parceria com Fabio
Golfetti
Poucas
coisas na vida valem mais a pena do que conversar com uma lenda.
E poucas coisas podem ser mais chatas do que isso, especialmente
quando essa pessoa está rancorosa demais, triste demais
ou simplesmente não consegue exprimir mais nada. Daevid
Allen está longe disso. Fundador do Soft Machine e do Gong,
ele já tem um papel fundamental na história da música.
Mas essa figura reclusa e com quase 70 anos, ainda quer mais.
Daevid é um dos poucos que vive e acredita no que faz.
Foi amigo de Syd Barrett, de quem falou nessa entrevista. Daevid
viveu experiências místicas e, talvez, insanas, para
poder encontrar sua verdade interior. E ele é capaz de
ainda fornecer entrevistas como essa, mostrando um grande senso
de humor e provando que não é apenas uma figura
que deseja viver de um passado glorioso, até porque ele
não ama muito tocar os "velhos clássicos".
Ele gosta mesmo é do presente.
Para falar com
ele, convidei o maior fã de Gong e de Daevid por essas
bandas: Fabio Golfetti, líder do Violeta de Outono e que
faz parte do Invisible Opera, projeto concebido por Daevid. Fabio
me ajudou com algumas perguntas e fez um texto introdutório,
onde a história e a emoção se misturam. E,
é com imenso prazer que, pela primeira vez, uma entrevista
com tal lenda é publicada no Brasil. E como mesmo falou
o mestre, "vamos manter nossos corações e mentes
abertos"...
Poucos
artistas conseguem ao mesmo tempo se reinventar continuamente
e ainda estar na vanguarda dos acontecimentos. Daevid é
um destes "avatares" que chegou à Europa, particularmente
na Inglaterra, e sempre esteve na liderança invisível
das transformações: em 1963 já tinha um grupo
que era o núcleo da Canterbury Scene; enquanto os Beatles
estavam tocando "Love Me Do", Daevid estava criando
uma música que ía do free-jazz ao rock e desenvolvendo
colagens musicais com tapes. Em 1966, criou o Soft Machine que,
juntamente com o Pink Floyd, transformou a música pop para
um caminho sem volta.
Em 1972, o Gong foi
a primeira banda a assinar contrato com uma pequena gravadora
independente, a Virgin Records, e em 1978, juntou alguns músicos
do underground de Nova York para formar o New York Gong, banda
que revelou o baixista/produtor Bill Laswell. Conheci Daevid no
final dos anos 80 quando ele estava em retiro na Austrália.
Na época, eu estava interessado em me unir ao Invisible
Opera Company Of Tibet. Desde então tenho profunda gratidão
ao mestre, pois me colocou em contato com a Voiceprint que acabou
levando minha música para a árvore genealógica
de Canterbury.
Durante os anos 90
a família do Planet Gong cresceu muito e frutificou em
diversos grupos, shows, workshops, um período excepcional,
e quando tudo parece calmo o guru retorna com a mais inusitada
de todas as encarnações do Gong: o novo CD, Acid
Motherhood, une e desconstrói a velha e a nova
psicodelia, anos-luz à frente. Como diz meu amigo Tim dos
Invisibles UK, “o velho mágico sempre tem algumas
cartas guardadas para jogar..."
Pergunta: - Vamos
começar pelo começo, ok? Por que você deixou
a Austrália e foi para a Inglaterra?
Daevid Allen: - Cara, isso foi em 1959! Os anos
50 foram um pesadelo na Austrália. A mentalidade idiota
e a complacência tinham se estabelecido como um transe sem
sentido. O bebop era o punk da época. Meu consolo era a
geração beat - poetas e escritores que declamavam
suas poesias que explodiam como linhas de saxofone. A Austrália
era um primo subnutrido e auto-decapitada em seu reflexo anglo-saxão.
Um espasmo cultural. Como um artista independente original, eu
precisava sair para tentar sobreviver. Para as pessoas de lá,
minha arte era insana ou invisível. Finalmente comprei
minha passagem após ver um grande filme italiano - Miracle
de Milano, de Vittorio de Sica. Ele me forneceu os sonhos
e peguei um navio grego chamado Patris, que ía de Melbourne
para Atenas. Dois artistas, amigos meus, se esconderam em minha
cabine e comeram e beberam comigo no barco como se tivessem comprado
um bilhete. Demoraram quase uma semana para descobrirem que eles
estavam clandestinamente.
Pergunta:
- É possível descrever o nascimento do Soft Machine
e as diferenças com o Gong?
Daevid Allen: - Ambos surgiram de minhas visões.
