159 - Blue Cheer

Imagine um trio na mesma época de Cream e o Experience de Jimi Hendrix tocando mais alto do que os dois juntos. Agora imagine esse mesmo trio, composto por seres alucinados fazendo uma música tão alta, tão crua e tão urgente a ponto de serem considerados um dos pais do depois difamado heavy metal. Essa banda existiu? Sim, e se chamava Blue Cheer. Seu disco de estréia, Vincebus Eruptum é um clássico dos anos 60 e um dos trabalhos mais importantes para quem ama um rock bem sujo. Uma pérola escondida dos anos 60 e que possui muitos amantes.


Dickie PetersonLeigh StephensPaul Whaley

O Blue Cheer surgiu na segunda metade dos anos 60, originalmente como um sexteto, em San Francisco. Mas, em 1967, o grupo - após várias idas e vindas internas - se fixou com um trio, composto pelo baixista Dickie Peterson, o guitarrista Leigh Stevens e o baterista Paul Whaley.

Os três possuíam estilos bem consolidados: Leigh adorava peso e distorção em sua guitarra; Dickie já tinha folha corrida em uma banda chamada Group B, com seu irmão, e tinham gravados dois compactos e até tocado no teatro Fillmore. Paul tinha tocado com um grupo de Sacramento chamado Oxford Circle, um grupo que havia aberto shows do Grateful Dead e gravado o single Mind Destruction/Foolish Woman, em 1966. No grupo ainda tocava Gary Yoder, que mais tarde tocaria no próprio Blue Cheer, além da excelente banda KAK.

capa do disco Vincebus EruptumJá em 1967 conseguem um contrato com a Philips, e em janeiro de 1968, lançam uma das pérolas do rock de garagem dos anos 60, o seminal Vincebus Eruptum. O som que o trio tirava de seus instrumentos era algo impensável para a época, muito mais alto e cru do que o Cream e Hendrix conseguiriam imaginar. De quebra, trazia uma cover para a clássica "Summertime Blues", de Eddie Cochran, canção que foi depois gravada pelo The Who, no clássico álbum ao vivo, Live at Leeds. Mas a versão do Cheer era muito mais alta e pode ser considerada um dos primórdios do que seria depois o heavy metal. Com certeza Eddie Cochran ficaria assustado se tivesse ouvido sua canção tocada dessa maneira.

O único compacto extraído do disco continha, além do clássico de Cochran, a canção "Out of Focus", composta por Dickie, enquanto esse se recuperava de uma hepatite. O disco continha apenas seis canções, sendo três de Dickie - "Doctor Please", "Second Time Around" e a própria "Out of Focus"; além de três covers - "Summertime Blues", "Rock Me Baby" e "Parchment Farm", de Mose Allison e o álbum acabou sendo um sucesso de vendas, alcançando a 11ª posição na parada norte-americana de LPs, fato esse jamais repetido pelo grupo.

O grupo possuía uma grande força ao vivo e seus shows eram tocados com tanta potência, que alguns fãs reclamavam que daquela maneira acabariam surdos. E realmente não era brincadeira a maneira pela qual o Blue Cheer se apresentava e parecia impossível que apenas três caras em cima de um palco pudesse produzir tamanho estrago.

O mais curioso é que eram considerados a "ovelha negra" da cena de San Francisco. Em seu som não havia nada do som psicodélico e viajante de Grateful Dead ou Jefferson Airplane e tão pouco falavam de paz e amor. A praia do Blue Cheer era outra e muitos os consideram um dos primeiros grupos "proto punks", já que, em termos sonoros, só encontrariam paralelo no MC5 e nos Stooges.

Dickie ao vivoTamanha impopularidade com a cena local resultou em uma grande impopularida, também, com a crítica, que sempre desprezou a banda, preferindo abraçar o som das demais bandas californianas. Por causa disso, tiveram shows cancelados no Fillmore East pelo dono do lugar, Bill Graham e uma grande decepção quando Jimi Hendrix - o grande ídolo dos três - fez comentários pouco elogiosos ao som do trio.

