O Can é um dos ícones do rock
alemão dos anos 70. Contemporâneos do Kraftwerk e
um dos marcos do chamado "krautrock", esse grupo foi
considerado um dos mais interessantes nomes do rock progressivo,
embora esse termo seja por demais limitante à banda. Sua
mistura de rock, minimalismo, jazz e longas viagens mostrava que
o Can era muito mais sofisticado do que Pink Floyd e Yes, por
exemplo, e ficando mais próximos dos ingleses King Crimson,
Gentle Giant e Soft Machine. Um de seus líderes é
Holger Czukay, músico extraordinário e que deu uma
palestra no Brasil em janeiro de 1986 para alguns felizardos.
Sua obra é recheada de momentos belos e estranhos, e entre
todos eles fulgura o clássico Tago Mago. Seu som anárquico
e completamente experimental influenciou várias bandas
nascentes do movimento punk, como PiL, Gang of Four, The Fall
e é uma das alegrias confessas de The Edge. Por isso, é
mais do que hora de abordamos esses alemães malucos e geniais.
"Nunca
fomos um grupo de rock normal. O Can sempre foi uma comunidade
anarquista." A frase dita por um de seus fundadores, Irmin
Schmidt, retrata o que foi essa banda alemã, uma das mais
importantes e relevantes dos anos 70. Talvez pela enorme fama
que o Kraftwerk conseguiu, poucos conseguiram enxergar ou apurar
os ouvidos com o som do Can, um dos maiores nomes do "krautrock".
Basicamente os grupos de "krautrock" eram considerados
iguais aos de rock progressivo feito especialmente na Inglaterra.
Mas havia uma diferença. Os grupos alemães estavam
mais preocupados com a parte rítmica e em criar músicas
hipnóticas, ao contrário das bandas inglesas, que
abusavam de solos imensos e voltavam seus temas para a Idade Média.
Os mais importantes grupos de "krautrock" foram, além
do Can, o Kraftwerk, o Faust, o Neu!, Amon Düul II e o Cluster.
A
história do Can começa em 1968, na cidade de Colônia.
Cinco jovens resolvem se encontrar para montar um grupo. O anfitrião,
Irmin Schmidt (pianista), recebe Holger Czukay (baixista), David
Johnson (flautista), Jaki Liebezeit (baterista) e Michael Karoli.
Todos eram músicos já renomados e que haviam tido
experiências anteriores. Em pauta, a criação
de um novo conceito sonoro, totalmente radical para aqueles tempos.
Uma mistura de rock, com elementos de free jazz (a grande paixão
de Liebezeit), eletrônica, colagem, etc...
A primeira aparição
do Can consta meses depois, em junho, no Schloss Noervenich em
uma exibição de arte moderna. Essa apresentação
acabaria sendo lançada em 1984 em um edição
limitada de duas mil cópias em fita cassete com o nome
de Prehistoric Future, em Paris, pelo selo Tago
Mago.
Neste
show a banda tocou sob o nome Inner Space e utilizando os instrumentos
de um grupo chamado Organisation, do qual faziam parte Ralf Hütter
e Florian Schneider, que anos depois formariam o Kraftwerk. Nessa
mesma época, Irmin recebeu a visita do escultor norte-americano
Malcolm Mooney, que acabou entrando no grupo e conduziu os alemães
mais próximos dos limites do rock. Em seguida, David Johnson
deixa o grupo e Jaki e Malcolm aparecem com um novo nome: Can.
Assim,
em 1969, lançam o primeiro disco, Monster Movie.
Gravado apenas em dois canais, o trabalho já trazia uma
concepção totalmente inusitada para a década
de 60. O disco foi gravado no mesmo local de seu primeiro show
e produzido pelo próprio grupo. Eram quantro composições,
sendo que a última, "You Doo Right", tinha mais
de 20 minutos.
Holger conta que nenhuma
gravadora quis bancar o lançamento do disco que tinha uma
outra capa e que eles mesmos bancaram a edição com
a Scheisshouse Records. Além de Monster Movie,
o disco Technical Space Composer's Crew do Canaxis5
foi o outro lançamento do selo.
Em
1970, o grupo lança o segundo disco Soundtracks,
em que o Can mostra algumas trilhas sonoras da qual participou:
Deadlocks, Cream, Mädchen Mit Gewalt,
Deep End e Bottom - Ein Grosser Graublauer Vogel.
Esse trabalho marca o fim
da participação de Malcolm que voltou para os Estados
Unidos para se tratar de seus inúmero problemas psicológicos.
