"A Exumação" – Raymundo Silveira

Lá fora a noite estava tão escura quanto o futuro e a consciência de Altari. Aquilo que se costuma chamar de “céu” estava completamente tomado por uma vastidão pardacenta constituída por cúmulos-nimbos, cuja aparência e formato eram os de uma grotesca aparição sobrenatural que ameaçava desabar a qualquer instante. O som dos trovões sugeria o ulular de uma fantasmagoria gigantesca se queixando de uma dor atroz. Apenas a luminosidade súbita dos raios interrompia, por um ou dois segundos, aquelas trevas. O ar enregelado se movia transformado num vento forte que soprava sem cessar e assobiava juntando-se ao som dos grasnados agourentos e lúgubres de um bando de corujas rasga-mortalhas.

Altari não pensava, só seguia os seus instintos. Vestido apenas de pijama, pôs um sobretudo preto, calçou botinas de borracha, semelhantes àquelas que os auxiliares de necrópsia utilizam para lavar o chão da morgue; pôs uma pá ao ombro e saiu para as ruas tenebrosas, tomando o caminho do cemitério. Seu vulto turvo se confundia com a escuridão; as botas de borracha abafavam o som das suas passadas, e uma aparente placidez sufocava os gritos e aplacava os tremores da sua alma agitada pelo remorso. Caminhava como um robô. Assim como não pensava, também não caminhava orientado pela razão; seus passos eram puramente instintivos. Seguia o seu rumo do mesmo modo como um ébrio que nunca se perde no caminho de volta para casa e, para ele, não havia outra casa, exceto o lugar onde haviam depositado o corpo daquela com quem convivera durante quase trinta anos. Depois que Leilah fora enterrada, o lugar onde moravam juntos havia se transformado em algo tão estranho quanto intolerável. Aquelas paredes, aquele quarto de dormir, aquela cozinha pareciam nunca terem existido antes.

Leilah havia sido sepultada há sete dias, mas ele contava como certa a sua capacidade de fazê-la ressuscitar. Havia assassinado a esposa lentamente através de envenenamento com ácido arsênico adicionado ao leite, em pequenas doses diárias. Altari tinha uma amante e preferiu matar a mulher a ter de fazê-la passar por um sofrimento que existia mais na sua mente do que no limiar de tolerância da dela. Na verdade, o real sofredor seria ele mesmo, pelo receio de não suportar a angústia que toda separação acarreta. Quando se arrependeu, nada mais poderia ser feito a fim de salvá-la. E agora, aquele remorso superava todas as experiências tormentosas por ele sentidas ao longo da sua vida de angústias.

O muro do cemitério já fora baixo, mas quando correu na vila o boato de que as sepulturas estariam sendo violadas, alguém se encarregou de elevá-lo. Não havia, portanto, como ultrapassá-lo, exceto com a ajuda de uma escada que não havia. Amontoou um pedregulho que tinha sobrado após o término da obra e permanecera nas imediações, a fim de escalá-lo. Depois de várias tentativas inúteis, pôs-se a gritar como um louco: “Leilah”, e o eco da sua voz repercutia na madrugada: lah, lah, lah. Excitado pela perspectiva de estar sendo ouvido e respondido, viu-se acometido de uma fúria estranha e terminou por galgar, depois de um extraordinário impulso, o cume da muralha. Leilah o escutara e respondera, portanto ainda vivia. Esta obsessão transformou-o: infundiu-lhe a confiança de encontrá-la sepultada viva e a aguardá-lo, sufocada, a fim de salvá-la. Repetiu várias vezes o nome da mulher e ouvia a última sílaba do seu nome sempre a ecoar: “Leilah!” lah, lah, lah.

Somente depois de pular de cima do muro para dentro do cemitério, Altari se deu conta de que a pá havia permanecido do lado de fora. Mesmo assim, correu desesperado para a sepultura de Leilah e pôs-se a cavar com as mãos. Nada o detinha: as bátegas de água da chuva torrencial que começou a cair, a quase total inutilidade dos seus esforços e nem as dores das feridas que se abriam, cada vez mais profundas e sangrentas, em suas mãos. O aguaceiro, aos poucos, fora tornando mais permeável a terra que cobria a cova da mulher e ele cavava cada vez mais, impulsionado pelo misto de desespero e esperança que costuma tomar conta dos possuídos pelo demônio do remorso. Quando o dia amanheceu ele ainda tentava cavar mais, porém nada o ajudava, pois à exaustão física se somara o esgotamento nervoso. Quando recuperou a consciência se encontrava num leito de hospital; as mãos e os braços doloridos encontravam-se cobertos por ataduras. Ao seu lado um policial vigiava.

 


Por Raymundo Silveira

Author: Beatrix