149 - Can


O Can é um dos ícones do rock alemão dos anos 70. Contemporâneos do Kraftwerk e um dos marcos do chamado "krautrock", esse grupo foi considerado um dos mais interessantes nomes do rock progressivo, embora esse termo seja por demais limitante à banda. Sua mistura de rock, minimalismo, jazz e longas viagens mostrava que o Can era muito mais sofisticado do que Pink Floyd e Yes, por exemplo, e ficando mais próximos dos ingleses King Crimson, Gentle Giant e Soft Machine. Um de seus líderes é Holger Czukay, músico extraordinário e que deu uma palestra no Brasil em janeiro de 1986 para alguns felizardos. Sua obra é recheada de momentos belos e estranhos, e entre todos eles fulgura o clássico Tago Mago. Seu som anárquico e completamente experimental influenciou várias bandas nascentes do movimento punk, como PiL, Gang of Four, The Fall e é uma das alegrias confessas de The Edge. Por isso, é mais do que hora de abordamos esses alemães malucos e geniais.


no sentido horário:  David Johnson,  Michael Karoli, Jaki Liebezeit, Holger Czukay, Malcolm Mooney e  Irmin Schmidt"Nunca fomos um grupo de rock normal. O Can sempre foi uma comunidade anarquista." A frase dita por um de seus fundadores, Irmin Schmidt, retrata o que foi essa banda alemã, uma das mais importantes e relevantes dos anos 70. Talvez pela enorme fama que o Kraftwerk conseguiu, poucos conseguiram enxergar ou apurar os ouvidos com o som do Can, um dos maiores nomes do "krautrock". Basicamente os grupos de "krautrock" eram considerados iguais aos de rock progressivo feito especialmente na Inglaterra. Mas havia uma diferença. Os grupos alemães estavam mais preocupados com a parte rítmica e em criar músicas hipnóticas, ao contrário das bandas inglesas, que abusavam de solos imensos e voltavam seus temas para a Idade Média. Os mais importantes grupos de "krautrock" foram, além do Can, o Kraftwerk, o Faust, o Neu!, Amon Düul II e o Cluster.

Holger e IrminA história do Can começa em 1968, na cidade de Colônia. Cinco jovens resolvem se encontrar para montar um grupo. O anfitrião, Irmin Schmidt (pianista), recebe Holger Czukay (baixista), David Johnson (flautista), Jaki Liebezeit (baterista) e Michael Karoli. Todos eram músicos já renomados e que haviam tido experiências anteriores. Em pauta, a criação de um novo conceito sonoro, totalmente radical para aqueles tempos. Uma mistura de rock, com elementos de free jazz (a grande paixão de Liebezeit), eletrônica, colagem, etc...

A primeira aparição do Can consta meses depois, em junho, no Schloss Noervenich em uma exibição de arte moderna. Essa apresentação acabaria sendo lançada em 1984 em um edição limitada de duas mil cópias em fita cassete com o nome de Prehistoric Future, em Paris, pelo selo Tago Mago.

o Can em 1969: na parte de cima, Malcolm, Jaki e Michael; embaixo, Holger e IrminNeste show a banda tocou sob o nome Inner Space e utilizando os instrumentos de um grupo chamado Organisation, do qual faziam parte Ralf Hütter e Florian Schneider, que anos depois formariam o Kraftwerk. Nessa mesma época, Irmin recebeu a visita do escultor norte-americano Malcolm Mooney, que acabou entrando no grupo e conduziu os alemães mais próximos dos limites do rock. Em seguida, David Johnson deixa o grupo e Jaki e Malcolm aparecem com um novo nome: Can.

capa do disco Monster MovieAssim, em 1969, lançam o primeiro disco, Monster Movie. Gravado apenas em dois canais, o trabalho já trazia uma concepção totalmente inusitada para a década de 60. O disco foi gravado no mesmo local de seu primeiro show e produzido pelo próprio grupo. Eram quantro composições, sendo que a última, "You Doo Right", tinha mais de 20 minutos.

Holger conta que nenhuma gravadora quis bancar o lançamento do disco que tinha uma outra capa e que eles mesmos bancaram a edição com a Scheisshouse Records. Além de Monster Movie, o disco Technical Space Composer's Crew do Canaxis5 foi o outro lançamento do selo.

capa do disco SoundtracksEm 1970, o grupo lança o segundo disco Soundtracks, em que o Can mostra algumas trilhas sonoras da qual participou: Deadlocks, Cream, Mädchen Mit Gewalt, Deep End e Bottom - Ein Grosser Graublauer Vogel.