Das sete faixas do disco, Malcolm colocou a voz em apenas duas:
"Soul Desert" e "She Brings the Rain". Nas
outras quatro faixas em que se necessitava de um cantor, o grupo
apresentou um novo vocalista; o japonês Kenji "Damo"
Suzuki.
Holger
e Jaki haviam conhecido Damo em Munique, onde vivia como mascate
nas ruas da cidade, tentando coletar dinheiro para voltar à
sua terra natal. Damo havia participado da produção
do musical Hair, documentário que marcou
todo o movimento hippie dos anos 60. E no mesmo final de semana
em que conheceu os dois membros do Can, Damo foi convidado para
tocar com a banda, no clube Blow Up, na própria Munique.
E, apesar da performance caótica e ainda mostrando que
o grupo necessitava evoluir muito, é considerado uma das
mais belas apresentações da carreira do Can.
Vale registrar que todo
o período vivido com Malcolm pode ser melhor conhecido
no discoCan - Delay 1968, lançado originalmente
em 1981.
E o grupo mostrou a tão
prometida evolução com o próximo lançamento,
o mais importante de sua carreira e um dos discos mais importantes
do rock alemão e que influenciou dezenas de bandas inglesas
e até americanas: Tago Mago.
Muitos
consideram, de fato, o primeiro disco do Can, já que o
primeiro teve uma produção caótica e Soundtracks
é uma coletânea das trilhas-sonoras dos anos de 1969
e 1970.
O disco é o testamento
da capacidade da banda: moldado pelos ritmos frenéticos
e quebrados pensados por Czukay e Liebezeit, os cincos assinam
as composições em uma viagem que mistura mistério,
psicodelias, climas orientais e longas viagens ao desconhecido.
Tago Mago foi eleito um dos melhores discos do
ano pelos críticos ingleses e franceses e a voz de Damo
parecia ser perfeita para as experimentações dos
quatro outros integrantes.
O ano de 1971 também
foi especial para o Can, pois marcou a construção
do estúdio próprio, o Inner Space, em Weilerswist,
perto de Colônia. A partir de então, todos os discos
do grupo seriam lá produzidos e em 1978 ele mudaria de
nome: Can Studios.
Em
1972, o grupo conseguiria o primeiro grande sucesso comercial
em seu país com o disco Ege Bamyasi, graças
à faixa "Spoon" que havia sido usada no filme
Das Messer. Outra canção do disco
foi usada em outra película: "Vitamin C", utilizada
pelo diretor Samuel Fuller em Tote Taube in der Beethovenstrasse.
O disco marca uma maior interação com as primeiras
e primárias baterias eletrônicas, instrumento que
já havia sido utilizado na faixa "Peking O",
de Tago Mago.
O
próximo disco do grupo, Future Days, marca
a saída do cantor japonês Damo Suzuki, que se torna
Testemunha de Jeová e deixa o Can da mesma maneira como
havia entrado: de modo surpreedente e abrupto.
Com a saída de Damo,
algumas mudanças se processam na banda, que busca internamente
um novo vocalista. Michael Karoli é considerado o titular
do posto, embora nos anos seguintes, vários convidados
tenham deixado sua voz, incluindo Tim Hardin.
Em 1974, o grupo faz, em
Berlim, o concerto mais longo de sua carreira, e muito provavelmente,
um dos mais longos da história: doze horas e meia em cima
de um palco, em uma apresentação que começou
às oito da noite e só terminou às oito e
meia da manhã. No mesmo ano é lançado dois
discos: Limited Edition e Soon Over Babaluma.
Em
1975, o grupo começa uma nova era. Reduzido a um quarteto,
o Can lança um de seus discos mais inovadores e bem produzidos,
Landed.
O grupo acaba sendo considerado
o mais moderno e revolucionário do planeta pelos críticos
ingleses. Cuidadosamente elaborado, Landed, mostra
um avanço significativo na produção e no
desenvolvimento de idéias e em conceitos.
Em
1976 é a vez de um novo disco Flow Motion,
que pela primeira vez consegue uma música de sucesso na
Inglaterra: "I Want More". Nesse mesmo ano, o Can lança
mais dois discos: a coletânea Opener e
o disco duplo Unlimited Edition, que nada mais
era as mesmas canções do disco Limited Edition
e outras que não haviam sido lançadas.
Em 1977 o grupo ganha dois
novos integrantes: Rosko Gee (baixo) e Reebop Kwaku Baah (percussão),
ex-membros do Traffic.
Com
isso, Holger ficaria encarregado de "sons especiais",
utilizando um rádio de ondas curtas. A idéia era
criar novos impulsos através de sinais de rádio,
mas a idéia não vingou dentro do Can.
Com isso, Holger acabou
deixando o grupo em maio de 1977, após o final da turnê.
