante aqueles que antigamente faziam de sacerdotes, começou uma grande cerimónia. O cavaleiro considerou naquele dia que não tinha nada mais para ensinar ao jovem homem tornado razão e força. Lúcifer, no alto dos seus vinte e cinco anos, foi assim nomeado cavaleiro por Calistan. Este último ofereceu-lhe as terras que possuía em Oanylone e um pecúlio considerável com a missão de corrigir os erros desta cidade com o passado tão brilhante. Lúcifer sentiu-se então investido de uma missão divina e, pela primeira vez, orgulhoso do que tinha alcançado até agora.

O cavaleiro Lúcifer instalou a sua fortaleza no domínio que lhe foi dado, ele pregou na cidade para encontrar homens e mulheres que quisessem acompanhá-lo na sua vontade de melhorar a imagem de Oanylone. A sua presença e as suas grandes qualidades, juntas com a sua virtude e a sua fé, permitiram-lhe convencer muitas mais almas do que pensava. Lúcifer fundou assim a Ordem dos Justos de Oane e propôs-se defender a justiça, de proteger os fracos e de combater a miséria por todos os meios que ele dispunha. Em alguns meses, tornou-se uma figura central da cidade, assustando os ladrões e provocando a admiração dos poderosos. Foi recebido pelos governantes de Oanylone que lhe deram carta branca para que corrigisse as injustiças. Os seus homens espalhavam a história de Oane e explicavam o sentido da vida enquanto que ele, armado da sua coragem, lutava para fazer melhores os homens maus com que se cruzava. Lúcifer jamais deu provas de violência imprudente, ele lutava só em último recurso e unicamente para se defender ou defender o fraco contra o mais forte. Ele teve o cuidado de não fazer justiça por ele mesmo e trabalhar em conjunto com as autoridades de Oanylone, assegurando-se que a justiça fosse dignamente prestada.

Em apenas cinco anos, a Ordem dos Justos de Oane tornou-se indispensável por todo o Reino e os homens que se uniram a Lúcifer partilhavam todos da mesma fé e do mesmo código de honra, ele mesmo investiu cinco cavaleiros e, em toda a comunidade, os Justos eram amigos de verdade. Calistan vinha visitá-lo regularmente e estava orgulhoso do que tinha alcançado o seu antigo escudeiro. Os seus pais foram também atingidos pelo destino do filho mas, apesar da sua insistência, recusaram-se a vir viver no seu domínio. Eles explicaram-lhe que deveriam de trabalhar porque Jah lhes deu a terra e que aproveitar a ociosidade não lhes traria felicidade. Lúcifer, com pesar, compreendeu a sua decisão e ficou feliz de os acolher cada vez que eles quisessem. A cidade de Oanylone parecia curar os seus males e os Justos eram temidos e respeitados. Glorificavam a Jah e levaram os homens a ver o amor que Jah tinha por eles, não pela força mas pelas suas acções e pelas suas palavras. O culto do Altíssimo nunca foi tão forte em Oanylone, excepto depois da morte de Oane.

Inevitavelmente, nestes tempos cheios dos mesmos problemas, Lúcifer atiçou o ódio e o espírito de vingança. Numerosos eram os que se corrompiam nas prisões da cidade pelo simples acto do Cavaleiro. Os ricos e os gananciosos começaram a vê-lo como uma ameaça, pensando que ele acabaria por procurar governar Oanylone em vez deles. Aqueles que pecavam e espalhavam o vício também se sentiam ameaçados. Os corrompidos e os grandes ladrões sabiam que não podiam viver dos seus crimes enquanto a Ordem dos Justos reinasse como mestre sobre a cidade e eles conheciam a razão de tudo isso: Lúcifer o bom… assim eles reagruparam-se e decidiram fazer desaparecer este incómodo cavaleiro.