Dickie relata que o som da banda era muito agressivo para aqueles dias: "nós tínhamos as mesmas raízes do Cream e de Hendrix, o blues. Só que nós pegamos o blues e o amplificamos a tal ponto de ficar irreconhecível. E, apesar de não sermos selvagens, éramos considerados um grupo estranho. Não existia o termo 'heavy metal' na época, mas se existisse certamente seria usado para o que fazíamos."

capa do disco Outside InsideAinda em 1968 lançam um segundo disco, Outside Inside. O disco era dividido em duas partes: o lado "Outside" foi gravado em alguns galpões do porto de Nova York e Sacramento, enquanto a parte "Inside" foi realizada em estúdios profissionais. O disco trazia nove canções, sendo apenas duas covers - nada menos do que uma versão de "(I Can't Get No) Satisfaction", dos Rolling Stones e "The Hunter", de Jones, Wells e Jackson. As demais eram assinadas por Peterson e Stephens, sendo que três delas tiveram a participação do letrista Peter Wagner: "Feathers From Your Tree", "Sun Cycle" e "Come And Get It".

Nesse trabalho a banda teve a companhia de dois músicos, o pianista Ralph "Burns" Kellog, do grupo Mint Tattoo, de San Francisco e do cantor Eric Albronda. A produção era mais uma vez de Abe "Voco" Kesh.

O trabalho conseguiu ainda ser mais pesado do que o álbum de estréia e ainda mais feroz. Mas desta vez o Blue Cheer não encontrou respaldo comercial.

Leigh durante as gravações de Outside InsideAs apresentações da banda eram lendárias, e ao mesmo tempo, violentas: "Começamos uma violeta e assustadora viagem, pois em todos nossos shows destruíamos nossa aparelhagem para delírio da platéia. Esses momentos eram perigosíssimos e um dia minha guitarra voou e acertou a cabeça de um espectador. Em outra oportunidade um dos pratos da bateria acertou outra pessoa. E o público respondia com a mesma intensidade e violência. Algumas vezes eu parava e me perguntava o que, diabos, estava acontecendo", lembra Leigh Stephens.

Obviamente que esse caos todo refletia internamente na banda, especialmente no guitarrista, que acabou deixando o grupo após o disco. "Eu estava totalmente fora de controle e realmente precisei deixar o Blue Cheer", confessou Leigh.

Randy HoldenRandy Holden acabou sendo o escolhido e Leigh acabou indo para a Inglaterra onde montou, futuramente, dois novos grupos: Silver Metre e Pilot.

Holden havia sido o líder do grupo The Other Half e tinha um estilo menos pesado do que Leigh, embora desse mais opções estilísticas ao grupo. Mas Randy era também um cara difícil e instável e que gostava de ficar sozinho. Na verdade, Randy era uma pessoa bem difícil e isso ficou evidente no terceiro disco do Blue Cheer, batizado de New! Improved! e lançado em março de 1969.

capa do disco New! Improved!New! Improved! trazia nove composições e curiosamente o lado B é ocupado por três composições do guitarrista: "Peace Of Mind", "Fruits & Iceburgs" e "Honey Butter Lover" e o disco é considerado o mais "cerebral" de todos já gravados pela banda.

Infelizmente Randy participou apenas dessas três gravações, pois as demais seis canções do lado A - incluindo uma cover de Bob Dylan, "It Takes A Lot To Laugh, It Takes a Train to Cry" - teve a participação do guitarrista Bruce Stephens. E as gravações foram completadas pelo percussionista Gene Estes e novamente pelo pianista Ralph "Burns" Kellogg, que compôs a faixa de abertura, "When It All Gets Old".

Norman MayellE não seria apenas Randy que deixaria a banda. Paul Whaley é o próximo a pular fora e é substituído por Norman Mayell, que havia tocado com o Sopwith Camel. A saída de Paul foi determinante para uma guinada no som da banda. Sem seus dois guitarristas anteriores, que abusavam de um estilo similar ao de Hendrix, o Blue Cheer sofreria uma reformulação sonora.

Dessa maneira, o grupo vira um quarteto, com a adição em definitivo do tecladista Ralph "Burns" Kellog e do guitarrista Bruce Stephens. E com essa formação, entram novamente em estúdio para lançar o quarto disco, batizado apenas de Blue Cheer.

capa do disco Blue CheerLançado em dezembro de 1969, o disco teve algum sucesso com a canção "Hello L.A., Bye Bye Birmingham" (uma cover de Delaney & Bonnie) e conta com composições escritas por Gary Yoder, ex-guitarrista do KAK e que depois seria um dos membros do grupo. O som estava mais polido, mais calmo, quase mainstream, embora o Blue Cheer ainda passasse longe dessa definição.

