161 - John Coltrane - Africa/Brass


Primeiro lançamento de Coltrane pelo selo Impulse!, Africa/Brass é um retrato de suas pesquisas das músicas africanas e orientais e uma prova de como o jazz não poderia ter existido sem as duas. Para o disco, Coltrane contou, pela primeira vez, com a participação de sua alma gêmea, Eric Dolphy, que ficou com a função de arranjador. O álbum original conta apenas com três faixas - "Greensleeves", "Africa" e "Blues Minor" -, mas em 1967 foi lançada um segundo volume, com outras versões de "Africa" e "Greensleeves", além de uma outra inédita: "Song of the Underground Railroad". Porém, o bom disso tudo é que quando o disco foi lançado em CD, apareceu com o nome de The Complete Africa/Brass Sessions, com todas essas faixas, além de outras duas. E, a despeito dos inúmeros lançamentos, o disco mostra o lado espiritual e pesquisador de Coltrane que faria a cada novo trabalho, álbuns mais sofisticados e até inacessíveis para o grande público. Fiquem um pouco mais com a história de Trane...


John ColtraneNa primeira coluna desse ano, abordei o disco A Love Supreme, o maior testamento de John Coltrane e um dos discos mais importantes não apenas do jazz, mas de toda a história da música.

Porém, antes de A Love Supreme, Coltrane já tinha uma carreira-solo muito respeitada. Pesquisador incansável, o saxofonista não estava apenas interessado no jazz, mas na história da música em geral, e, em especial, de outros continentes.

E foram esses estudos que fizeram com que Coltrane debutasse no selo Impulse! com um disco magistral: Africa/Brass.

E quando começou a produzir o disco, John Coltrane sabia exatamente o que queria: uma intensa pesquisa. E para isso, contou com um importante músico: Eric Dolphy.

Eric DolphyColtrane conheceu Dolphy em 1954 e logo se tornaram amigos. Ambos traziam uma imensa bagagem profissional, sendo que Dolphy chegava ao cúmulo de ser mais dedicado aos estudos do que o próprio saxofonista.

Além da paixão e do talento, Coltrane sentiu forte identificação com Eric: "tudo que posso dizer é que minha vida melhorou bastante após conhecê-lo. Ele é uma das pessoas mais maravilhosas que encontrei, seja como homem, seja como amigo ou como músico."

Muli-instrumentista, Eric dominava o sax alto, sax tenor, sax barítono, clarineta, flauta e piano e para esse disco foi convidado para ser o arranjador.

Reggie WorkmanCom Dolphy, Coltrane aumentou seu quarteto para um quinteto - além dos dois, faziam parte o pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin Jones e o baixista Reggie Workman, que depois seria substituído por Jimmy Garrison.

Com essa formação, Coltrane realizou vários shows e curiosamente, chegou a sofrer algumas críticas injustas, especialmente pela longa duração das apresentações e pelos excessivos solos dos músicos, que tornavam a apresentação "tediosa", no entender dessas pessoas. Sobre isso, Coltrane comentou: "eles (os shows) são longos porque os solistas tentam explorar todas as possibilidades que a melodia oferece. Quando estou tocando, tento fazer certas experiências e o mesmo acontece com Eric e com McCoy. E quando as terminamos elas ganham um outro significado para nós."

Eric Dolphy e John ColtraneAinda assim, os shows eram criticados por jornalistas consagrados. John Tynan, da Downbeat, chegou a afirmar que ficou horrorizado com a apresentação ao presenciar o nascimento do anti-jazz e que lamentava ver uma boa seção rítmica arruinada pelo exercício niilista de Dolphy e Coltrane, que pareciam destruir deliberadamente cada composição.

Coltrane explica como nasceu a amizade com seu novo parceiro: "Eric e eu conversamos sobre música desde 1954, e ficamos amigos. Nós conversávamos sobre música, além de ouvirmos juntos vários discos. O que fazemos hoje é resultado dessa amizade. Meses atrás, Eric estava em Nova York onde eu estava me apresentando. Ele veio nos assistir e quando o vi na platéia o convidei para tocar. Foi quando percebi que meu quarteto poderia ser aumentado, pois ele parecia um membro de nossa família. Eric havia encontrado outra maneira de expressar aquilo que nós fazíamos. Logo que se juntou, ele trouxe um novo alento e permitiu que explorássemos coisas impensáveis anteriormente. E ele me ajudou muito quando comecei a escrever novas músicas."

