Imagine
um trio na mesma época de Cream e o Experience de Jimi
Hendrix tocando mais alto do que os dois juntos. Agora imagine
esse mesmo trio, composto por seres alucinados fazendo uma música
tão alta, tão crua e tão urgente a ponto
de serem considerados um dos pais do depois difamado heavy metal.
Essa banda existiu? Sim, e se chamava Blue Cheer. Seu disco de
estréia, Vincebus Eruptum é um clássico dos
anos 60 e um dos trabalhos mais importantes para quem ama um rock
bem sujo. Uma pérola escondida dos anos 60 e que possui
muitos amantes.
O Blue Cheer surgiu na
segunda metade dos anos 60, originalmente como um sexteto, em
San Francisco. Mas, em 1967, o grupo - após várias
idas e vindas internas - se fixou com um trio, composto pelo baixista
Dickie Peterson, o guitarrista Leigh Stevens e o baterista Paul
Whaley.
Os três possuíam
estilos bem consolidados: Leigh adorava peso e distorção
em sua guitarra; Dickie já tinha folha corrida em uma banda
chamada Group B, com seu irmão, e tinham gravados dois
compactos e até tocado no teatro Fillmore. Paul tinha tocado
com um grupo de Sacramento chamado Oxford Circle, um grupo que
havia aberto shows do Grateful Dead e gravado o single Mind
Destruction/Foolish Woman, em 1966. No grupo ainda tocava
Gary Yoder, que mais tarde tocaria no próprio Blue Cheer,
além da excelente banda KAK.
Já
em 1967 conseguem um contrato com a Philips, e em janeiro de 1968,
lançam uma das pérolas do rock de garagem dos anos
60, o seminal Vincebus Eruptum. O som que o trio
tirava de seus instrumentos era algo impensável para a
época, muito mais alto e cru do que o Cream e Hendrix conseguiriam
imaginar. De quebra, trazia uma cover para a clássica "Summertime
Blues", de Eddie Cochran, canção que foi depois
gravada pelo The Who, no clássico álbum ao vivo,
Live at Leeds. Mas a versão do Cheer era
muito mais alta e pode ser considerada um dos primórdios
do que seria depois o heavy metal. Com certeza Eddie Cochran ficaria
assustado se tivesse ouvido sua canção tocada dessa
maneira.
O único compacto
extraído do disco continha, além do clássico
de Cochran, a canção "Out of Focus", composta
por Dickie, enquanto esse se recuperava de uma hepatite. O disco
continha apenas seis canções, sendo três de
Dickie - "Doctor Please", "Second Time Around"
e a própria "Out of Focus"; além de três
covers - "Summertime Blues", "Rock Me Baby"
e "Parchment Farm", de Mose Allison e o álbum
acabou sendo um sucesso de vendas, alcançando a 11ª
posição na parada norte-americana de LPs, fato esse
jamais repetido pelo grupo.
O
grupo possuía uma grande força ao vivo e seus shows
eram tocados com tanta potência, que alguns fãs reclamavam
que daquela maneira acabariam surdos. E realmente não era
brincadeira a maneira pela qual o Blue Cheer se apresentava e
parecia impossível que apenas três caras em cima
de um palco pudesse produzir tamanho estrago.
O mais curioso é
que eram considerados a "ovelha negra" da cena de San
Francisco. Em seu som não havia nada do som psicodélico
e viajante de Grateful Dead ou Jefferson Airplane e tão
pouco falavam de paz e amor. A praia do Blue Cheer era outra e
muitos os consideram um dos primeiros grupos "proto punks",
já que, em termos sonoros, só encontrariam paralelo
no MC5 e nos Stooges.
Tamanha
impopularidade com a cena local resultou em uma grande impopularida,
também, com a crítica, que sempre desprezou a banda,
preferindo abraçar o som das demais bandas californianas.
Por causa disso, tiveram shows cancelados no Fillmore East pelo
dono do lugar, Bill Graham e uma grande decepção
quando Jimi Hendrix - o grande ídolo dos três - fez
comentários pouco elogiosos ao som do trio.
Dickie relata que o som
da banda era muito agressivo para aqueles dias: "nós
tínhamos as mesmas raízes do Cream e de Hendrix,
o blues. Só que nós pegamos o blues e o amplificamos
a tal ponto de ficar irreconhecível. E, apesar de não
sermos selvagens, éramos considerados um grupo estranho.