O insuportável sofrimento e a tentação

Os poderosos e os ricos com medo, sob a influência da tentação e do pecado, financiaram então os meliantes mais vis de Oanylone com o único fim de reduzir Lúcifer ao silêncio. Eles sabiam que não podiam atacá-lo directamente pelo risco de o converterem num mártir e de tornar o culto de Jah ainda mais forte. Assim, eles atacaram todos aqueles em quem Lúcifer acreditava. Um pequeno exército foi criado afim de atacar a vila natal do cavaleiro. Os habitantes daquele lugar foram espancados e magoados na sua carne de modo que Lúcifer se entregou para restabelecer a paz na pequena vila. Ele foi então para lá com os seus cavaleiros para combater aqueles que tinham trazido o ódio e a violência. Foi no caminho que levava ao combate que um mensageiro veio até ele e lhe anunciou a morte dos seus pais e dos amigos mais próximos, todos queimados vivos. Dilacerado pela tristeza, o Justo e os seus lutaram contra o mal vitoriosamente durante alguns dias, mas o sofrimento que tinha dentro de si não desaparecera.

Durante estes dias, os outros começaram a atacar os guias espirituais que pregavam o amor do Altíssimo, submetendo-os a espancamentos e torturas sem que ninguém se pudesse opor a eles. Os meliantes tinham que ocupar-se em atacar com força a Ordem dos Justos de Oane e quando Lúcifer e os cavaleiros regressaram, as notícias foram igualmente dramáticas. Quase todos os guias tinham sido assassinados e a multidão que os escutava regularmente estava aterrorizada e não compreendia porque Jah não interveio em seu favor. Seguiram-se semanas de terror, a violência e o assassinato acompanhavam agora cada aparição pública dos cavaleiros e dos guias, até que a população começou a pensar que os Justos foram amaldiçoados. O empreendimento vil fomentado por aqueles que temiam Lúcifer continuou inabalável, Calistan e a sua família foram massacrados, o seu domínio queimado e os seus filhos espancados até à morte. Lúcifer estava cada vez mais desapontado e, lentamente, começou a definhar no mais terrível tormento.

Tudo isso não foi suficiente para mudar o homem que continuava a acreditar que o amor poderia triunfar sobre todo este ódio e toda esta violência. Assim, os conspiradores decidiram dar-lhe o golpe de misericórdia e organizaram-se para matar os seus cavaleiros. Todos sofreram finais horríveis, os seus corpos mutilados e sem vida foram encontrados pendurados nos quatro cantos de Oanylone. Foi quando Lúcifer encontrou a Criatura Sem Nome, atraída por todo este sofrimento e esses sentimentos enterrados no fundo de uma alma torturada. A Criatura tomou a forma de um espírito e foi para o túmulo de Oane onde Lúcifer tentava apaziguar o seu sofrimento moral. O encontro foi breve.

 

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Espírito: Jovem cavaleiro, ouvi a tua história horrível, o rumor diz que todos que aqueles que tu amavas foram assassinados.Lúcifer: Quem és tu?Espírito: Quem sou eu? Eu sou aquele que está deitado neste túmulo, aquele que fez construir esta cidade.

Lúcifer: Oane? Tu és Oane? Como isto é possível…

Espírito: Meu jovem amigo, nada é impossível para aquele que encontraram A resposta. Se eu vim é para te colocar uma pergunta. Tu vais deixar estas horríveis atrocidades impunes?

Lúcifer: Eu não quero falar sobre isso, a minha alma está rasgada e as minhas noites são feitas de pesadelos e lágrimas. Eu não sei a que mais me agarrar para sobreviver a tanto ódio.

Espírito: A justiça de Oanylone jamais será suficientemente severa para apaziguar o teu coração e a tua alma. De todos os homens que eu conheci, jamais me havia cruzado com um trajado com um olhar tão triste. Procura no fundo de ti mesmo, verás que deves fazer justiça, e somente depois de matares o último assassino dos teus, o teu sofrimento será aliviado…

 

O bom cavaleiro abandonou-se então à vingança, e o ódio possuía o seu coração. Ele tinha sofrido tanta dor e miséria e sucumbiu à cólera de não ter sido capaz de proteger os seus, de não ter sido capaz de salvar a sua família. Com imensa violência, ele lutou para encontrar os culpados e massacrou-os um a um mas somente aqueles que haviam sido culpados das atrocidades foram assassinados, aqueles que tinham financiado e fomentado esses projectos escaparam à triste sorte dos seus mercenários. No entanto, depois disso, Lúcifer não se havia apaziguado; pelo contrário, a sua sentença, misturado com os horrores que cometeu, fez-lhe ainda pior.