A produção de Africa/Brass teve alguns problemas. Primeiro, foi o único trabalho de Coltrane na Impulse! sem a produção de Bob Thiele, já que o produtor titular da casa era Creed Taylor, que deixou o selo pouco depois da gravação do álbum.

O disco também teve duas sessões de gravação, já que Coltrane não ficou satisfeito com o resultado da primeira, realizada no dia 23 de maio.

Quando Coltrane começou a montar a concepção do disco estava claro para ele - mas não para os outros - que era necessário uma orquestra. O problema é que Coltrane queria uma orquestra nada convencional, com uma mistura de metais privilegiando o som barítono, além de dois baixistas.

"John tinha todo esse som na cabeça. Ele queria metais, queria músicos que tocassem barítonos, queria um som mais melodioso e, ao mesmo tempo, poderoso", disse Eric Dolphy. Coltrane queria explorar a polirritmia dos sons africanos e precisaria de dois baixistas para isso.

McCoy TynerFoi aí que apareceu o pianista McCoy Tyner, que auxiliou Coltrane com os arranjos. "John queria que eu fizesse uns arranjos para a orquestra, mas eu tive uma certa dificuldade, já que tocávamos como um quarteto. O único tema dos anos 60 era 'Greensleeves', uma canção folk inglesa e que costumávamos tocar. Para ela, fiz uma orquestração utilizando french horns e trumpetes."

Coltrane gostou do arranjo de Tyner e pediu que Dolphy tentasse utilizar o estilo técnico de seu pianista como o instrumento base. "John pediu para que eu mostrasse o que eu estava tocando e a partir daí, Eric tentou construir os arranjos."

Eric confessa que fez exatamente isso: "para o disco tive que usar a 'voz' de McCoy. Na verdade, toda a concepção nasceu com John e com ele, minha única preocupação era criar os arranjos. John sabia exatamente o que buscava."

Uma das exigências de Coltrane foi que apenas os membros originais do quarteto solariam, apesar da presença de músicos gabaritados e chamados por Eric, como era o caso de Freddie Hubbard ou de Britt Woodman, músico de Duke Ellington. A única exceção seria feita para o segundo baixista, função para a qual dois novos músicos foram os escolhidos: Paul Chambers, velho companheiro dos anos em que tocou na banda de Miles Davis e Art Davis. Dessa maneira, no dia 23 de maio, 18 músicos entraram em estúdio para as gravações.

O primeiro tema abordado foi "Greensleeves", que obteve um bom resultado após pouco tempo, embora não tenha ficado totalmente satisfatória para Coltrane.

As complicações começaram com o segundo tema, "Song of the Underground Railroad", que acabou sendo abortada do lançamento original. Para essa canção, Coltrane havia feito pesquisas sobre temas spirituals e canções folclóricas do século XIX. Com Coltrane no sax tenor e Tyner ao piano, a participação da orquestra era presente apenas no início e ao final da canção.

Após isso, Coltrane resolveu fazer uma nova versão de "Greensleeves", dessa vez de maneira mais lenta. O próximo tema a ser desenvolvido seria "The Damned Don't Cry", a única que não teve participação de Tyner ou Doplhy nos arranjos. A canção foi escrita por Calvin Massey, amigo de longa data de Coltrane, que escreveu e fez os arranjos.

Massey fez um arranjo inicial que Coltrane havia gostado, mas três dias antes das gravações ele e seu assistente, o pianista Romulus Franceschini, não estavam conseguindo terminar o arranjo para a orquestra e até a véspera brigavam com isso. Para piorar, Massey atravessava uma série de problemas pessoais e deixou com o italiano Franceschini a árdua tarefa.

E, talvez, por causa, disso a canção acabou sendo descartada do disco original, já que sua performance, apesar de boa, é a mais fraca de todas. Uma questão crítica também foi a falta de tempo e dinheiro para os ensaios, já que Creed Taylor argumentou que não poderiam gastar muito para ensaiá-la. Ainda assim, Dolphy e Coltrane conseguiram dar um colorido diferente, embora tenham mudado algumas idéias originais de Massey.

