Primeiro lançamento de Coltrane
pelo selo Impulse!, Africa/Brass é um retrato de suas pesquisas
das músicas africanas e orientais e uma prova de como o
jazz não poderia ter existido sem as duas. Para o disco,
Coltrane contou, pela primeira vez, com a participação
de sua alma gêmea, Eric Dolphy, que ficou com a função
de arranjador. O álbum original conta apenas com três
faixas - "Greensleeves", "Africa" e "Blues
Minor" -, mas em 1967 foi lançada um segundo volume,
com outras versões de "Africa" e "Greensleeves",
além de uma outra inédita: "Song of the Underground
Railroad". Porém, o bom disso tudo é que quando
o disco foi lançado em CD, apareceu com o nome de The Complete
Africa/Brass Sessions, com todas essas faixas, além de
outras duas. E, a despeito dos inúmeros lançamentos,
o disco mostra o lado espiritual e pesquisador de Coltrane que
faria a cada novo trabalho, álbuns mais sofisticados e
até inacessíveis para o grande público. Fiquem
um pouco mais com a história de Trane...
Na
primeira coluna desse ano, abordei o disco A Love Supreme,
o maior testamento de John Coltrane e um dos discos mais importantes
não apenas do jazz, mas de toda a história da música.
Porém, antes de
A Love Supreme, Coltrane já tinha uma
carreira-solo muito respeitada. Pesquisador incansável,
o saxofonista não estava apenas interessado no jazz, mas
na história da música em geral, e, em especial,
de outros continentes.
E foram esses estudos que
fizeram com que Coltrane debutasse no selo Impulse! com um disco
magistral: Africa/Brass.
E quando começou
a produzir o disco, John Coltrane sabia exatamente o que queria:
uma intensa pesquisa. E para isso, contou com um importante músico:
Eric Dolphy.
Coltrane
conheceu Dolphy em 1954 e logo se tornaram amigos. Ambos traziam
uma imensa bagagem profissional, sendo que Dolphy chegava ao cúmulo
de ser mais dedicado aos estudos do que o próprio saxofonista.
Além da paixão
e do talento, Coltrane sentiu forte identificação
com Eric: "tudo que posso dizer é que minha vida melhorou
bastante após conhecê-lo. Ele é uma das pessoas
mais maravilhosas que encontrei, seja como homem, seja como amigo
ou como músico."
Muli-instrumentista, Eric
dominava o sax alto, sax tenor, sax barítono, clarineta,
flauta e piano e para esse disco foi convidado para ser o arranjador.
Com
Dolphy, Coltrane aumentou seu quarteto para um quinteto - além
dos dois, faziam parte o pianista McCoy Tyner, o baterista Elvin
Jones e o baixista Reggie Workman, que depois seria substituído
por Jimmy Garrison.
Com essa formação,
Coltrane realizou vários shows e curiosamente, chegou a
sofrer algumas críticas injustas, especialmente pela longa
duração das apresentações e pelos
excessivos solos dos músicos, que tornavam a apresentação
"tediosa", no entender dessas pessoas. Sobre isso, Coltrane
comentou: "eles (os shows) são longos porque os solistas
tentam explorar todas as possibilidades que a melodia oferece.
Quando estou tocando, tento fazer certas experiências e
o mesmo acontece com Eric e com McCoy. E quando as terminamos
elas ganham um outro significado para nós."
Ainda
assim, os shows eram criticados por jornalistas consagrados. John
Tynan, da Downbeat, chegou a afirmar que ficou horrorizado
com a apresentação ao presenciar o nascimento do
anti-jazz e que lamentava ver uma boa seção rítmica
arruinada pelo exercício niilista de Dolphy e Coltrane,
que pareciam destruir deliberadamente cada composição.
Coltrane explica como nasceu
a amizade com seu novo parceiro: "Eric e eu conversamos sobre
música desde 1954, e ficamos amigos. Nós conversávamos
sobre música, além de ouvirmos juntos vários
discos. O que fazemos hoje é resultado dessa amizade. Meses
atrás, Eric estava em Nova York onde eu estava me apresentando.
Ele veio nos assistir e quando o vi na platéia o convidei
para tocar. Foi quando percebi que meu quarteto poderia ser aumentado,
pois ele parecia um membro de nossa família. Eric havia
encontrado outra maneira de expressar aquilo que nós fazíamos.
