Ele é
certamente o artista mais subestimado de toda a história
pop brasileira. Músico brilhante, arranjador, letrista,
usina inesgotável de idéias, Arnaldo foi o grande
líder dos Mutantes, a banda brasileira mais admirada no
exterior e que hoje é vítima de um culto que beira
o insuportável. Porém, poucos conhecem ou falam
da carreira errática de Arnaldo Baptista. Talvez porque
ele tenha enlouquecido verdadeiramente, graças às
drogas e às suas idéias nem sempre compreendidas
pelos outros (e até por ele mesmo). Mas Arnaldo, em uma
vida cheia de acidentes (e alguns quase fatais), compôs
uma das mais belas obras inspirada na dor, nos delírios
e nas imagens particularíssimas de alguém como ele.
Loki? é mais do que um disco estranho e até assustador.
É a grande obra-prima de um gênio e certamente o
mais importante e brilhante (ainda que ninguém concorde
comigo) disco do rock nacional.
Até
onde pode ir um artista sofrendo de uma imensa dor, depressão
e com graves problemas com as drogas?
Terá alguma importância
uma obra registrada nesse estado psicológico ou será
apenas um registro "curioso" de uma pessoa destruída
e com tantos medos?
E, será que, passados
muitos anos, essa obra ainda terá alguma relevância?
É nesse contexto que Loki?, deve ser analisado.
E a resposta, simples e direta, é uma só: sim, tem
uma grande relevância e está longe de ser algo feito
por alguém que já estava "doidão",
para usar uma gíria da época.
O final dos Mutantes marca
um período extremamente doloroso para Arnaldo Baptista.
O líder dos Mutantes rompia um casamento com Rita Lee,
e mergulhava em uma viagem de depressões, paranóia
e incertezas. E Arnaldo era ainda muito jovem para poder lidar
com tantas coisas.
Nascido no dia 6 de julho
de 1948, o músico tinha pouco mais de 25 anos quando deu
adeus aos Mutantes, trio (e depois quinteto) que havia sido a
extensão de sua personalidade.
Após
ter gravado o disco O A E O Z com os Mutantes,
em 1973, e que só foi lançado quase 20 anos depois,
Arnaldo vivia amargurado. O disco registrava uma guinada ao rock
progressivo e os Mutantes já eram um quarteto (além
de Arnaldo, estavam seu irmão Sérgio, o baixista
Liminha e o baterista Dinho), mas já sem Rita Lee.
Rita e Arnaldo, aliás,
já estavam se separando, o que serviu para aumentar ainda
mais seu desespero. Ele já era um mito do rock brasileiro,
e um mito com enormes problemas; incluindo falta de dinheiro,
drogas e várias brigas.
E era esse Arnaldo que
resolveu romper com tudo e quis registrar um dos discos mais emblemáticos
não apenas do rock nacional, como também de toda
a história da música.
Arnaldo havia feito algumas
canções e resolveu que era hora de registrá-las.
Primeiro, tentou falar com o presidente da Philips, André
Midani, mas acabou mesmo convencendo o produtor da casa, Roberto
Menescal, que junto com Mazola, topou a empreitada, intrigados
com o que tinham ouvido.
Arnaldo resolveu então
chamar seus velhos companheiros - o baixista Liminha, o baterista
Dinho, a própria Rita Lee e o maestro Rogério Duprat.
O que ninguém podeira imaginar era o resultado final...
Gravado
no estúdio Eldorado e registrado em 16 canais, Loki?
marca, entre outras, coisas pela ausência de guitarra (exceção
feita à faixa final, "É Fácil",
com um violão de 12 cordas, tocado pelo próprio
Arnaldo), a exuberância do piano de Arnaldo e por letras
extremamente pessoais e, em certos momentos, embaraçosas.
Arnaldo queria gravar o
disco com uma grande urgência, urgência essa que só
encontrou paralelo no álbum Plastic Ono Band,
de John Lennon, de 1971. Com a "cozinha" dos Mutantes,
Arnaldo ia gravando rapidamente, com grande sofreguidão
e arranjando confusão com os dois músicos, por ser
recusar a refazer algumas faixas.
Arnaldo mostrava um eclestimo
impressionante, mesclando o glam rock, o boogie-woogie, o rock
and roll, o progressivo, com os arranjos de Duprat, resultando
numa mistura até hoje inigualável.
O disco abre com "Será
Que Eu Vou Virar Bolor?", com Arnaldo tocando no melhor estilo
dos anos 50 - Jerry Lee Lewis, Little Richard - e misturando Alice
Cooper, Nasa e o medo de ser esquecido em um texto permeado de
humor e medo. A segunda faixa, "Uma Pessoa Só",
traz um belo arranjo de cordas de Duprat e um dos versos mais
bonitos já escritos na música: "Estamos numa
boa pescando pessoas no mar/Aqui/Numa pessoa Só".
O disco continua com "Não
Estou Nem Aí", tem Rita Lee nos vocais de apoio e
é um tantinho auto-biográfica - "Ontem me disseram
que um dia eu vou morrer/Mas até lá eu não
vou me esconder/Porque eu não estou nem aí pra morte/Não
estou nem aí pra sorte/Eu quero mais é decolar toda
manhã."
A quarta faixa, "Vou
Me Afundar Na Lingerie", é um dos grandes momentos
de sua carreira, com uma letra muito bem humorada, com gírias
da época. "Honky Tonky" é uma faixa instrumental,
onde Arnaldo passeia por vários estilos no piano.