O Soft teve um mecenas que nos deu dinheiro para comprarmos equipamentos
e alugarmos um espaço para ensaios. O Soft Machine era
composto de quatro grandes egos que explodiram em três bandas
distintas, nos quais cada um era o líder. O quarto, Mike
Ratledge permaneceu com o Soft. Eu fui o primeiro a sair da banda
por causa da imigração inglesa, que encontrou uma
boa desculpa para recusar minha entrada no Reino Unido.
O Gong foi uma criação
minha, embora eu confesse que, sem a companhia de Gilli Smyth,
teria feito pouca coisa. Foi sempre pensado como uma banda comunitária
(para ermitões). Nós vivemos em uma grande casa
de fazenda que ficava a 100 km ao sul de Paris. O Soft Machine
era puro jazz-rock. Gong era "proto worldmusic/poetry/fantasy
rock".
Pergunta: - Como
era seu relacionamento com Syd Barrett? Você o encontrou
depois que ele deixou o Pink Floyd ou até mais recentemente?
Daevid Allen: - Eu o encontrei apenas uma vez em uma
sala de espera de um estúdio de gravação,
em Londres. Ele apenas me encarou com um olhar demencial. Ele
me parecia extremamente paranóico porque minha presença
não era ameaçadora para ele. Mais tarde quando eu
o vi tocando, tive o primeiro vislumbre da primitiva técnica
de glissando na guitarra. Syd era o meu guru do glissando.
Pergunta: - Sobre
sua técnica de glissando. Por que você usou uma caixa
cheia de instrumentos ginecológicos do século XIX
processados através de uma caixa de eco e outro efeitos?
Você tentou inventar algo como um "bottleneck alternativo"
ou foi apenas uma visão de criar algo novo, musicalmente
falando?
Daevid Allen: - Depois que foi recusada minha volta ao
Reino Unido, fui diretamente para Paris onde me deram uma guitarra
que pertenceu ao filho do ator Erroll Flynn, Sean; e uma caixa
do século XIX com instrumentos ginecológicos, dada
pela minha benfeitora, uma mulher americana negra. Eu me lembrei
de algumas peças de John Cage para piano preparado e tentei
fazer uma aproximação semelhante na guitarra. Logo
percebi que a qualidade do glissando e do slide era parcialmente
relacionada à qualidade e densidade do metal. Então,
eu procurei em Paris num mercado de pulgas um instrumento cirúrgico
de metal inoxidável, por anos. Mas nenhum objeto utilizado
criativamente poderia se equiparar a um que continha células
de memórias de uma vagina sagrada e que só poderiam
aumentar minha delicadeza e precisão.
Pergunta:
- Você é uma pessoa muito espiritual e mística.
O seu idealismo mudou após tantos anos ou não?
Daevid Allen: - Não. Continuo tão inocente
como sempre fui, da mesma maneira que continuo sendo muito cético.
Ambas são totalmente verdadeiras e a única posição
que tenho, ainda que dentro de um paradoxo. A simples resposta
é que tudo se torna simples e ao mesmo tempo, sem resposta.
Ridiculamente óbvio e magnificamente misterioso. Eu sou
o novo e você é o novo, meu velho amigo.
Pergunta: - O que
você acha do renascimento do psicodelismo no século
XXI? É apenas moda? Sente alguma conexão?
Daevid Allen: - Tudo é moda neste novo século.
Algums batidas mecânicas tem uma disciplina militar e elas
me excitam tanto quanto um novo Hitler, ou seja, nada. Na verdade,
do que eu não gosto é do som desses "doof doof
doof" 4x4, mas dessas aventuras e experimentos eletrônicos
de diferentes escolas, como drums 'n' bass, electrônica,
ragga, räi, trance, hip-hop,trip hop, etc etc, eu gosto
muito, apesar de serem basicamente pré-concebidas. Elas
são muito mais saborosas e refinadas para serem consideradas
meras batidas "militares". E essas batidas são
fantásticas quando tocadas ao vivo por músicos,
como se tivessem sido programadas, porque elas podem "respirar".
Eu amo o show de luzes. Eles são espetaculares, mas musicalmente,
até o momento, eu prefiro o caos do renascimento através
do sons pós-industriais psicodélicos, que podem
ser melhor ouvidos ao vivo.
Pergunta: - É
verdade que você não gosta das antigas canções
do Gong? Por que?
Daevid Allen: - Assim como as marés do Oceano
Pacífico, perto de onde moro, cada estilo tem seu momento
certo na vida. Estou num período de muita criatividade
para ficar me repetindo e me sinto obrigado a honrar a alma de
cada canção cada vez que eu as toco. Por isso, descarto
algumas velhas canções.
