A virgem sanguinária

Há tempos ele não ia à missa. Não é que tinha perdido a fé no Senhor Jesus Cristo ou mudado de religião. Não, não é o caso. Antes fosse. A verdade é que não ia à missa porque era muito cedo. Imagina! Edvaldo é um sujeito da noite, um vampiro. Finge que trabalha, pois é funcionário público, e cai na gandaia à noite. Para ele, acredite, acordar cedo é o maior dos pecados. Enfim, não sei bem o que aconteceu àquele homem: um peso na consciência, um conforto espiritual, uma promessa, quem sabe uma dívida, sei lá. Domingo passado ele foi à missa, cedo.

A Igreja estava vazia. Haviam poucas pessoas mas uma chamou-lhe a atenção: era uma garota branquinha, branca mesmo, que estava sentada ao seu lado. Parecia uma parede recém pintada. Ela tinha olhos azuis e usava um xale verde claro sobre a cabeça. Era um espírito velho em corpo de moça: rezava muito. A danada rezava com tanto fervor, que chegava a chorar! “Eu venho à missa todo domingo, até chovendo!”, sussurrou Dininha no ouvido de Edvaldo. Valdo não perdeu tempo. Pensou, “Essa é pra casar”. Fez a corte e conseguiu o número de telefone da moça.

Desejo
Que paixão! Só uma tragédia pra romper o namoro desses dois. Não se desgrudam nunca, dá até nojo. Edvaldo e Dininha fazem tudo juntos. (Mas, afinal, o que querem esses dois? Eles ignoram os problemas do mundo e de todo mundo. O Amor só pode ser egoísta. Esses casais apaixonados só se lembram de nós quando terminam o relacinamento deles!) Bem, só uma coisinha atrapalhava o romance; um detalhe que, do ponto de vista masculino, digamos, é fundamental: sexo. Estavam juntos a cinco anos e nada! Edvaldo não agüentava mais, tanto é, que, era chamado por seus amigos de “Valdo O Desesperado”.

– Dininha, quê que tá pegando? Puxa, a gente aqui sozinho, sem ninguém pra atrapalhar e você toda fria.

– Valdo, eu já disse que não! Comigo, tem que ser tudo direito: lençol branco, música romântica, incenso e flores, muitas flores, tá ouvindo?
– Tu tá louca? Sexo é uma necessidade, não é uma peça de teatro, minha filha! E digo mais: filho se faz com amor, sexo não.

– Se quiser ficar comigo, vai ser assim. Sexo, só depois do casamento!

Uma Estranha Prova de Amor
Duas semanas depois, Dininha estava um pouco estranha. Provocava o desejo de Valdo a torto e a direito e, quando as coisas caminhavam pro seu desfecho, tirava o corpo fora. Estava mais maliciosa, cheia de caras e bocas: um gênio da lascívia. O homem, que não dava trégua, foi insistente.
– Dininha, por favor! Eu te suplico. Você gosta de mim e eu gosto de você. O quê que eu faço pra te ter? Diga a mim, meu anjo, que eu faço.
– Eu quero uma prova.
– Uma prova de amor? Pois diga, vamos lá: um poema, um buquê de rosas, uma declaração de amor pichada na porta do Museu da República, um jantar romântico na orla do lago…
– Cala a boca! Eu não quero nada disso. Eu quero que… você… mate a minha mãe.
– Você só pode ter enlouquecido! Que doidice é essa !?
– E não é só isso, não. Quero que você me traga a língua e o dedo indicador de cada uma das mãos dela envoltos num pano branco de rendinha e cetin.

A velha
Dona Quitéria, era um amor de pessoa, uma simpatia. Não havia quem falasse mal da velha. Onde a gorda passava era saudada com uma espécie de reverência. Católica fervorosa, devota de São Francisco de Assis, sempre tinha uma palavra amiga. Dava conselhos como se soubesse, claramente, o que é certo e o que é errado. Defendia com rigor os princípios da família. Assim era com os amigos, vizinhos e o namorado da filha.
Em casa, curiosamente, a velha só falava aos berros. Aquela pessoa dócil e amável não entrava em casa: morava na rua. A Quitéria que entrava em casa era uma mulher autoritária, um verdadeiro general. Apontava o dedo na cara da filha e dizia versículos da Bíblia de cor. Às vezes, dava bofetadas na cara da pequena por motivos fúteis. Dininha recebeu uma educação muito rígida da mãe. Era reprimida.
Já o pai, funcionário público aposentado, era uma figura inexistente. O que fazia era só ler jornais o dia inteiro. Não tinha opinião. Era um inválido. Tal pusilânimidade, só reforçava o regime repressor de Quitéria. Mas, um dia, algo importante aconteceu.
Certa vez, Dininha estava sozinha em casa com o velho. Ele estava no quarto com a porta fechada quando Dininha começou a ouvir um choro estridente. Assustada, entrou no quarto.
– Pai, o que foi?
Seu pai, Valdomiro, segurava um revólver e ameaçava dar um tiro na boca.
– Eu não agüento mais, minha filha! Tua mãe me odeia. Aquela velha rabugenta não vê, que, um homem que não se impõe em sua própria casa, não se impõe em lugar algum! Eu não sirvo pra nada. Eu vivo sob a sombra de uma… MULHER!
Dininha prometeu a si mesma que esta seria a última humilhação a que seu pai se sujeitava. Ela não clamaria mais por liberdade: ela afirmaria sua liberdade.