Esse trabalho marca o fim da participação de Malcolm que voltou para os Estados Unidos para se tratar de seus inúmero problemas psicológicos. Das sete faixas do disco, Malcolm colocou a voz em apenas duas: "Soul Desert" e "She Brings the Rain". Nas outras quatro faixas em que se necessitava de um cantor, o grupo apresentou um novo vocalista; o japonês Kenji "Damo" Suzuki.

Kenji "Damo" SuzukiHolger e Jaki haviam conhecido Damo em Munique, onde vivia como mascate nas ruas da cidade, tentando coletar dinheiro para voltar à sua terra natal. Damo havia participado da produção do musical Hair, documentário que marcou todo o movimento hippie dos anos 60. E no mesmo final de semana em que conheceu os dois membros do Can, Damo foi convidado para tocar com a banda, no clube Blow Up, na própria Munique. E, apesar da performance caótica e ainda mostrando que o grupo necessitava evoluir muito, é considerado uma das mais belas apresentações da carreira do Can.

Vale registrar que todo o período vivido com Malcolm pode ser melhor conhecido no discoCan - Delay 1968, lançado originalmente em 1981.

E o grupo mostrou a tão prometida evolução com o próximo lançamento, o mais importante de sua carreira e um dos discos mais importantes do rock alemão e que influenciou dezenas de bandas inglesas e até americanas: Tago Mago.

capa do disco Tago MagoMuitos consideram, de fato, o primeiro disco do Can, já que o primeiro teve uma produção caótica e Soundtracks é uma coletânea das trilhas-sonoras dos anos de 1969 e 1970.

O disco é o testamento da capacidade da banda: moldado pelos ritmos frenéticos e quebrados pensados por Czukay e Liebezeit, os cincos assinam as composições em uma viagem que mistura mistério, psicodelias, climas orientais e longas viagens ao desconhecido. Tago Mago foi eleito um dos melhores discos do ano pelos críticos ingleses e franceses e a voz de Damo parecia ser perfeita para as experimentações dos quatro outros integrantes.

O ano de 1971 também foi especial para o Can, pois marcou a construção do estúdio próprio, o Inner Space, em Weilerswist, perto de Colônia. A partir de então, todos os discos do grupo seriam lá produzidos e em 1978 ele mudaria de nome: Can Studios.

capa do disco Ege BamyasiEm 1972, o grupo conseguiria o primeiro grande sucesso comercial em seu país com o disco Ege Bamyasi, graças à faixa "Spoon" que havia sido usada no filme Das Messer. Outra canção do disco foi usada em outra película: "Vitamin C", utilizada pelo diretor Samuel Fuller em Tote Taube in der Beethovenstrasse. O disco marca uma maior interação com as primeiras e primárias baterias eletrônicas, instrumento que já havia sido utilizado na faixa "Peking O", de Tago Mago.

O próximo disco do grupo, Future Days, marca a saída do cantor japonês Damo Suzuki, que se torna Testemunha de Jeová e deixa o Can da mesma maneira como havia entrado: de modo surpreedente e abrupto.

Com a saída de Damo, algumas mudanças se processam na banda, que busca internamente um novo vocalista. Michael Karoli é considerado o titular do posto, embora nos anos seguintes, vários convidados tenham deixado sua voz, incluindo Tim Hardin.

Em 1974, o grupo faz, em Berlim, o concerto mais longo de sua carreira, e muito provavelmente, um dos mais longos da história: doze horas e meia em cima de um palco, em uma apresentação que começou às oito da noite e só terminou às oito e meia da manhã. No mesmo ano é lançado dois discos: Limited Edition e Soon Over Babaluma.

Em 1975, o grupo começa uma nova era. Reduzido a um quarteto, o Can lança um de seus discos mais inovadores e bem produzidos, Landed.

O grupo acaba sendo considerado o mais moderno e revolucionário do planeta pelos críticos ingleses. Cuidadosamente elaborado, Landed, mostra um avanço significativo na produção e no desenvolvimento de idéias e em conceitos.

capa do disco Unlimited EditionEm 1976 é a vez de um novo disco Flow Motion, que pela primeira vez consegue uma música de sucesso na Inglaterra: "I Want More". Nesse mesmo ano, o Can lança mais dois discos: a coletânea Opener e o disco duplo Unlimited Edition, que nada mais era as mesmas canções do disco Limited Edition e outras que não haviam sido lançadas.

Em 1977 o grupo ganha dois novos integrantes: Rosko Gee (baixo) e Reebop Kwaku Baah (percussão), ex-membros do Traffic.

Com isso, Holger ficaria encarregado de "sons especiais", utilizando um rádio de ondas curtas. A idéia era criar novos impulsos através de sinais de rádio, mas a idéia não vingou dentro do Can.