Assim, para completar o seu trabalho destrutivo e pecador, os poderosos proprietários corruptos decidiram um último complô que foi montado contra Lúcifer em pessoa. Entretanto, o cavaleiro que defendia a virtude, a fé, a justiça e a bravura, massacrava apressadamente aqueles que ele mesmo havia condenado. Juízes corruptos apresentaram-se no seu domínio e acusaram-no de ter causado a morte sem justiça, de espalhar o ódio e de ter morto cegamente. Lúcifer, já nas profundezas do sofrimento humano foi então lançado à mercê da multidão, demasiado contente de ver que um herói tão invejado era apenas um bandido vil. Foi assim arrastado pela lama e no opróbrio, acusado de todos os males e de todos os vícios. Num julgamento público, a sentença foi exemplar e pesada para o cavaleiro acusado de usurpar a sua reputação, a sua Ordem foi desmantelada, os seus guias foram executados publicamente e os seus amigos foram banidos de Oanylone. Quanto a Lúcifer, depois de numerosos dias de tortura, foi destituído do seu título de cavaleiro, as suas terras foram apreendidas e ele foi atirado para a prisão da cidade para definhar ali até à sua morte.

A decadência espiritual

Na sua cela, Lúcifer, magoado, decepcionado, abatido e no mais fundo que a alma humana podia suportar chorou por dias e dias. Ele não conseguia compreender como tudo isso tinha acontecido e sentiu-se abandonado pelo Todo Poderoso. Ele perguntava-se como Jah, que era puro Amor aos seus olhos, pôde deixar que tais coisas acontecessem. De novo, a Criatura Sem Nome foi fortemente atraída por este calvário e, desta vez, utilizou outro truque para falar com ele. A Criatura soprou a sua alma num prisioneiro de uma cela próxima de Lúcifer.

 

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Criatura: Pára de choramingar como uma menina!Lúcifer: …Deixa-me…Criatura: Eu não tenho que suportar isto, há demasiado tempo que definho aqui por ter pregado o amor do Todo Poderoso!

Lúcifer: Tu és um guia? Queres rezar comigo?

Criatura: Não há nenhuma oração que Jah escute, ele deixou-nos há muito tempo.

Lúcifer: Não… Jah deixou-nos o livre-arbítrio…

Criatura: Não, ele abandonou-nos. Contaram-me a tua história e ela é a última prova!

Lúcifer: O que queres tu dizer?

Criatura: Tu tornaste-te um dos cavaleiros mais poderosos que Oanylone já conheceu, tu protegeste os fracos e combateste as injustiças e vê até onde isso te levou! Todos os teus parentes foram mortos, tudo aquilo em que acreditavas se afundou. Precisas de mais provas para compreenderes que o Amor é uma ilusão? Fizeste uso da força e vingaste os teus e no entanto, estás aliviado? Não há justiça, não há amor, os mais fortes que tu dominaram-te. Essa é a única realidade do nosso mundo e o único motor que nos deve fazer avançar…

 

Durante aquela noite, a Criatura matou o prisioneiro em atrozes sofrimentos e Lúcifer assistiu mais uma vez ao que ele considerava doravante como o abandono de Jah. Os dias passaram, logo as semanas transformaram-se em meses e os meses fizeram-se anos, de modo que Lúcifer atingiu a idade de quarenta e quatro anos na prisão e sempre preso a uma indizível pena. À medida que o tempo passava, a sua Fé havia-o deixado totalmente, ele não acreditava mais no Amor do Altíssimo e o seu corpo transformou-se. Os seus músculos protuberantes tornaram-se secos e as suas orações a Jah deram espaço a sestas sem sonhos. A sede de conhecimento que o havia animado tinha secado e nada mais animava o homem que fora um valente cavaleiro. Ainda que estivesse condenado a permanecer preso até ao seu fim, Lúcifer foi perdoado e libertado por alguns homens movido pelo destino que lhe estava reservado. Eles deram-lhe um pequeno pedaço de terra cultivável e dinheiro suficiente para viver até ao seu último suspiro.