O crime
Valdo não conseguia mais dormir. Pensava dia e noite na maluquice que Dininha lhe dissera. “Quê que eu vou fazer, meu Deus do céu?”. Sabia que a velha era um encosto na vida da namorada. Sabia que o futuro sogro era um impotente. Mas, daí, chegar ao ponto de tirar a vida de alguém? Isso era demais. Estava meditando a situação no escritório quando o telefone tocou. Era Dininha.
– Amor, tá tudo certo. Olha só, ficarei sozinha com minha mãe a partir das sete.
– Sete?
– É, das sete às nove. Papai vai à casa de um amigo visitar a esposa dele, que tá doente.
– Mas….
Desligou o telefone na cara do infeliz.
Ele não estava certo do que faria. Saiu do serviço, pegou o carro e foi pra casa de Dininha. No meio do caminho, resolveu passar no supermercado. Comprou uma faca. O homem parecia um bicho, que segue o instinto, mas não sabe o que faz. Era todo inconsciente. O que queria mesmo era possuir a amada: dar vazão a essa energia, essa libido gritante, esse desejo carnal. Libertar-se de cinco anos de celibato.
Chegou. Seus olhos estavam desfocados, ele parecia prestar atenção em algo que não se encontrava extamente em sua frente. Corpo e mente no vácuo, agarrou a maçaneta fria e entrou sem bater.
– Edvaldo, meu filho! Que surpresa agradável! Ora, não faça cerimônia, sente-se.
Não disse nada. Agarrou a velha pelo pescoço e deu-lhe uma punhalada na barriga. Dininha observava o ritual da escada. Assim, viu o desgraçado cortar a língua e, depois, cortar o dedo indicador de cada uma das mãos de sua mãe. Calmo, colocou as partes em cima da mesa e envolveu-as num pano branco de rendinha e cetin.
– Vem criatura! Vem que eu sou toda sua!

Final Feliz
Subiu as escadas. Entrou no quarto dos sogros. Sim, era lá que se daria a primeira vez do casal. Era lá que Dininha o esperava. Estava vestida toda de rosa. Os lençóis haviam sido trocados. O leito estava repleto de flores: orquídeas, bromélias e lírios. Extasiada, Dininha apertou o play do som: Noturno nº 8 de Chopin. A coisa mais linda! Deitou na cama e despiu-se. Edvaldo largou a faca em cima do criado e ofertou a língua e os dedos de Dona Quitéria à Dininha. Ela os pegou, envoltos no pano branco, e abriu. A língua não estava vermelha, estava preta. Os dedos, estes pareciam menores do que realmente eram. Cuidadosamente, lambeu-os. Lambia como se estivessem lambuzados de chocolate. Satisfeita, abriu os braços e chamou Valdo.
– Vem.
Valdo tirou a camisa e caminhou em direção à Dininha. Só não contava com a intromissão de um estranho que, devido ao som alto, Valdo não percebeu a entrada. Era uma pessoa encapuçada. Portava um objeto estranho, talvez um castiçal. A passos mudos, o estranho aproximou-se de Edvaldo e deu-lhe uma tacada na cabeça. Morreu na hora.
A pessoa retirou o capuz: era o pai de Dininha, seu Valdomiro. Abraçou a filha e disse:
– Pode chamar a polícia.
Vinte minutos depois, a polícia chegou. Dininha e seu pai disseram ao comissário Gordon que Edvaldo não havia aceitado o fim do namoro e que fazia ameaças constantes à família. Disse que faria uma loucura caso ela não reatasse o namoro.
– Seu comissário, ele era um crápula, um ser abjeto. Queria violentar a minha filha, esse anjo de gente. Disse a ela que se fosse preciso, ele a violentaria.
Daí, relataram que o suposto “coração partido” invadiu a casa, matou a mãe e que, só não matou Dininha, porque Valdomiro havia chegado bem na hora e acertado-lhe a cabeça. A polícia recolheu os corpos e arquivou o processo. Valdomiro alegou legítima defesa.
Depois que a polícia foi embora, finalmente ficaram a sós.
– Papai, ninguém atrapalhará mais o senhor.
– Sim, minha filha.
– Agora, o senhor é o HOMEM da casa.
– Sim, eu sou o HOMEM da casa.
E beijou-lhe os tenros lábios.


Por Rafael Mendes – 27/05/2005

Author: Beatrix