Com isso, Holger acabou deixando o grupo em maio de 1977, após o final da turnê. O show final foi realizado na cidade de Lisboa, em Portugal, para 10 mil pessoas e o grupo deixou um ponto de interrogação para os seus fãs. Seria possível o grupo sobreviver sem um dos seus mais brilhantes colaboradores?

 

capa do disco Out Of ReachEm 1978 é lançada a compilação Cannibalism No. 1 e Out Of Reach, o primeiro disco sem Holger. O disco é considerado um fracasso pelos próprios membros: "algumas pessoas disseram que gostaram dele, mas eu não vi nenhuma mágica durante as gravações", afirmou Irmin.

Enquanto isso, Holger começava uma carreira-solo lançado o disco Movies, utilizando sua idéia de ondas curtas. Nesse disco, Holger conta com ex-companheiros do Can, como Michael Karoli, Irmin Schmidt, Jaki Leibezeit, e Reebop Kwaku Baah, além de John Foxx, do grupo inglês Ultravox e do famoso produtor alemão Conny Plank. O disco levou dois anos para ser concluído e Holger confessa que por várias vezes achou que iria abandonar o projeto, mas foi estimulado por Foxx a continuar as gravações.

Sem Holger, o Can resolveu encerrar suas atividades. Mais do que uma banda interessada em fazer sucesso, havia uma grande unidade entre os músicos e Irmin confessa que ficou muito difícil trabalhar sem tão precioso colaborador. A saída encontrada foi cada um seguir uma carreira-solo, enquanto a influência do Can era espalhada por todo planeta.

Em 1978, Holger editou o disco Can e viu vários grupos punks revelarem sua admiração pelo som de sua antiga banda. Pete Shelley, guitarrista dos Buzzcocks, afirmava que sem Marc Bolan e Michael Karoli jamais teria empunhado uma guitarra. Mark E. Smith, do Fall, confessou ter assistido alguns shows do grupo e era fascinado com a hipnose que provocavam. E também o grupo americano Pere Ubu, admitia ter chupado muito de seu "caos criativo" ouvindo e vendo os alemães.

Holger passou pelo Brasil em janeiro de 1986 dando algumas palestras em que teve pouca presença de público e onde falou de sua idéias e concepções. E em 1987 conta que recebeu uma carta que faria o Can se reunir novamente.

capa do disco Rite Time"Malcolm Mooney nos escreveu uma carta dos Estados Unidos perguntando se não podíamos nos reunir novamente. Ele contava que havia tentado uma carreira na América, mas que não havia tido nenhum sucesso e queria fazer uma nova tentativa. Disse que estava ansioso em descobrir como se comportaria em frente a um novo microfone e se isso o deixaria doente novamente, quando nos deixou. Acabamos indo para o sul da França, onde Michael Karoli havia montando um estúdio e a velha química parecia ter voltado. Assim nasceu Rite Time, um disco forte e que considero o meu favorito entre todos que gravamos."

da esquerda para a direita: Jaki, Michael, Holger e IrminA reunião, porém, pouco durou e o grupo voltou a hibernar até 1997, quando se reuniram com a formação original para lançar Sacrilege, um disco de remixes feitos por vários admiradores do Can, como Sonic Youth, Pete Shelley, Air Liquide, U.N.K.L.E, A Guy Called Gerald, entre outros.

Em 1999 é lançado um CD duplo contendo gravações ao vivo entre os anos de 1971 e 1977, Can Live Music (Live 1971-1977), acompanhado de vários shows para promovê-lo.

O grupo terminou logo depois e hoje cada um leva sua vida separadamente. Deixo vocês com a discografia do grupo. Um abraço e até a próxima coluna.

Discografia

Monster Movie (1969)
Soundtracks (1970)
Tago Mago (1971)
Ege Bamyasi (1972)
Future Days (1973)
Limited Edition (1974)
Soon Over Babaluma (1974)
Landed (1975)
Flow Motion (1976)
Opener* (1976)
Unlimited Edition** (1976)
Saw Delight (1977)
Out Of Reach (1978)
Cannibalism No. 1* (1978)
Can (1979)
Can - Delay 1968 (1981)
Incandescence (1981)
Only You (1982)
Prehistoric Future (1984. Gravado no primeiro show do grupo, em 1968)
Rite Time (1989)
Fischerman's Friend Remixes (1990)
Cannibalism No. 2* (1991)
Cannibalism No. 3* (compilation solo)
The Peel Sessions (Tony Wanna Go/Tape Kebab/Up The Bakerloo Line With Annie) (1995)
Sacrilege: Remixes (1997)
Can Live Music (Live 1971-1977)

* compilação simples
** compilação dupla



 

 

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