Logo que se juntou, ele trouxe um novo alento e permitiu que explorássemos
coisas impensáveis anteriormente. E ele me ajudou muito
quando comecei a escrever novas músicas."
A produção
de Africa/Brass teve alguns problemas. Primeiro,
foi o único trabalho de Coltrane na Impulse! sem a produção
de Bob Thiele, já que o produtor titular da casa era Creed
Taylor, que deixou o selo pouco depois da gravação
do álbum.
O disco também teve
duas sessões de gravação, já que Coltrane
não ficou satisfeito com o resultado da primeira, realizada
no dia 23 de maio.
Quando Coltrane começou
a montar a concepção do disco estava claro para
ele - mas não para os outros - que era necessário
uma orquestra. O problema é que Coltrane queria uma orquestra
nada convencional, com uma mistura de metais privilegiando o som
barítono, além de dois baixistas.
"John tinha todo esse
som na cabeça. Ele queria metais, queria músicos
que tocassem barítonos, queria um som mais melodioso e,
ao mesmo tempo, poderoso", disse Eric Dolphy. Coltrane queria
explorar a polirritmia dos sons africanos e precisaria de dois
baixistas para isso.
Foi
aí que apareceu o pianista McCoy Tyner, que auxiliou Coltrane
com os arranjos. "John queria que eu fizesse uns arranjos
para a orquestra, mas eu tive uma certa dificuldade, já
que tocávamos como um quarteto. O único tema dos
anos 60 era 'Greensleeves', uma canção folk inglesa
e que costumávamos tocar. Para ela, fiz uma orquestração
utilizando french horns e trumpetes."
Coltrane gostou do arranjo
de Tyner e pediu que Dolphy tentasse utilizar o estilo técnico
de seu pianista como o instrumento base. "John pediu para
que eu mostrasse o que eu estava tocando e a partir daí,
Eric tentou construir os arranjos."
Eric
confessa que fez exatamente isso: "para o disco tive que
usar a 'voz' de McCoy. Na verdade, toda a concepção
nasceu com John e com ele, minha única preocupação
era criar os arranjos. John sabia exatamente o que buscava."
Uma das exigências
de Coltrane foi que apenas os membros originais do quarteto solariam,
apesar da presença de músicos gabaritados e chamados
por Eric, como era o caso de Freddie Hubbard ou de Britt Woodman,
músico de Duke Ellington. A única exceção
seria feita para o segundo baixista, função para
a qual dois novos músicos foram os escolhidos: Paul Chambers,
velho companheiro dos anos em que tocou na banda de Miles Davis
e Art Davis. Dessa maneira, no dia 23 de maio, 18 músicos
entraram em estúdio para as gravações.
O primeiro tema abordado
foi "Greensleeves", que obteve um bom resultado após
pouco tempo, embora não tenha ficado totalmente satisfatória
para Coltrane.
As complicações
começaram com o segundo tema, "Song of the Underground
Railroad", que acabou sendo abortada do lançamento
original. Para essa canção, Coltrane havia feito
pesquisas sobre temas spirituals e canções
folclóricas do século XIX. Com Coltrane no sax tenor
e Tyner ao piano, a participação da orquestra era
presente apenas no início e ao final da canção.
Após isso, Coltrane
resolveu fazer uma nova versão de "Greensleeves",
dessa vez de maneira mais lenta. O próximo tema a ser desenvolvido
seria "The Damned Don't Cry", a única que não
teve participação de Tyner ou Doplhy nos arranjos.
A canção foi escrita por Calvin Massey, amigo de
longa data de Coltrane, que escreveu e fez os arranjos.
Massey fez um arranjo inicial
que Coltrane havia gostado, mas três dias antes das gravações
ele e seu assistente, o pianista Romulus Franceschini, não
estavam conseguindo terminar o arranjo para a orquestra e até
a véspera brigavam com isso. Para piorar, Massey atravessava
uma série de problemas pessoais e deixou com o italiano
Franceschini a árdua tarefa.