"Ce
Tá Pensando Que Sou Loki?", abre com um arranjo que
remete ao disco de Tom Jobim com Frank Sinatra (Francis
Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, com orquestrações
de Claus Ogerman) - com um arranjo meio bossa-nova, meio samba,
e com várias referências na letra sobre suas viagens
com as drogas, seu passado e, claro, Rita Lee, especialmente quando
se refere à cilibrina. Isso, porque Rita Lee montou com
Lúcia Turnbull, o duo Cilibrinas do Éden.
"Desculpe" é
uma das baladas mais corta-pulsos da história, de assustar
um Iggy Pop ou Ian Curtis: "Desculpe/Se eu fiz você
chorar/Te esqueça/Olhe, o sol chegou/Diga-me o meu nome/Diga-me
que você me quer/Sinta o pulso de todos os tempos/Comigo/Até
quando, eu não sei/Mas desculpe/Mas eu vou me fechar/Não
sou perfeito/Nem mesmo você é/Me abrace, diga-me
o meu nome/Diga-me que você me quer/Sinta o pulso de todos
os tempos/Comigo, até quando não sei/Sinta o barato
de ser ser humano/Comigo/Até quando Deus quiser."
Recado à Rita Lee? Provavelmente...
"Navegar de Novo"
é um dos primeiros ataques à sociedade de consumo
que se criava no Brasil, criticando a superficialidade das pessoas
e fazendo um olhar esperançoso ao Brasil do futuro. "Te
Amo Podes Crer" mais parece um outro recado à ex-parceira.
O disco fecha com "É Fácil", a única
com violão e com a letra "Eu me amo/Como eu amo você/É
fácil", em rápidos 1 minuto e 55 segundos.
O disco mostra um Arnaldo
Baptista tentando erradicar e entender seus demônios. Logo
após o lançamento, Arnaldo sofreria uma de suas
primeiras internações, por causa da violência,
potencializada pelas drogas.
Sérgio Dias, irmão
de Arnaldo, conta que Arnaldo odiou o título do disco,
então imposto pela gravadora, assim como a capa feita,
totalmente longe do contexto sonhado por ele. O trabalho teve
uma vendagem pífia, aumentando ainda mais sua dor.
Em
uma entrevista histórica concedida à jornalista
Ana Maria Bahiana e publicada no jornal O Globo, no dia
28/04/1978, Arnaldo faz um grande desabafo. Confira alguns momentos:
Sobre música:
"Rock eu gosto porque é meu sangue. É minha
vida, desde que nasci."
Sobre Rita Lee:
"Quando eu ouvia a Rita, gostava. Não ouço
nem vejo a Rita há muito tempo. Me faz muito mal. Más
vibrações. Para baixo. Marta não deixa porque
me faz mal. Os Mutantes do Sérgio eu operei som para eles,
uma vez. O Sérgio vem tocar aqui com a gente no domingo,
dar uma força."
Sobre os Mutantes:
"Era bom. Não, não tenho saudades. A agressividade,
naquele tempo, era quase nula."
Sobre os anos pós-Loki
até o então atual momento, como Arnaldo & Patrulha
do Espaço: "Passei quatro anos num ostracismo.
Não tinha ninguém, mulher nenhuma. Ninguém
me queria. Não tinha amor. Aí me internaram, porque
parece que fiquei uma pessoa violenta. E eu não quero ser
uma pessoa violenta. Diziam que eu era. Me internaram. Agora estou
bem. Cortei as drogas. Tenho um psiquiatra. Tomo uns remédios.
Estou bem. Logo que saí de ser internado eu comecei a fazer
esse grupo, a Space Patrol. Ia chamar assim, mas por razões
de... evolução... não... Chama Patrulha do
Espaço. Estamos trabalhando há um ano. É
um bom trabalho. Eu trabalho muito. Não sou violento. A
bateria é. O piano não consegue, por causa da amplificação."
Em um dos momentos mais
lindos do texto, Ana Maria relata: "Subitamente pede
licença, vai correndo ao palco cuidar, pessoalmente, das
ligações elétricas de seu teclado Hohner.
Se é possível ter certeza de algo, de coisa sei:
ele não está brincando de pirado. Todo seu corpo,
todo seu rosto está empenhado numa batalha surda e intensa,
digna, que não tem nada a ver com as possíveis fantasias
de sua ex ou atual platéia. Agachado atrás dos amplificadores,
metodicamente checando fios e plugs, sobrancelhas cerradas, ele
não parece um herói: está lutando por sua
vida. Com todas as forças."
É
por tudo isso, que Loki? é (em minha modesta
opinião), o mais belo registro feito no Brasil. Passado
mais de 30 anos (ele foi lançado em 1974), ele se mostra
assustadoramente atual, apesar de alguns erros técnicos.
Talvez Arnaldo quisesse mostrar nos erros técnicos os erros
pessoais, ou talvez não tivesse mais cabeça em mexer
em algo que lhe tinha sido tão caro. Sua vida seguiria
num limbo, até o mal explicado acidente do hospital psiquiátrico,
em 1981, quando se jogou do terceiro andar e ficou um tempo em
coma. Para alguns, uma tentativa de suicídio. Para Arnaldo,
apenas uma maneira de tentar fugir daquele horrível lugar.
Arnaldo hoje vive em Minas
Gerais, tendo lançado um novo disco em 2004, Let
It Bed e possui hoje até um site
pessoal.
Deixo vocês com
a discografia pós-Mutantes. Um abraço e até
a próxima coluna.
Discografia
Solo
Loki? (1974)
Singin' Alone (1981)
Disco Voador (1987)
Let It Bed (2004)
como Arnaldo & Patrulha do
Espaço
Elo Perdido (1977)
"Faremos uma noitada excelente..." (1978)
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