Mas o grupo investia mais no lado melódico e procuravam tocar algo mais acessível, longe dos esporros dos primeiros discos.

Dickie Peterson, Norman Mayell, Bruce Stephens e Ralph "Burns" KelloggO ano de 1970 foi marcado por shows e mais shows e Bruce saiu para formar o Pilot, sendo substituído naturalmente por Gary Yoder, que lentamente se tornaria o principal compositor da banda.

capa original de BC #5 The Original Human Beingcapa alemã de BC #5 The Original Human Being

Com nova formação e novas idéias, o grupo começa a gravar o quinto disco, certamente o trabalho mais bem pensado: BC #5 The Original Human Being, o primeiro trabalho a conter apenas canções dos próprios integrantes.

Gary Yoder e Dickie PetersonLançado em setembro de 1970, o disco mostra uma grande virada com vários músicos convidados - entre eles o guitarrista Bruce Stephens - e uma sessão de metais. O som agora flutuava entre a psicodelia, progressivo e o teclado de Kellog se mostrava mais presente, assim como o sintetizador do convidado William Truckaway. A voz de Dickie também sofre mudanças, deixando de ser crua para se tornar mais suave, empostada. Gary Yoder coloca o grupo em outro plano com sua guitarra.

capa do disco Oh! Pleasant HopeE abril de 1971 é lançado o sexto disco da banda, Oh! Pleasant Hope, o mais calmo trabalho deles. Novamente com um time extenso de convidados, é quase um disco bucólico se comparado aos primeiros trabalhos da banda. O som do grupo lembra um pouco o The Band e até mesmo o Grateful Dead, de quem o Blue Cheer nunca tinha sido fã.

Mas o trabalho também marcou o fim das atividades da banda, já que não havia mais sentido para Dickie em ser Blue Cheer e ele passaria a reformar a formação do grupo milhares de vezes na década de 70 e 80, até que em 1984 convidou o antigo colega Paul Whaley e o guitarrista Tony Rainier e lançaram um novo disco, The Beast is Back.

Tony,  Dickie e PaulLançado em fevereiro de 1985, o disco saiu com apenas os três músicos nas gravações e regravando antigas músicas presentes no primeiro disco do grupo, Vincebus Eruptum - "Summertime Blues", "Out of Focus" e "Parchment Farm", além de novas canções como "Nightmares", "Ride With Me" e "Girl Next Door". The Beast is Back foi uma tentativa de resgatar o som dos anos 70 com a tecnologia disponível dos anos 80.

Andrew, Paul e Dickie em 90Mas o grupo só excursionou mesmo em 1988 e já com outra formação: além de Dickie e Paul estavam presentes Andrew "Duck" MacDonald (guitarra) e se mudaram para a Europa. Lá gravaram mais dois discos: Blitzkrieg Over Nüremberg (com Dave Salce no lugar de Paul) e Highlights And Lowlives, produzido por ninguém menos do que Jack Endino, um dos papas do movimento grunge.

capa do disco Hello Tokyo, Bye Bye Osakacapa do disco Good Times Are So Hard To Find

O grupo continou na ativa até 1999 e lançou mais dois discos, Dining With The Sharks e Hello Tokyo, Bye Bye Osaka, até a total dissolução.

capa do disco Louder Than GodDuas boas introduções ao som da banda são as coletâneas Louder Than God, de 1986 e Good Times Are So Hard To Find, de 1988, e que mostram os primórdios do Blue Cheer e o porquê de serem considerados um dos primeiros grupos de heavy metal do planeta.

Deixo vocês com a discografia do grupo. Um abraço e até a próxima coluna.

 

Discografia

Vincebus Eruptum (1968)
Outside Inside (1968)
New! Improved! (1969)
Blue Cheer (1969)
The Original Human Being (1970)
Oh! Pleasant Hope (1971)
The Beast is Back (1985)
Louder Than God (coletânea, 1986)
Blitzkrieg Over Nuremberg (1988)
Good Times Are So Hard To Find (1988)
Highlights And Lowlives (1990)
The Best Of Yesteryear (1990)
Dining With The Sharks (1992)
The Megaforce Years (1996)
Live And Unreleased '68/'74 (1996)
Hello Tokyo, Bye Bye Osaka (1999)


 

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