E, talvez, por causa, disso
a canção acabou sendo descartada do disco original,
já que sua performance, apesar de boa, é a mais
fraca de todas. Uma questão crítica também
foi a falta de tempo e dinheiro para os ensaios, já que
Creed Taylor argumentou que não poderiam gastar muito para
ensaiá-la. Ainda assim, Dolphy e Coltrane conseguiram dar
um colorido diferente, embora tenham mudado algumas idéias
originais de Massey.
O
próximo tema seria "Africa", que Coltrane já
vinha trabalhando em apresentações com seu quarteto.
Essa foi a única canção do dia em que utilizou
dois baixistas. Em "Africa", Coltrane queria que os
dois baixistas tocassem em tons diferentes - um mais alto e outro
mais baixo. E, lógico, que deu muito espaço para
que o fantástico Elvin Jones solasse na bateria. Se Coltrane
considerava Elvin "um presente de Deus para sua banda",
nessa composição ele começa a mostrar o porquê.
A estrutura básica
era a repetição, segundo Coltrane, uma das coisas
mais importantes da música africana. Essa canção
acabou tendo três versões realizadas nas duas sessões
do disco. Na versão que acabou entrando no álbum,
os dois baixistas são Reggie e Art Davis. Porém,
Paul Chambers participou da primeira versão da mesma.
"Eu procurava um som
grave e por isso precisava de dois baixistas. Era necessário
que um tocasse mais alto, enquanto outro cuidaria da parte rítmica.
Reggie e Art já tinham trabalhado juntos e estavam mais
entrosados do que Paul."
Após
as gravações, Coltrane ouviu o material e resolveu
que as músicas tinham ficado boas, mas ele não estava
satisfeito com a primeira versão de "Africa",
com Chambers e Workman e pediu um novo dia para a gravadora. No
dia 7 de junho, Coltrane voltou ao estúdio com pequenas
mudanças na orquestra, e com Art Davis como o segundo baixista.
Embora "Africa"
fosse a grande preocupação, a primeira canção
a ser gravada foi "Blues Minor", com apenas dois acordes
menores, e incluída por Coltrane no último momento
e que acabou entrando no LP original. E Coltrane resolveu gravar
duas versões para "Africa", uma mais lenta e
com um solo menos explosivo de Jones.
Já a última
versão - e a que entrou no disco - mostrava o grupo explorando
mais os ritmos afro-cubanos e um Elvin inspiradíssimo e
descendo o braço, enquanto Coltrane explorava novos limites
com o sax tenor.
As
duas sessões estão presentes no relançamento
do disco em CD duplo, The Complete Africa/Brass Sessions.
Quando Africa/Brass
foi editado, a crítica ficou confusa. Uma parte achou o
trabalho excepcional e a outra ficou sem entender e afirmando
que Coltrane havia, de fato, ficado monótono. Mas, na verdade
(como em todos seus discos posteriores), Coltrane estava exigindo
demais de seus fãs, que necessitavam de um longo tempo
para digerir tanta inovação. Suas três faixas
- "Greensleeves", "Blues Minor" e "Africa"
eram ousadas demais, mas o que os fãs não sabiam
é que, durante as sessões de Africa/Brass,
Coltrane entrara, no dia 25 de maio, em estúdio novamente
para gravar um novo disco e que sairia meses depois, Olé
Coltrane, mostrando que deixaria seus fãs malucos
com tantos sons novos e também de bolsos vazios...
Deixo vocês com a
discografia completa de Coltrane. Um abraço e até
a próxima coluna.