Não existia o termo 'heavy metal' na época, mas
se existisse certamente seria usado para o que fazíamos."
Ainda
em 1968 lançam um segundo disco, Outside Inside.
O disco era dividido em duas partes: o lado "Outside"
foi gravado em alguns galpões do porto de Nova York e Sacramento,
enquanto a parte "Inside" foi realizada em estúdios
profissionais. O disco trazia nove canções, sendo
apenas duas covers - nada menos do que uma versão de "(I
Can't Get No) Satisfaction", dos Rolling Stones e "The
Hunter", de Jones, Wells e Jackson. As demais eram assinadas
por Peterson e Stephens, sendo que três delas tiveram a
participação do letrista Peter Wagner: "Feathers
From Your Tree", "Sun Cycle" e "Come And Get
It".
Nesse trabalho a banda
teve a companhia de dois músicos, o pianista Ralph "Burns"
Kellog, do grupo Mint Tattoo, de San Francisco e do cantor Eric
Albronda. A produção era mais uma vez de Abe "Voco"
Kesh.
O trabalho conseguiu ainda
ser mais pesado do que o álbum de estréia e ainda
mais feroz. Mas desta vez o Blue Cheer não encontrou respaldo
comercial.
As
apresentações da banda eram lendárias, e
ao mesmo tempo, violentas: "Começamos uma violeta
e assustadora viagem, pois em todos nossos shows destruíamos
nossa aparelhagem para delírio da platéia. Esses
momentos eram perigosíssimos e um dia minha guitarra voou
e acertou a cabeça de um espectador. Em outra oportunidade
um dos pratos da bateria acertou outra pessoa. E o público
respondia com a mesma intensidade e violência. Algumas vezes
eu parava e me perguntava o que, diabos, estava acontecendo",
lembra Leigh Stephens.
Obviamente que esse caos
todo refletia internamente na banda, especialmente no guitarrista,
que acabou deixando o grupo após o disco. "Eu estava
totalmente fora de controle e realmente precisei deixar o Blue
Cheer", confessou Leigh.
Randy
Holden acabou sendo o escolhido e Leigh acabou indo para a Inglaterra
onde montou, futuramente, dois novos grupos: Silver Metre e Pilot.
Holden havia sido o líder
do grupo The Other Half e tinha um estilo menos pesado do que
Leigh, embora desse mais opções estilísticas
ao grupo. Mas Randy era também um cara difícil e
instável e que gostava de ficar sozinho. Na verdade, Randy
era uma pessoa bem difícil e isso ficou evidente no terceiro
disco do Blue Cheer, batizado de New! Improved!
e lançado em março de 1969.
New!
Improved! trazia nove composições e curiosamente
o lado B é ocupado por três composições
do guitarrista: "Peace Of Mind", "Fruits &
Iceburgs" e "Honey Butter Lover" e o disco é
considerado o mais "cerebral" de todos já gravados
pela banda.
Infelizmente Randy participou
apenas dessas três gravações, pois as demais
seis canções do lado A - incluindo uma cover de
Bob Dylan, "It Takes A Lot To Laugh, It Takes a Train to
Cry" - teve a participação do guitarrista Bruce
Stephens. E as gravações foram completadas pelo
percussionista Gene Estes e novamente pelo pianista Ralph "Burns"
Kellogg, que compôs a faixa de abertura, "When It All
Gets Old".
E
não seria apenas Randy que deixaria a banda. Paul Whaley
é o próximo a pular fora e é substituído
por Norman Mayell, que havia tocado com o Sopwith Camel. A saída
de Paul foi determinante para uma guinada no som da banda. Sem
seus dois guitarristas anteriores, que abusavam de um estilo similar
ao de Hendrix, o Blue Cheer sofreria uma reformulação
sonora.
Dessa maneira, o grupo
vira um quarteto, com a adição em definitivo do
tecladista Ralph "Burns" Kellog e do guitarrista Bruce
Stephens. E com essa formação, entram novamente
em estúdio para lançar o quarto disco, batizado
apenas de Blue Cheer.
