36 - Capital Inicial

Eles formavam com a Plebe Rude e a Legião Urbana a trinca das bandas de Brasília, não só por tocarem no mesmo período, mas por possuírem a mesma ideologia. O vocalista Dinho foi quase transformado em sex-symbol do rock tupiniquim, mas o cetro acabou mesmo na mão de Paulo Ricardo, do RPM. O primeiro álbum da banda é um clássico do rock brasileiro e continha um selo de venda proibida para menores de 18 anos por causa da música "Veraneio Vascaína", letra que atacou a Polícia Militar do país. A banda depois teve baixas, vendeu pouco, sumiu e ressurgiu com um acústico da MTV. Conheça um pouco mais da banda.


Eu me lembro de uma crítica em uma revista falando de dois lançamentos simultâneos do rock brasileiro, em 1986: o Dois da Legião Urbana e o primeiro do Capital Inicial. Assim que encontrei na loja, comprei os dois de uma vez só. Eu já era fã de Legião, mas mesmo assim, o que mais queria ouvir era o do Capital.

Era uma época em que a Bizz prestava, você lia e relia algumas vezes, batia com o que se queria ler. Flávio Lemos fora parceiro de Renato Russo de poucas e boas canções. Em uma viagem para assistir o programa Perdidos da Noite, quando Fausto Silva era realmente divertido, ele perguntou para a banda se era verdade que tinham uma música censurada. O pessoal todo de Ribeirão, da qual eu fazia parte, berrou "Veraneio Vascaína". Eles tocaram e o teatro vibrou. Isso me faz lembrar de um dos primeiros programas do Perdidos, que me marcou. Antes de fazer o primeiro disco, o Ultraje a Rigor era a atração. Faustão perguntou para Roger se a banda era boa. Na lata Roger retrucou: ''não deve ser não, caso contrário, não teríamos vindo para cá.'' O Faustão ficou com cara de bobo e sem resposta.

Mas não vamos falar de Fausto Silva e sim do grupo. O disco começa com uma parceira dos irmãos Fê e Flávio Lemos, respectivamente baixista e baterista da banda, além de Renato Russo e André Pretorius. Era uma música agitada, com naipes de metais, bem produzida ("Música Urbana"). E havia a "Música Urbana 2" no disco Dois, do Legião.

''O Capital sempre foi mais eclético do que a Plebe e a Legião. Parece que nós somos menos intensos, mas isso é falso. Nossos shows são tão energéticos como os outros de Brasília", dizia Dinho, na época.

Na verdade a banda gostava de fazer shows com uma equipe de metais e teclados ao vivo. Foi aí que entrou Bozo Barretti, um dos produtores do primeiro disco. Ele acabou entrando no grupo no segundo LP, como integrante.

Como todo garoto do interior onde a música sertaneja predominava, encontrar uma loja de discos que fazia sua cabeça era difícil. Eu ouvia o disco sem parar, e todo mundo queria montar uma banda para acompanhar a febre do rock Brasil. Afinal, era a época do Plano Cruzado e as gravadoras estavam pegando qualquer grupo para produzir e vender. Eu não estou certo nos números, mas acho que o primeiro Capital foi disco de platina, por superar as 250 mil cópias.

Letras como a de "Psicopata", que dizia "Essa vida me maltrata, estou virando um psicopata", faziam muito sentido. "Veraneio Vascaína", a música mais punk do disco, causava furor entre a molecada. "Leve Desespero" era outra que todo mundo curtia, porque era a fase de vestibular, aquela hora em que você precisa escolher uma carreira e ficava agoniado, com medo do vestibular, de fracassar, aquela fase da adolescência em que se acha que sabe tudo, mas na verdade não conhece porra nenhuma. Eu pensava: "quero ser roqueiro, não quero medicina, engenharia ou direito. Quero me divertir, sair por aí, tocando." A fase ajudava, pois as bandas contavam o começo de suas carreiras e eu pensava ''ué, posso fazer isso também". Mas minha única tentativa foi uma inútil banda em 88, quando estourei duas peles de uma bateria de um colega. Eu não sabia e não sei cantar, não toco instrumento nenhum, então me contentava em ser DJ em algumas festinhas quando me mudei para São Paulo.

