10 - Daevid Allen - entrevista

parceria com Fabio Golfetti

Poucas coisas na vida valem mais a pena do que conversar com uma lenda. E poucas coisas podem ser mais chatas do que isso, especialmente quando essa pessoa está rancorosa demais, triste demais ou simplesmente não consegue exprimir mais nada. Daevid Allen está longe disso. Fundador do Soft Machine e do Gong, ele já tem um papel fundamental na história da música. Mas essa figura reclusa e com quase 70 anos, ainda quer mais. Daevid é um dos poucos que vive e acredita no que faz. Foi amigo de Syd Barrett, de quem falou nessa entrevista. Daevid viveu experiências místicas e, talvez, insanas, para poder encontrar sua verdade interior. E ele é capaz de ainda fornecer entrevistas como essa, mostrando um grande senso de humor e provando que não é apenas uma figura que deseja viver de um passado glorioso, até porque ele não ama muito tocar os "velhos clássicos". Ele gosta mesmo é do presente.

Para falar com ele, convidei o maior fã de Gong e de Daevid por essas bandas: Fabio Golfetti, líder do Violeta de Outono e que faz parte do Invisible Opera, projeto concebido por Daevid. Fabio me ajudou com algumas perguntas e fez um texto introdutório, onde a história e a emoção se misturam. E, é com imenso prazer que, pela primeira vez, uma entrevista com tal lenda é publicada no Brasil. E como mesmo falou o mestre, "vamos manter nossos corações e mentes abertos"...


Em 1979, quando tocava no New York GongPoucos artistas conseguem ao mesmo tempo se reinventar continuamente e ainda estar na vanguarda dos acontecimentos. Daevid é um destes "avatares" que chegou à Europa, particularmente na Inglaterra, e sempre esteve na liderança invisível das transformações: em 1963 já tinha um grupo que era o núcleo da Canterbury Scene; enquanto os Beatles estavam tocando "Love Me Do", Daevid estava criando uma música que ía do free-jazz ao rock e desenvolvendo colagens musicais com tapes. Em 1966, criou o Soft Machine que, juntamente com o Pink Floyd, transformou a música pop para um caminho sem volta.

Em 1972, o Gong foi a primeira banda a assinar contrato com uma pequena gravadora independente, a Virgin Records, e em 1978, juntou alguns músicos do underground de Nova York para formar o New York Gong, banda que revelou o baixista/produtor Bill Laswell. Conheci Daevid no final dos anos 80 quando ele estava em retiro na Austrália. Na época, eu estava interessado em me unir ao Invisible Opera Company Of Tibet. Desde então tenho profunda gratidão ao mestre, pois me colocou em contato com a Voiceprint que acabou levando minha música para a árvore genealógica de Canterbury.

Durante os anos 90 a família do Planet Gong cresceu muito e frutificou em diversos grupos, shows, workshops, um período excepcional, e quando tudo parece calmo o guru retorna com a mais inusitada de todas as encarnações do Gong: o novo CD, Acid Motherhood, une e desconstrói a velha e a nova psicodelia, anos-luz à frente. Como diz meu amigo Tim dos Invisibles UK, “o velho mágico sempre tem algumas cartas guardadas para jogar..."

Pergunta: - Vamos começar pelo começo, ok? Por que você deixou a Austrália e foi para a Inglaterra?
Daevid Allen: - Cara, isso foi em 1959! Os anos 50 foram um pesadelo na Austrália. A mentalidade idiota e a complacência tinham se estabelecido como um transe sem sentido. O bebop era o punk da época. Meu consolo era a geração beat - poetas e escritores que declamavam suas poesias que explodiam como linhas de saxofone. A Austrália era um primo subnutrido e auto-decapitada em seu reflexo anglo-saxão. Um espasmo cultural. Como um artista independente original, eu precisava sair para tentar sobreviver. Para as pessoas de lá, minha arte era insana ou invisível. Finalmente comprei minha passagem após ver um grande filme italiano - Miracle de Milano, de Vittorio de Sica. Ele me forneceu os sonhos e peguei um navio grego chamado Patris, que ía de Melbourne para Atenas. Dois artistas, amigos meus, se esconderam em minha cabine e comeram e beberam comigo no barco como se tivessem comprado um bilhete. Demoraram quase uma semana para descobrirem que eles estavam clandestinamente.

com o Soft MachinePergunta: - É possível descrever o nascimento do Soft Machine e as diferenças com o Gong?
Daevid Allen:
- Ambos surgiram de minhas visões. O Soft teve um mecenas que nos deu dinheiro para comprarmos equipamentos e alugarmos um espaço para ensaios. O Soft Machine era composto de quatro grandes egos que explodiram em três bandas distintas, nos quais cada um era o líder. O quarto, Mike Ratledge permaneceu com o Soft. Eu fui o primeiro a sair da banda por causa da imigração inglesa, que encontrou uma boa desculpa para recusar minha entrada no Reino Unido.