Lançado
em dezembro de 1969, o disco teve algum sucesso com a canção
"Hello L.A., Bye Bye Birmingham" (uma cover de Delaney
& Bonnie) e conta com composições escritas por
Gary Yoder, ex-guitarrista do KAK e que depois seria um dos membros
do grupo. O som estava mais polido, mais calmo, quase mainstream,
embora o Blue Cheer ainda passasse longe dessa definição.
Mas o grupo investia mais
no lado melódico e procuravam tocar algo mais acessível,
longe dos esporros dos primeiros discos.
O
ano de 1970 foi marcado por shows e mais shows e Bruce saiu para
formar o Pilot, sendo substituído naturalmente por Gary
Yoder, que lentamente se tornaria o principal compositor da banda.
Com nova formação
e novas idéias, o grupo começa a gravar o quinto
disco, certamente o trabalho mais bem pensado: BC #5 The
Original Human Being, o primeiro trabalho a conter apenas
canções dos próprios integrantes.
Lançado
em setembro de 1970, o disco mostra uma grande virada com vários
músicos convidados - entre eles o guitarrista Bruce Stephens
- e uma sessão de metais. O som agora flutuava entre a
psicodelia, progressivo e o teclado de Kellog se mostrava mais
presente, assim como o sintetizador do convidado William Truckaway.
A voz de Dickie também sofre mudanças, deixando
de ser crua para se tornar mais suave, empostada. Gary Yoder coloca
o grupo em outro plano com sua guitarra.
E
abril de 1971 é lançado o sexto disco da banda,
Oh! Pleasant Hope, o mais calmo trabalho deles.
Novamente com um time extenso de convidados, é quase um
disco bucólico se comparado aos primeiros trabalhos da
banda. O som do grupo lembra um pouco o The Band e até
mesmo o Grateful Dead, de quem o Blue Cheer nunca tinha sido fã.
Mas o trabalho também
marcou o fim das atividades da banda, já que não
havia mais sentido para Dickie em ser Blue Cheer e ele passaria
a reformar a formação do grupo milhares de vezes
na década de 70 e 80, até que em 1984 convidou o
antigo colega Paul Whaley e o guitarrista Tony Rainier e lançaram
um novo disco, The Beast is Back.
Lançado
em fevereiro de 1985, o disco saiu com apenas os três músicos
nas gravações e regravando antigas músicas
presentes no primeiro disco do grupo, Vincebus Eruptum
- "Summertime Blues", "Out of Focus" e "Parchment
Farm", além de novas canções como "Nightmares",
"Ride With Me" e "Girl Next Door". The
Beast is Back foi uma tentativa de resgatar o som dos
anos 70 com a tecnologia disponível dos anos 80.
Mas
o grupo só excursionou mesmo em 1988 e já com outra
formação: além de Dickie e Paul estavam presentes
Andrew "Duck" MacDonald (guitarra) e se mudaram para
a Europa. Lá gravaram mais dois discos: Blitzkrieg
Over Nüremberg (com Dave Salce no lugar de Paul)
e Highlights And Lowlives, produzido por ninguém
menos do que Jack Endino, um dos papas do movimento grunge.
O grupo continou na ativa
até 1999 e lançou mais dois discos, Dining
With The Sharks e Hello Tokyo, Bye Bye Osaka,
até a total dissolução.
Duas
boas introduções ao som da banda são as coletâneas
Louder Than God, de 1986 e Good Times
Are So Hard To Find, de 1988, e que mostram os primórdios
do Blue Cheer e o porquê de serem considerados um dos primeiros
grupos de heavy metal do planeta.
Deixo vocês com a
discografia do grupo. Um abraço e até a próxima
coluna.
Discografia
Vincebus Eruptum (1968)
Outside Inside (1968)
New! Improved! (1969)
Blue Cheer (1969)
The Original Human Being (1970)
Oh! Pleasant Hope (1971)
The Beast is Back (1985)
Louder Than God (coletânea, 1986)
Blitzkrieg Over Nuremberg (1988)
Good Times Are So Hard To Find (1988)
Highlights And Lowlives (1990)
The Best Of Yesteryear (1990)
Dining With The Sharks (1992)
The Megaforce Years (1996)
Live And Unreleased '68/'74 (1996)
Hello Tokyo, Bye Bye Osaka (1999)
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