O enterro do morto – Luiz Carlos de Souza

Como nos funerais de antigamente, uma longa fila de carros seguia o rabecão. Parado numa transversal do cortejo, tinha horário marcado no médico, e aquele contratempo faria com que se atrasasse além do tolerável. Perderia a consulta. No banco de trás, o envelope com o resultado dos exames guardava seu medo e a voz do Dr. Coelho:

– É, Josué, vamos fazer um ultrassom dessa próstata! O dedo do médico fez mais uns revolteios dentro do seu ânus. Em seguida um tapinha nas nádegas: – Pode se vestir.

Josué soltou a respiração e a angústia. Subiu a cueca e as calças, virou-se e encarou o médico:

– O que o Sr. acha, doutor? O médico parou de fazer seus garranchos:

– Sua próstata está um pouco alterada. Por enquanto não dá pra adiantar mais nada, só depois do ultrassom e do exame de sangue.

Josué sentiu o pulso acelerado, uma onda de calor subiu-lhe às faces. O médico tratou de acalma-lo:

– Calma, Josué, é possível que não seja nada. Estamos apenas tomando algumas precauções para não sermos surpreendidos. Você sabe que qualquer problema responde melhor ao tratamento quando diagnosticado no início.

Agora o envelope estava ali no banco de trás, fechado. Bem que Josué teve vontade de abri-lo, ler o resultado, e conforme fosse, tomar uma cerveja ou uma bala no ouvido. Não teve coragem. No dia anterior ligara para Andréia, caso antigo:

– Preciso te ver hoje. Ela nunca dizia não, a esperança de um dia ficar com ele. Ao se encontrarem Josué quase não falou. Levou-a ao motel de sempre e surpreendeu-a com o romantismo, os carinhos, os cuidados. Andréia estranhou:

– O quê tá acontecendo, meu doce? Fala pra mim, fala…

Josué acendeu um cigarro, olhou-a pelo espelho no teto, pequena, cabelos curtos, deitada de lado, cabeça apoiada numa das mãos, nudez mansa, tranquila.

– Tô fudido. Andréia continuou em silêncio, passando as unhas em seu braço. Josué dramatizou, depois de um longo suspiro: – Câncer na próstata. Não vou trepar mais. Nunca mais!

Chocada pela notícia inesperada, Andréia não sabia o que dizer, e sem conseguir segurar as lágrimas, virou-se de bruços, tentando abafar o choro no travesseiro. O espelho no teto refletiu a cintura estreita, as ancas arredondadas, a bunda generosa sacudida por soluços amargurados. Josué apagou o cigarro, deitou-se sobre a pequena morena, buscando conforta-la: – “Não chora, amorzinho, não chora”, ao mesmo tempo em que sentia o corpinho quente sacudido pelos soluços. Andréia só parou de chorar ao sentir que Josué ainda não estava tão mal assim. Remexeu os quadris do jeito que ele gostava e não tocaram mais no assunto.

Enquanto esperava os carros cruzarem à sua frente, Josué viu seu amigo Douglas seguindo a fila em seu chevrolet, a mulher ao lado. Assustou-se. Quem teria morrido? Pegou o celular, buscou a agenda de telefones, localizou o número do amigo e ligou.

– Alô.
– Douglas? Josué! Quem morreu?
– Onde você está?
– Parado, esperando o enterro passar. Vi você agora. Quem morreu?
– O Ataliba. Coração. Fulminante. Você vem no enterro?

O Ataliba! Marido da Jerusa, seu amor na juventude! O Ataliba se fudeu! Josué não sabia bem o que sentia, momentaneamente confuso. Pobre do Ataliba, afinal se conheciam desde a adolescência. E a Jerusa, como estaria?

A fila de carros chegava ao fim. Finalmente Josué poderia cruzar a avenida e seguir para o consultório. No banco de trás o envelope e seu segredo. Em casa, Elvira cuidava dos filhos e também aguardava ansiosa pelo resultado dos exames. Elvira, uma santa. Quando o cortejo chegou ao fim, Josué engatou a primeira e tomou o último lugar na longa fila de carros.