Elvin JonesO próximo tema seria "Africa", que Coltrane já vinha trabalhando em apresentações com seu quarteto. Essa foi a única canção do dia em que utilizou dois baixistas. Em "Africa", Coltrane queria que os dois baixistas tocassem em tons diferentes - um mais alto e outro mais baixo. E, lógico, que deu muito espaço para que o fantástico Elvin Jones solasse na bateria. Se Coltrane considerava Elvin "um presente de Deus para sua banda", nessa composição ele começa a mostrar o porquê.

A estrutura básica era a repetição, segundo Coltrane, uma das coisas mais importantes da música africana. Essa canção acabou tendo três versões realizadas nas duas sessões do disco. Na versão que acabou entrando no álbum, os dois baixistas são Reggie e Art Davis. Porém, Paul Chambers participou da primeira versão da mesma.

"Eu procurava um som grave e por isso precisava de dois baixistas. Era necessário que um tocasse mais alto, enquanto outro cuidaria da parte rítmica. Reggie e Art já tinham trabalhado juntos e estavam mais entrosados do que Paul."

capa do disco Africa/BrassApós as gravações, Coltrane ouviu o material e resolveu que as músicas tinham ficado boas, mas ele não estava satisfeito com a primeira versão de "Africa", com Chambers e Workman e pediu um novo dia para a gravadora. No dia 7 de junho, Coltrane voltou ao estúdio com pequenas mudanças na orquestra, e com Art Davis como o segundo baixista.

Embora "Africa" fosse a grande preocupação, a primeira canção a ser gravada foi "Blues Minor", com apenas dois acordes menores, e incluída por Coltrane no último momento e que acabou entrando no LP original. E Coltrane resolveu gravar duas versões para "Africa", uma mais lenta e com um solo menos explosivo de Jones.

Já a última versão - e a que entrou no disco - mostrava o grupo explorando mais os ritmos afro-cubanos e um Elvin inspiradíssimo e descendo o braço, enquanto Coltrane explorava novos limites com o sax tenor.

capa do relançamento em CDAs duas sessões estão presentes no relançamento do disco em CD duplo, The Complete Africa/Brass Sessions.

Quando Africa/Brass foi editado, a crítica ficou confusa. Uma parte achou o trabalho excepcional e a outra ficou sem entender e afirmando que Coltrane havia, de fato, ficado monótono. Mas, na verdade (como em todos seus discos posteriores), Coltrane estava exigindo demais de seus fãs, que necessitavam de um longo tempo para digerir tanta inovação. Suas três faixas - "Greensleeves", "Blues Minor" e "Africa" eram ousadas demais, mas o que os fãs não sabiam é que, durante as sessões de Africa/Brass, Coltrane entrara, no dia 25 de maio, em estúdio novamente para gravar um novo disco e que sairia meses depois, Olé Coltrane, mostrando que deixaria seus fãs malucos com tantos sons novos e também de bolsos vazios...

Deixo vocês com a discografia completa de Coltrane. Um abraço e até a próxima coluna.