Cansado da vida e insatisfeito, Lúcifer contratou alguns funcionários para se ocuparem em lhe dar o conforto que ele não tinha. Não cultivou as suas terras e passou os seus dias lamentando-se do seu infortúnio. A ociosidade invadiu-o assim e Lúcifer não fez mais nada além de dormir e comer, não tinha um minuto que perder por não fazer nada. Os antigos ouvintes das suas pregações fervorosas vieram vê-lo, e todos ficaram surpreendidos ao vê-lo assim. Lúcifer, durante meses tinha comido mais do que se tinha movido, ficando assim gordo e nada gracioso. Os homens tentaram compreender e o mais velho adiantou-se:

 

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Ancião: Senhor Lúcifer, porque tu não pregas mais? Aqueles que te magoaram estão mortos ou partiram.Lúcifer: Pregar? Não há nada para pregar. Jah não nos ama e temos de nos perguntar se Ele existe. A fé é uma ilusão que inventámos para não temer a morte. Não há sentido na vida. Não há prazer para os homens excepto o de não fazer nada. A vida não é um caminho que nós escolhemos sem dominar qualquer coisa.Ancião: Lúcifer, tu queres orar mas o teu coração não sabe mais oração. Fria é a preguiça que cobre o teu corpo, és apenas uma estátua de mármore sentada na tua própria sepultura.

 

Os anciãos ficaram horrorizados ao ouvir sobre Lúcifer e de ver a preguiça à qual se tinha abandonado. Lúcifer viveu assim por mais dez anos, sem ter interesse por nada, ignorando totalmente os prazeres da vida e renegando a fé que o tinha animado antigamente. Para aqueles que tentaram convencê-lo a recuperar o gosto pela vida, ele dava-lhes o mesmo discurso e todos eles puderam constatar que o homem não era mais que a sombra de uma alma, um corpo vivo sem iluminação.

Naquele tempo, Oanylone conheceu um período movimentado e agitado pela turbulência do vício e da escória dos pecados. O ódio e a violência apoderaram-se de toda a cidade, a preguiça venceu os trabalhadores que preferiram os bens materiais aos bens espirituais, a ociosidade venceu em todos os níveis da sociedade de Oanylone, de modo que Lúcifer foi novamente tratado como um exemplo e elevado ao nível de mito. A sua atitude preguiçosa e ociosa espalhou-se rapidamente no seio da cloaca em que se tornara a cidade, e um verdadeiro culto foi dedicado a ele. Os burgueses e os ricos também se entregaram à preguiça, fazendo os outros trabalhar para eles e, como Lúcifer, começaram a não acreditar em nada. Os pecados da preguiça, gula, avareza, ira, inveja, orgulho e luxúria apoderaram-se de Oanylone. A Criatura Sem Nome, que rondava entre os homens, injectava o seu veneno nos corações dos fracos que se voltaram contra os fortes, de modo que a guerra começou e a violência, o assassinato e o ódio converteram-se no que guiava a cidade. Foi então que o Altíssimo falou aos homens e lhes lançou um ultimato. Ele deu sete dias aos humanos para deixaram Oanylone. De outra forma, todos os presentes seriam destruídos com a cidade. Numerosos foram aqueles que deixaram sem demora a cidade maldita, mas numerosos foram aqueles que ficaram.