Conseguiu vaga para estacionar bem longe do portão principal. O muro do cemitério era alto, cinza, marcado pelo tempo. Há muito não vinha a um cemitério. Por quanto tempo mais poderia dizer isso? A lembrança do envelope no banco de trás acentuou as rugas em seu rosto, e ao entrar no cemitério tinha o olhar cheio de tristeza e o coração cheio de dúvidas. A capela de velório ficava no alto de uma pequena elevação. Havia muita gente do lado de fora, mas Josué tinha pressa em vê-la, e a tristeza em seu rosto foi abrindo caminho entre sorrisos conformados e tapinhas no ombro, revendo antigos companheiros, todos irremediavelmente envelhecidos. E Jerusa, como estaria?

Dentro da pequena capela o ar era quente e tinha cheiro de flores envelhecidas. Murmúrios abafados cobriam as paredes de mofo. Ele viu primeiro a tampa do caixão de madeira escura e lustrosa, adornada de arabescos dourados. Foi seguindo com o olhar até chegar à cabeceira, ladeada por dois pesados castiçais de prata, com grossas velas acesas nas pontas. A cera esbranquiçada escorria pelos castiçais até formar pequenas poças sobre a toalha escura. Andréia gostava de sentir seu esperma sobre o corpo. Afastou o pensamento impróprio. Uma mulher estava curvada sobre a pequena abertura fechada com vidro na tampa do caixão. Um véu de rendas preto cobria toda a sua cabeça, e mesmo sem ver o rosto, Josué sabia que ali estava Jerusa. O tempo, oh!, o tempo! Tinha engordado um pouco. Depois de alguns instantes ela endireitou o corpo, e voltou-se para a fila de condolências. Josué viu o rosto que às vezes aparecia em seus sonhos. Estava mais maduro, mais sóbrio. Jerusa agradecia os cumprimentos automaticamente, inclinando a cabeça para a frente, estendendo a mão pálida e sem forças. Assim, quando Josué chegou a sua frente, Jerusa mantinha a cabeça baixa e a mão estendida. Josué segurou a mão fria de Jerusa, que ergueu a cabeça lentamente, como se tivesse reconhecido sua mão entre tantas outras. O aperto se prolongou por um tempo. Instintivamente a cabeça de Jerusa buscou o ombro de Josué, que passou os braços sobre seus ombros, suas mãos apertando levemente suas costas. Ficaram assim alguns instantes, até que o ar foi ficando livre de murmúrios. Despertados pelo silêncio, soltaram-se do abraço, olharam-se nos olhos. Josué disse apenas:

– Eu sinto muito. Jerusa balançou a cabeça, sorriu tristemente, e pensou: “Eu também. Sempre senti.”

Josué chegou em casa mais cedo, e ao ver sua cara, Elvira se desesperou:

– Não, Jô, não me diga que… e saiu chorando em direção ao quarto. Josué deu-se conta e foi atrás:
– Não, Vira, não é nada disso, não chore. Olhe pra mim: Não é o que você está pensando. Elvira tinha os olhos vermelhos:
– Então por que você está com essa cara? O que o médico disse?
– Eu perdi a hora da consulta, não fui ao médico. Tudo bem.
– Tudo bem como? E os exames?
– Estão no carro.
– E você não vai ver o resultado?
– Hoje não. Amanhã eu passo no Dr. Coelho. Não tenho pressa. Josué tirou a roupa e foi tomar banho, deixando Elvira sentada na cama.

Passava da meia-noite quando Josué desligou a televisão. Elvira também levantou-se do sofá e foi para o quarto. Quando Josué apagou a luz, ela debruçou-se sobre seu peito e perguntou:

– Jô, por que aquela cara, quando você entrou? Josué não tinha como evitar:
– O Ataliba morreu. O enterro foi hoje. Elvira sentiu um arrepio:
– E você foi ao enterro? Josué mentiu pela metade:
– O Douglas me chamou. Insistiu.

O silêncio parecia interminável. Josué esperava pela próxima pergunta. Que não veio. Ao invés disso, sentiu a mão de Elvira entrando pelas calças do seu pijama, segurando com força seu pinto, como se ele fosse embora:

– Daqui você não sai. Nem Dr. Coelho, nem Jerusa.

No escuro, Josué sorriu satisfeito. Lembrou de Jerusa, roliça, carnuda. Pensou em Andréia, pequena, tesuda. Mas Elvira já estava com a mão na massa, então foi só virar de lado e abraça-la. Josué foi romântico. Carinhoso. Cuidadoso. Dormiram abra

Author: Beatrix