Discografia-solo

Dakar (1957)
Coltrane (1957)
Lush Life (1957)
Traneing In (1957)
Blue Train (1957)
Cattin’ With Coltrane and Quinichette (1957)
Wheelin’ And Dealin’ (1957)
The Believer (1957)
The Last Trane (1957)
Soultrane (1958)
Settin’ The Pace (1958)
Black Pearls (1958)
Standard Coltrane (1958)
The Stardust Session (1958)
Bahia (1958)
Coltrane Time (1958)
Blue Trane: John Coltrane Plays The Blues (1958)
Like Sonny (1958)
Giant Steps (1959)
Coltrane Jazz (1959)
Echoes Of An Era (1959)
My Favorite Things (1960)
Coltrane’s Sound (1960)
Coltrane Plays The Blues (1960)
The Best of John Coltrane (1961)
The Heavyweight Champion (1961)
Africa/Brass (1961)
Olé Coltrane (1961)
The Complete Africa/Brass (1961)
Live At The Village Vanguard (1961)
Impressions (1961)
The Complete Paris Concerts (1961)
The Complete Copenhagen Concerts (1961)
Live In Stockholm, 1961 (1961)
Ballads (1961)
Coltrane (1962)
From The Original Master Tapes (1962)
Live At Birdland (1962)
The European Tour (1962)
The Complete Graz Concert vol 1 (1962)
The Complete Graz Concert vol 2 (1962)
The Complete Stockholm Concert vol 1 (1962)
The Complete Stockholm Concert vol 2 (1962)
Stockholm’62 The Complete Second Concert vol 1 (1962)
Stockholm’62 The Complete Second Concert vol 1 (1962)
Coltrane Live At Birdland (1963)
The Gentle Side of John Coltrane (1963)
The Paris Concert (1963)
‘63 The Complete Conpenhagen Concert vol 1 (1963)
‘63 The Complete Conpenhagen Concert vol 1 (1963)
Live In Stockholm,1963 (1963)
Afro Blue Impressions (1963)
Newport ‘63 (1963)
Coast To Coast (1964)
Crescent (1964)
A Love Supreme (1964)
Dear Old Stockholm (1964)
The John Coltrane Quartet Plays (1965)
The Major Works of John Coltrane (1965)
Transition (1965)
New Thing At Newport (1965)
Live In Paris (1965)
Live In Antibes 1965 (1965)
Love In Paris (1965)
A Love Supreme: Live In Concert (1965)
A Live Supreme (1965)
New York City ’65 vol 1 (1965)
New York City ’65 vol 2 (1965)
Live In Seattle (1965)
OM (1965)
First Meditations (1965)
Meditations (1965)
Sun Ship (1965)
Kulu Se Mama (1965)
Live At The Village Vanguard Again! (1966)
Live In Japan (1966)
Interstellar Space (1966)
Stellar Regions (1966)
Expression (1967)
A John Coltrane Retrospective (1967)

Discografia com outros músicos

com Dizzy Gillespie
Dee Gee Days (1952)

com Johnny Hodges
Used To Be Duke (1954)

com Miles Davis (quando músico fixo da banda de Miles Davis)

Miles (1955)
Cookin’ (1956)
Relaxin’ (1956)
Workin’ (1956)
Steamin’ (1956)
‘Round About Midnight (1956)
Milestones (1958)
Miles And Coltrane (1958)
‘58 Sessions (1958)
Compact Jazz/Miles Davis (1958)
Mostly Miles (1958)
Live In New York (1958)
Kind Of Blue (1959)
On Green Dolphin Street (1960)
Live In Zurich (1960)
Miles Davis In Stockholm (1960)

com Miles Davis (já não mais como membro fixo, apenas convidado)
Some Day My Prince Will Come (1961)
Circle In The Round (1961)

com Tadd Dameron
Mating Call (1956)

com Paul Chambers
Chamber’s Music (1956)

com Elmo Hope
The All Star Sessions (1956)

com Sonny Rollins
Tenor Madness (1956)

com Prestige All Stars
Tenor Conclave (1956)
Interplay For Two Trumpets And Two Tenors (1956)
The Cats (1957)

com Thelonious Monk
Thelonious Himself (1957)
Thelonious Monk With John Coltrane (1957, lançado em 1961)
Monk’s Music (1957)
Live At The Five Spot Discovery! (1958)
The Complete Riverside Recordings (1958)
The Complete Blue Note Recordings (1958)

com Oscar Pettiford
Winners’s Circle (1957)

com Art Blakey
Art Blakey’s Big Band (1957)

com Sonny Clark
Sonny’s Crib (1957)

com Wilbur Harden
Dial Africa (1958)
Africa – The Savoy Sessions (1958)

com Cannonball Adderley
Cannonball & John Coltrane (1959)

com Milt Jackson
Bags & Trane (1959)

com Don Cherry
The Avant-Garde (1960)

com Eric Dolphy
John Coltrane Quartet With Eric Dolphy (1961)
John Coltrane Meets Eric Dolphy (1961)

com Duke Ellington
Duke Ellington & John Coltrane (1962)

com Johnny Hartman
John Coltrane And Johnny Hartman (1963)


 

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