Eu tinha alguns colegas de sala de aula que montaram suas bandas, inspiradas em Echo and The Bunnymen, U2, Smiths e sei lá mais o quê. Era divertido você ir a uma festa, tocar os discos que gostava, tocar violão nos finais de festa, quando todo mundo sentava e acendia uma fogueira e ficávamos lá de bobeira. Era uma fase dourada de nossas vidas.

Afinal, como dizia o Capital, ''você acha que tem tudo sob controle". Eu me lembro de uma noite onde ficamos em um bar em Ribeirão, bêbados. Já era mais de cinco horas da manhã e pedimos uma porção de macarrão. Os punks nos rodearam por causa da comida e eu pensei que ia levar uns cascudos. Mas foi só pegar uma fita do Capital no carro, colocar "Veraneio Vascaína" para que o povo saísse de cima da gente e começavam a fazer mosh no chão. Foi divertido. No final, como o macarrão era de doer, demos pros punks e fomos embora.

Nós não tínhamos uma gangue como era comum em Brasília, São Paulo, no ABC, ou qualquer outro lugar, porque não havia muitos garotos que ligavam para isso. O negócio era encher a cara, sair para dançar e acabar o final de semana em um churrasco qualquer.

Olhando hoje, depois de 15 anos, sinto mais conectado às letras do que na época. Leve Desespero, por exemplo:

Não consigo mais me concentrar
Vou tentar alguma coisa para melhorar
É importante, todos me dizem
Mas nada me acontece como eu queria
Estou perdido, sei que estou
Cego para assuntos banais
Problemas do cotidiano
Já não sei como resolver
Sob um leve desespero
Que me leva , que me leva daqui
Então é outra noite num bar
Um copo atrás do outro
Procuro trocados no meu bolso
Dá pra me arrumar um cigarro?
Não consigo mais me concentrar
Vou tentar alguma coisa para melhorar
Já estou vendo TV como companhia
Talvez se você entendesse
O que esta acontecendo
Poderia me explicar
Eu não saio do meu canto
As paredes me impedem
Eu só queria me divertir
As paredes me impedem
Já estou vendo TV como companhia

Nessa época era só para encher a cara. O período de encher a cara acabou, talvez por causa do Prozac, ou porque eu enjoei de ressaca. E hoje eu estou vendo TV como companhia, igual à letra.

A boa notícia é que a Universal lançou em edição limitada a caixa com os quatro primeiros LPs da banda. Confesso que depois do segundo, a banda não me atraía muito mais, talvez por ter perdido elo com minha adolescência.

Mas ao ouvir "Fátima", outra letra de Renato Russo em parceria com Flávio Lemos, até hoje ouço com o mesmo prazer. Críticos falavam dos vocais excessivos de Dinho. Bobagem. Aquilo fazia sentido e ainda faz. Se Dinho exagerava ou não, pouco importava. O que batia na minha alma aos 17 anos era mais importante.

Acabei falando pouco do disco e fiz uma confissão que pode encher alguns internautas. Me desculpem, mas esse disco mexeu comigo e até hoje mexe. Se encontrarem a caixa comprem. Se acharem uma edição da Millenium comprem também. Roger Daltrey, do The Who, cantava que esperava morrer antes de ficar velho. Eu também preferia. Só que até hoje ele canta e até hoje, estou vivo também.

Para finalizar, deixo a letra de "Fátima". Um abraço e me desculpem se chateei com a coluna.

Fátima
(Flávio Lemos & Renato Russo)

Vocês esperam uma intervenção divina
Mas não sabem que o tempo agora está contra vocês
Vocês se perdem no meio de tanto medo
De não conseguir dinheiro pra comprar sem se vender
E vocês armam seus esquemas ilusórios
Continuam só fingindo que o mundo ninguém fez
Mas acontece que tudo tem começo
E se começa um dia acaba, eu tenho pena de vocês
E as ameaças de ataque nuclear
Bombas de nêutrons não foi Deus quem fez
Alguém,alguém um dia vai se vingar
Vocês são vermes, pensam que são reis
Não quero ser como vocês
Eu não preciso mais
Eu já sei o que eu tenho que saber
E agora tanto faz
Três crianças sem dinheiro e sem moral
Não ouviram a voz suave que era uma lágrima
E se esqueceram de avisar pra todo mundo
Ela talvez tivesse um nome e era Fátima
E de repente o vinho virou água
E a ferida não cicatrizou
E o limpo se sujou
E no terceiro dia ninguém ressuscitou

 

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