O Amante do Cemitério – Jorge Machado

Só havia duas coisas importantes para Dolores: sexo e festas. Chamava-se Dolores, mas o nome naturalmente havia forçado o apelido. Doloca era um perigo.

 

 

 

Morava em Abaeté desde o nascimento. Na verdade, nascera no Furo Grande e era uma das mais conhecidas moças do Furo Grande, mas ocultava, quase renegava suas origens. Formara-se professora normalista mas não conseguira um emprego. Talvez porque a devassidão a impedisse, naquele lugar puritano. Então vivia assim, costurando pra fora, fazendo bico, praticando o sexo, saindo pra festa todo
sábado e sonhando com um curso de enfermagem em Belém.

Metera na cabeça que queria ser enfermeira. Não por amor a Ana Nery diga-se de passagem, mas como possível válvula de escape para seus desejos incontroláveis de luxúria.

Achava os hospitais lugares muito afrodisíacos, mais para alcovas do que nosocômios. Imaginava o que poderia acontecer em noites frias e chuvosas, quando tivesse que dar plantão. Daria sim, com certeza.

Certa vez vira uma cama ginecológica e estremecera entusiasmada. A posição ginecológica exercitava seus músculos mais importantes, à falta de qualquer exercício mental. Papanicolau era uma palavra excitante. Anatomia lhe sugeria uma lúbrica prática da exploração dos recantos mais escondidos do corpo humano…

Além de tudo isso, a capital acenava-lhe com a realização de orgias capazes de corar Calígula. Sonhava com a devassidão da cidade grande, a suprema patifaria, livre de olhares curiosos e línguas afiadas da vizinhança, num lugar onde ninguém é de ninguém e todos cultuam o demônio do sexo. Mas enquanto não se realizava, ia vivendo de festa em festa e de cama em cama.

Encontrou aquele homem esquisito numa festa na sede do Vênus, perto da casa do doutor Lopes. O salão era quase parede com parede com o consultório do dentista. De tarde, quando estavam arrumando as mesas para a festa dava para sentir aquele cheiro de cravinho e ouvir um gemido quando algum dente estalava no boticão.

Quando Doloca entrou para dançar e sacrificar para Vênus, de imediato reparou naquele homem. Cabelos longos cheios de óleo perfumado, parecia Glostora, sapato de couro branco bem engraxado, calça de tropical, camisa de tergal listrada, mangas enroladas até metade do antebraço, bigodinho, costeletas, palito mastigado num canto da boca, menta no bolso, grande corrente e crucifixo. Parecia um amante latino.
Dolores descobrira seu amante latino!

Dolores, mulher infeliz no amor, viúva de marido vivo, decepcionada com os homens, traída e condenada, coração eternamente suspeitando de qualquer pretendente a um relacionamento mais sério, Dolores tinha
ali diante de si um homem incomum em Abaeté do Tocantins.

Mundana por opção, doutor Novaes dela fizera uma psicanálise durante rodada de gim no bar do Nicola. O Clube Freudiano de Abaeté do Tocantins teve curta existência, mas sua paciente predileta fornecera alento suficiente para inflamadas reflexões psicanalíticas ao redor de uma mesa de bar, até a agremiação diluir-se em álcool numa noite chuvosa de fevereiro. Seus estatutos e atas de reuniões foram espalhados ao vento pelo médico embriagado, revoltado quando um frade sabotou uma das reuniões do clube distribuindo generosas doses de cachaça entre os intelectuais. Pela análise, Doloca era uma fêmea frustrada, acometida por incontroláveis impulsos decorrentes de um complexo de Electra mal resolvido na infância, que ela buscava desesperadamente resolver na cama. Alguns de seus amantes declaravam que ela choromingava e chamava pelo pai, pedia forças a Messalina e urrava o nome infame do maligno. Talvez fosse louca, talvez se
fizesse. Talvez, afinal, adorasse aquela vida perdida.

O homem se aproximou, olhos nos olhos, Doloca como que magnetizada, mal ouvindo o mambo que o Jazze Abaeté executava com mestria. Ele estendeu cerimoniosamente a mão direita, segurou Doloca e a puxou
para a pista de dança. Ela sentiu um arrepio ao toque daquele corpo gelado, mas o acompanhou no mambo.

Dançaram muito, beberam, ficaram meio deformados, meio suados, meio lustrosos, mas isso a deixava mais entusiasmada para querer o sexo.
Bastou um sussurro canalha para que ela cedesse.

Ele sugeriu o cemitério. Parecia algo sadomasoquista, que ela adorou. Iria praticar o ato sobre tumbas, tendo a lua por companhia. Ela adorou.

Saíram na bicicleta dele, uma Philips preta que gemia no cubo traseiro.