O show final foi realizado na cidade de Lisboa, em Portugal, para
10 mil pessoas e o grupo deixou um ponto de interrogação
para os seus fãs. Seria possível o grupo sobreviver
sem um dos seus mais brilhantes colaboradores?
Em
1978 é lançada a compilação Cannibalism
No. 1 e Out Of Reach, o primeiro disco
sem Holger. O disco é considerado um fracasso pelos próprios
membros: "algumas pessoas disseram que gostaram dele, mas
eu não vi nenhuma mágica durante as gravações",
afirmou Irmin.
Enquanto isso, Holger começava
uma carreira-solo lançado o disco Movies, utilizando sua
idéia de ondas curtas. Nesse disco, Holger conta com ex-companheiros
do Can, como Michael Karoli, Irmin Schmidt, Jaki Leibezeit, e
Reebop Kwaku Baah, além de John Foxx, do grupo inglês
Ultravox e do famoso produtor alemão Conny Plank. O disco
levou dois anos para ser concluído e Holger confessa que
por várias vezes achou que iria abandonar o projeto, mas
foi estimulado por Foxx a continuar as gravações.
Sem Holger, o Can resolveu
encerrar suas atividades. Mais do que uma banda interessada em
fazer sucesso, havia uma grande unidade entre os músicos
e Irmin confessa que ficou muito difícil trabalhar sem
tão precioso colaborador. A saída encontrada foi
cada um seguir uma carreira-solo, enquanto a influência
do Can era espalhada por todo planeta.
Em
1978, Holger editou o disco Can e viu vários
grupos punks revelarem sua admiração pelo som de
sua antiga banda. Pete Shelley, guitarrista dos Buzzcocks, afirmava
que sem Marc Bolan e Michael Karoli jamais teria empunhado uma
guitarra. Mark E. Smith, do Fall, confessou ter assistido alguns
shows do grupo e era fascinado com a hipnose que provocavam. E
também o grupo americano Pere Ubu, admitia ter chupado
muito de seu "caos criativo" ouvindo e vendo os alemães.
Holger passou pelo Brasil
em janeiro de 1986 dando algumas palestras em que teve pouca presença
de público e onde falou de sua idéias e concepções.
E em 1987 conta que recebeu uma carta que faria o Can se reunir
novamente.
"Malcolm
Mooney nos escreveu uma carta dos Estados Unidos perguntando se
não podíamos nos reunir novamente. Ele contava que
havia tentado uma carreira na América, mas que não
havia tido nenhum sucesso e queria fazer uma nova tentativa. Disse
que estava ansioso em descobrir como se comportaria em frente
a um novo microfone e se isso o deixaria doente novamente, quando
nos deixou. Acabamos indo para o sul da França, onde Michael
Karoli havia montando um estúdio e a velha química
parecia ter voltado. Assim nasceu Rite Time,
um disco forte e que considero o meu favorito entre todos que
gravamos."
A
reunião, porém, pouco durou e o grupo voltou a hibernar
até 1997, quando se reuniram com a formação
original para lançar Sacrilege,
um disco de remixes feitos por vários admiradores
do Can, como Sonic Youth, Pete Shelley, Air Liquide, U.N.K.L.E,
A Guy Called Gerald, entre outros.
Em 1999 é lançado
um CD duplo contendo gravações ao vivo entre os
anos de 1971 e 1977, Can Live Music (Live 1971-1977),
acompanhado de vários shows para promovê-lo.
O grupo terminou logo depois
e hoje cada um leva sua vida separadamente. Deixo vocês
com a discografia do grupo. Um abraço e até a próxima
coluna.
Discografia
Monster Movie (1969)
Soundtracks (1970)
Tago Mago (1971)
Ege Bamyasi (1972)
Future Days (1973)
Limited Edition (1974)
Soon Over Babaluma (1974)
Landed (1975)
Flow Motion (1976)
Opener* (1976)
Unlimited Edition** (1976)
Saw Delight (1977)
Out Of Reach (1978)
Cannibalism No. 1* (1978)
Can (1979)
Can - Delay 1968 (1981)
Incandescence (1981)
Only You (1982)
Prehistoric Future (1984. Gravado no primeiro show do grupo, em
1968)
Rite Time (1989)
Fischerman's Friend Remixes (1990)
Cannibalism No. 2* (1991)
Cannibalism No. 3* (compilation solo)
The Peel Sessions (Tony Wanna Go/Tape Kebab/Up The Bakerloo Line
With Annie) (1995)
Sacrilege: Remixes (1997)
Can Live Music (Live 1971-1977)
* compilação
simples
** compilação dupla
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