A Criatura apareceu uma última vez a Lúcifer e convenceu-o a espalhar a sua mensagem apelando à preguiça. Ele pregou entre os indivíduos mais vis que podia encontrar-se em Oanylone, sendo ouvido muito mais que no passado, quando transmitia uma mensagem virtuosa cheia de amor. Pouco a pouco, todos perderam rapidamente o gosto pela vida e cederam a uma preguiça sem limite. Eles vieram ouvi-lo pregar de novo na sua própria casa, contra qualquer forma de actividade e de espiritualidade. Os numerosos homens assistiram às suas diatribes furiosas contra o Altíssimo, defendendo a preguiça. Lúcifer tinha escrito preceitos, seis que até à data foram encontrados:

 

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Primeiro preceito: Não faças o que alguém pode fazer por ti, seria uma pena perder a tua própria existência gasta no trabalho.Segundo preceito: Não há necessidade de se perder em orações e meditações já que o descanso do sono alimenta tanto ou mais o espírito do homem.Terceiro preceito: Crer numa busca espiritual e religiosa é ilusório, porque o homem está intrinsecamente consagrado ao pecado. Por natureza é perverso e, por essência, é vicioso. O amor é uma ilusão que o envolve numa crença dogmática sem fundamento.

Quarto preceito: O único prazer que deveria ter o homem é o de não fazer nada porque a vida não é nada mais que o vazio e o seu sabor não tem nenhum gosto. Assim, se este prazer não pode existir, tanto faz não ter nenhum prazer.

Quinto preceito: Se não fazer nada é pecar, então pregar o pecado é virtuoso.

Sexto preceito: A virtude é um vício quando elevada à condição de ícone dogmático e o vício é uma virtude quando deixa o homem livre de não fazer nada.

 

Em Oanylone, sete virtuosos, aceitaram a fatalidade do destino e a punição de Jah, fazendo o mesmo que Lúcifer e os outros homens escolhidos pela Criatura Sem Nome. Sylphael, ele, incarnava o prazer e opunha-se a Lúcifer em todos os pontos, quando ele aparecia num lugar para pregar o amor de Jah e o prazer virtuoso, Lúcifer passava detrás dele para pregar o inverso. Isto durou seis dias, seis longos dias durante os quais os homens e as mulheres que ficaram em Oanylone escutaram Lúcifer ou Sylphael. Assim, veio o sétimo dia e Jah, na Sua cólera, fez brotar dos abismos da terra as lavas incandescentes e infernais que queimaram toda a vida. A terra rompeu-se de seguida para deixar Oanylone desaparecer no abismo do esquecimento.

Uma eternidade de preguiça

Lúcifer foi apresentado ao Altíssimo como cada homem e cada mulher que ficaram em Oanylone. Como todos os outros, não abjurou nenhum dos seus pecados e não reconheceu o poder do Altíssimo. Na Sua Santa ira, Jah lançou Lúcifer na lua para purgar uma vida de preguiça e pagar pelos seus pecados terrestres. A cólera do Todo Poderoso foi ainda mais forte, já que Lúcifer O tinha elogiado durante muitos anos antes de ceder à tentação da Criatura Sem Nome e de se afundar no vício. Tendo encarnado a preguiça durante uma grande parte da sua existência mortal, ele foi enviado sobre os enormes picos rochosos do Inferno e a sua aparência deformou-se, os seus músculos e a sua gordura derreteram e a sua pele apertou-se contra os ossos até se parecer um esqueleto. Para o punir por gastar muito tempo na ociosidade, Jah deu-lhe um corpo de um homem velho com uma barba desgrenhada e, finalmente, por causa dos muitos anos que passou a lamentar o seu destino sem pensar nos outros, Lúcifer foi condenado a derramar lágrimas quentes por toda a eternidade.

O Altíssimo criou o Inferno que se encontrava na Lua afim de enviar ali as almas humanas mais vis. Ainda que lhes dera o seu amor e que Ele tivesse feito os seus filhos, muitos afastaram-se Dele e manifestaram unicamente vício e pecado, esquecendo a virtude e a amizade. Assim, entre os homens, aqueles que se abandonam, aqueles que se esquecem na ociosidade e na preguiça espiritual e aqueles que se dedicam à negação da vida e ignoram a sua própria satisfação, engrossam as fileiras das almas condenadas de Lúcifer, o Príncipe da Preguiça.

Traduzido do Grego pelo Monsenhor Bender.B.Rodriguez

Revisado por: NReis Ribeiro de Sousa Coutinho; John Martins de Almeida Miranda e Sousa Coutinho e Beatrix Algrave Nunes

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