Chegando no campo santo, silêncio e quietude na madrugada fria, ele depressa empurrou a bicicleta para trás de uma sepultura antiga. Pareceu a Doloca que aquele homem tinha muita experiência naquilo.

Ele virou-se para Doloca e uma Lua cheia descaindo lentamente para o poente iluminou sua face. A devassa deu um grito e, determinada, entregou-se a ele.

Foi algo bestial, indescritível, praticado com entusiasmo pelos dois. Naquela noite, no campo santo, eles não fizeram amor. Não havia lugar para essa palavra no vocabulário de Dolores. Ela era um ser essencialmente carnal. Nada sabia das coisas do espírito. Era uma fêmea a serviço das coisas do mundo, da carne.

Após tudo aquilo acontecer, Doloca entregou-se a meditações. Deitada sobre uma placa de granito polido, recompunha-se mentalizando patifarias, já prevendo o dia seguinte.

Recompondo-se lentamente, Dolores sentou-se sobre a pedra fria, sentindo a friagem gelar-lhe o corpo. Depressa acostumou-se com o frio, que primeiro arrepiava, mas depois refrescava o corpo e aplacava aquele fogo atroz que a consumia. Se existia o inferno, ele já ardia em Doloca, anunciando as terríveis provações que no além aguardavam aquela pecadora. Nem mil anos nadando nos tachos de breu fervente de Belzebu seriam suficientes para expiar toda uma vida de pecado. Ficou assim muito tempo, ouvindo a madrugada.

Ao longe, o mambo continuava correndo frouxo na sede do Vênus. Era possível acompanhar o solo de clarineta do Galdino, maravilhoso som que se propagava claro como cristal, agitando naquele ritmo caribenho
cada molécula de ar frio. Mais distante uma aparelhagem tocava. Com certeza era na Venuta.

Doloca ouvia aquele bolero, lamento em ritmo de cabaré que parecia falar diretamente a ela.

Boneca cobiçada
das noites de sereno…

A safadinha sorriu, um sorriso misto de deboche e lascívia.

Teu corpo não tem dono
teus lábios têm veneno…

Doloca olhou para seu amante latino. Estava de olhos fechados, abandonado e indefeso, exaurido. Assemelhava-se a um cadáver, pálido e lustroso. Seu perfume, Reve d’Or, parecia agora um formol muito bem aplicado, ao misturar-se com o odor de álcool que dele exalava.

Ela o chamou, ao que ele entreabriu os olhos. Sorriu lânguido.

– Me leva pra casa… – gemeu Dolores manhosa, ainda entorpecida.

O amante custou a responder. Ela insistiu.

– Me leva pra casa…

– Não posso…- susurrou o amante.

– Por que…?

– Porque eu não posso mais sair daqui… Já cumpri minha saída de
hoje…

Dolores estranhou. Um calafrio percorreu-lhe o corpo.

– O que…? – assustou-se.

– Em não posso sair daqui… – disse o amante, desta feita enfático e
incisivo, elevando um pouco a voz.

– Por que…? – perguntou Dolores, temendo pela resposta.

– Porque eu moro aqui…- respondeu o amante enquanto ia
desaparecendo no ar.

Dolores, a Doloca, abriu na carreira gritando por socorro.

Bita, coveiro, dormia na capelinha. Despertou com aquele grito desesperado, levantou meio zonzo, caminhou cambaleando até a porta. Acendeu a lanterna e varreu as alamedas silenciosas com um facho amarelado. Silêncio e quietude. Um vento frio percorria a intimidade dos grandes jambeiros, precipitando sobre as calçadas aquela neve cor de rosa, prenúncio do frutificar daquelas árvores gigantescas.

O coveiro acendeu um cigarro, olhou em volta, um clarão inconfundível para os lados do nascente anunciava a iminência da aurora. Ele saiu vasculhando as sepulturas. Haviam enterrado uma madame cheia de jóias e poderia ser um caso de violadores de túmulos. O homem caminhava lentamente, vigiando, ouvindo e observando. Um encontro com ele ali no campo santo seria certamente assustador. Aquela figura negra,
encanecida, magra e ligeiramente curvada lembrava uma aparição.

Bita notou grande movimentação da terra ao redor de um túmulo, mármore muito antigo, encardido e abandonado. Sorriu, parou, agachou-se e apanhou um pedaço de pano engatado num arbusto. Era uma calcinha. Cheirava a artimatic e tinha um D bordado com habilidade em linha dourada. Sob a luz da lanterna, ele de repente compreendeu tudo.

– Ah, Veneraldo, Veneraldo – disse contemplando a fotografia do defunto de bigodinho num medalhão de bronze que decorava a sepultura – fizeste mais uma vítima, seu patife…

FIM


Autor: Jorge Machado

Jorge Ricardo Coutinho Machado é escritor, professor universitário e pesquisador da Memória Cultural de Abaetetuba.

Author: Beatrix