Discografia-solo
Dakar (1957)
Coltrane (1957)
Lush Life (1957)
Traneing In (1957)
Blue Train (1957)
Cattin’ With Coltrane and Quinichette (1957)
Wheelin’ And Dealin’ (1957)
The Believer (1957)
The Last Trane (1957)
Soultrane (1958)
Settin’ The Pace (1958)
Black Pearls (1958)
Standard Coltrane (1958)
The Stardust Session (1958)
Bahia (1958)
Coltrane Time (1958)
Blue Trane: John Coltrane Plays The Blues (1958)
Like Sonny (1958)
Giant Steps (1959)
Coltrane Jazz (1959)
Echoes Of An Era (1959)
My Favorite Things (1960)
Coltrane’s Sound (1960)
Coltrane Plays The Blues (1960)
The Best of John Coltrane (1961)
The Heavyweight Champion (1961)
Africa/Brass (1961)
Olé Coltrane (1961)
The Complete Africa/Brass (1961)
Live At The Village Vanguard (1961)
Impressions (1961)
The Complete Paris Concerts (1961)
The Complete Copenhagen Concerts (1961)
Live In Stockholm, 1961 (1961)
Ballads (1961)
Coltrane (1962)
From The Original Master Tapes (1962)
Live At Birdland (1962)
The European Tour (1962)
The Complete Graz Concert vol 1 (1962)
The Complete Graz Concert vol 2 (1962)
The Complete Stockholm Concert vol 1 (1962)
The Complete Stockholm Concert vol 2 (1962)
Stockholm’62 The Complete Second Concert vol 1 (1962)
Stockholm’62 The Complete Second Concert vol 1 (1962)
Coltrane Live At Birdland (1963)
The Gentle Side of John Coltrane (1963)
The Paris Concert (1963)
‘63 The Complete Conpenhagen Concert vol 1 (1963)
‘63 The Complete Conpenhagen Concert vol 1 (1963)
Live In Stockholm,1963 (1963)
Afro Blue Impressions (1963)
Newport ‘63 (1963)
Coast To Coast (1964)
Crescent (1964)
A Love Supreme (1964)
Dear Old Stockholm (1964)
The John Coltrane Quartet Plays (1965)
The Major Works of John Coltrane (1965)
Transition (1965)
New Thing At Newport (1965)
Live In Paris (1965)
Live In Antibes 1965 (1965)
Love In Paris (1965)
A Love Supreme: Live In Concert (1965)
A Live Supreme (1965)
New York City ’65 vol 1 (1965)
New York City ’65 vol 2 (1965)
Live In Seattle (1965)
OM (1965)
First Meditations (1965)
Meditations (1965)
Sun Ship (1965)
Kulu Se Mama (1965)
Live At The Village Vanguard Again! (1966)
Live In Japan (1966)
Interstellar Space (1966)
Stellar Regions (1966)
Expression (1967)
A John Coltrane Retrospective (1967)
Discografia com
outros músicos
com Dizzy Gillespie
Dee Gee Days (1952)
com Johnny Hodges
Used To Be Duke (1954)
com Miles Davis (quando músico fixo da banda de
Miles Davis)
Miles (1955)
Cookin’ (1956)
Relaxin’ (1956)
Workin’ (1956)
Steamin’ (1956)
‘Round About Midnight (1956)
Milestones (1958)
Miles And Coltrane (1958)
‘58 Sessions (1958)
Compact Jazz/Miles Davis (1958)
Mostly Miles (1958)
Live In New York (1958)
Kind Of Blue (1959)
On Green Dolphin Street (1960)
Live In Zurich (1960)
Miles Davis In Stockholm (1960)
com Miles Davis
(já não mais como membro fixo, apenas convidado)
Some Day My Prince Will Come (1961)
Circle In The Round (1961)
com Tadd Dameron
Mating Call (1956)
com Paul Chambers
Chamber’s Music (1956)
com Elmo Hope
The All Star Sessions (1956)
com Sonny Rollins
Tenor Madness (1956)
com Prestige All
Stars
Tenor Conclave (1956)
Interplay For Two Trumpets And Two Tenors (1956)
The Cats (1957)
com Thelonious
Monk
Thelonious Himself (1957)
Thelonious Monk With John Coltrane (1957, lançado em 1961)
Monk’s Music (1957)
Live At The Five Spot Discovery! (1958)
The Complete Riverside Recordings (1958)
The Complete Blue Note Recordings (1958)
com Oscar Pettiford
Winners’s Circle (1957)
com Art Blakey
Art Blakey’s Big Band (1957)
com Sonny Clark
Sonny’s Crib (1957)
com Wilbur Harden
Dial Africa (1958)
Africa – The Savoy Sessions (1958)
com Cannonball
Adderley
Cannonball & John Coltrane (1959)
com Milt Jackson
Bags & Trane (1959)
com Don Cherry
The Avant-Garde (1960)
com Eric Dolphy
John Coltrane Quartet With Eric Dolphy (1961)
John Coltrane Meets Eric Dolphy (1961)
com Duke Ellington
Duke Ellington & John Coltrane (1962)
com Johnny Hartman
John Coltrane And Johnny Hartman (1963)
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