Pergunta: - Você
tem uma grande legião de fãs por aqui já
que o Gong é uma banda cult. Você veio ao Brasil
em 1992. O que achou de nosso país?
Daevid Allen: - Eu amei o Brasil. Achei o país
extremamente agradável, com um clima igual ao da Austrália
e extraordinariamente rico em termos culturais. Penso que seria
ótimo morar aí!
Pergunta: - O que
você conhece de música brasileira, excetuando bossa
nova e o Violeta de Outono?
Daevid Allen: - O Brasil produz uma quantidade incrível
de baixistas! Conheci vários da banda de Airto Moreira.
Aliás, poderia me relembrar alguns dos que tocaram com
ele? Considero os baixistas os membros mais maternos de uma família.
Eles não são os primeiros a serem percebidos, mas
sem eles tudo desmorona. O baixo é igualmente equilibrado
entre a melodia e o ritmo.
Pergunta: - Me
explique, por favor, a concepção do Invisible Opera...
Daevid Allen: - A idéia era criar bandas em continentes
separados, mas que compartilhassem o mesmo nome e dividissem suas
músicas. Originalmente, o termo "ópera invisível",
descreve um som que vem de vozes espirituais (em um nível
psíquico ou talvez de um ouvido interno) quando um grupo
toca junto e os músicos acabam se perdendo dentro da música.
Nós temos experimentado esse momento quando a música
parece tocar por si mesma. Então, o que alguém ouve
acima ou abaixo de uma música é o que chamamos de
"Invisible Opera", ou seja, a voz espiritual. Com o
Gong essa experiência é um pouco maior porque o som
do Gong parece vir de um espaço extra-terrestre muito particular.
Pergunta: - Se
não estou enganado, suas influências, no início,
eram mais o jazz de John Coltrane, Charles Mingus, Ornette Coleman
e os beatnicks. E quais eram suas bandas de rock favoritas?
Daevid Allen: - Não apenas Coltrane, assim como
Sonny Rollins e Eric Dolphy. Thelonious Monk foi também
uma grande influência e também Duke Ellington. Don
Cherry era outro padrinho musical nosso. Ele tocou com o Gong
no Museu de Arte Moderna em Estocolmo, em 1968. Foi nosso primeiro
show fora de Paris. Em termos de rock minhas maiores influências
foram os Yardbirds, Jeff Beck, Cream e Captain Beefheart.
Pergunta:
- Muito obrigado pela oportunidade de fazer uma entrevista contigo,
Daevid. Gostaria de deixar uma mensagem final aos seus fãs?
Daevid Allen: - Meus amigos, amem uns aos outros e fiquem
ligados em uma freqüência que mantenha seus corações
e mentes abertos!!! Paz e amor para todos!!!
Discografia-solo
Banana Moon (1970)
Fred the Fish (1975)
Good Morning (w/Euterpe) (1976)
Now is the Happiest Time of Your Life Affinity LP (1977)
N'existe pas! (1978)
Divided Alien Playbax 80 (1982)
Ex/Don't Stop (w/David Tolley) (1982)
Death of Rock and Other Entrances (1982)
Alien in New York (1983)
The Owl and the Tree (Mother Gong) (1989)
Australia Aquaria (1990)
Stroking the Tail of the Bird (w/Gilli Smyth & Harry Williamson)
(1990)
The Australian Years (1991)
The Seven Drones (1991)
Who's Afraid (1992)
12 Selves (1993)
Dreamin' a Dream (1995)
Hit Men (1995)
22 Meanings (1998)
Eat Me Baby, I'm A Jellybean (1998)
Nectans Glen (2001)
Sacred Geometry (2001)
Makoto Mango (2004)
Gentle Genie (2004)
Live Spring '88: The Return (2004)
BMO Vol 1: Studio Rehearsal Tapes 1977 (w/Euterpe) (2004)
BMO Vol 2: Live in the UK (w/Brainville) (2004)
BMO Vol 3: Self Initiation (2004)
BMO Vol 4: Bards of Byron Bay (w/Russell Hibbs) (2004)
BMO Vol 5: Live in Chicago (w/University of Errors) (2004)
BMO Vol 6: Live @ the Knit NYC (w/Nicoletta Stephanz) (2004)
BMO Vol 8: Divided Alien Playbax Disk 1 (2004)
BMO Vol 9: Divided Alien Playbax Disk 2 (2004)
BMO Vol 10: Melbourne Studio Tapes (w/Invisible Opera Company
of Oz) (2004)
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