O Gong foi uma criação minha, embora eu confesse que, sem a companhia de Gilli Smyth, teria feito pouca coisa. Foi sempre pensado como uma banda comunitária (para ermitões). Nós vivemos em uma grande casa de fazenda que ficava a 100 km ao sul de Paris. O Soft Machine era puro jazz-rock. Gong era "proto worldmusic/poetry/fantasy rock".

Pergunta: - Como era seu relacionamento com Syd Barrett? Você o encontrou depois que ele deixou o Pink Floyd ou até mais recentemente?
Daevid Allen:
- Eu o encontrei apenas uma vez em uma sala de espera de um estúdio de gravação, em Londres. Ele apenas me encarou com um olhar demencial. Ele me parecia extremamente paranóico porque minha presença não era ameaçadora para ele. Mais tarde quando eu o vi tocando, tive o primeiro vislumbre da primitiva técnica de glissando na guitarra. Syd era o meu guru do glissando.

Pergunta: - Sobre sua técnica de glissando. Por que você usou uma caixa cheia de instrumentos ginecológicos do século XIX processados através de uma caixa de eco e outro efeitos? Você tentou inventar algo como um "bottleneck alternativo" ou foi apenas uma visão de criar algo novo, musicalmente falando?
Daevid Allen:
- Depois que foi recusada minha volta ao Reino Unido, fui diretamente para Paris onde me deram uma guitarra que pertenceu ao filho do ator Erroll Flynn, Sean; e uma caixa do século XIX com instrumentos ginecológicos, dada pela minha benfeitora, uma mulher americana negra. Eu me lembrei de algumas peças de John Cage para piano preparado e tentei fazer uma aproximação semelhante na guitarra. Logo percebi que a qualidade do glissando e do slide era parcialmente relacionada à qualidade e densidade do metal. Então, eu procurei em Paris num mercado de pulgas um instrumento cirúrgico de metal inoxidável, por anos. Mas nenhum objeto utilizado criativamente poderia se equiparar a um que continha células de memórias de uma vagina sagrada e que só poderiam aumentar minha delicadeza e precisão.

Pergunta: - Você é uma pessoa muito espiritual e mística. O seu idealismo mudou após tantos anos ou não?
Daevid Allen:
- Não. Continuo tão inocente como sempre fui, da mesma maneira que continuo sendo muito cético. Ambas são totalmente verdadeiras e a única posição que tenho, ainda que dentro de um paradoxo. A simples resposta é que tudo se torna simples e ao mesmo tempo, sem resposta. Ridiculamente óbvio e magnificamente misterioso. Eu sou o novo e você é o novo, meu velho amigo.

Pergunta: - O que você acha do renascimento do psicodelismo no século XXI? É apenas moda? Sente alguma conexão?
Daevid Allen:
- Tudo é moda neste novo século. Algums batidas mecânicas tem uma disciplina militar e elas me excitam tanto quanto um novo Hitler, ou seja, nada. Na verdade, do que eu não gosto é do som desses "doof doof doof" 4x4, mas dessas aventuras e experimentos eletrônicos de diferentes escolas, como drums 'n' bass, electrônica, ragga, räi, trance, hip-hop,trip hop, etc etc, eu gosto muito, apesar de serem basicamente pré-concebidas. Elas são muito mais saborosas e refinadas para serem consideradas meras batidas "militares". E essas batidas são fantásticas quando tocadas ao vivo por músicos, como se tivessem sido programadas, porque elas podem "respirar". Eu amo o show de luzes. Eles são espetaculares, mas musicalmente, até o momento, eu prefiro o caos do renascimento através do sons pós-industriais psicodélicos, que podem ser melhor ouvidos ao vivo.

Pergunta: - É verdade que você não gosta das antigas canções do Gong? Por que?
Daevid Allen:
- Assim como as marés do Oceano Pacífico, perto de onde moro, cada estilo tem seu momento certo na vida. Estou num período de muita criatividade para ficar me repetindo e me sinto obrigado a honrar a alma de cada canção cada vez que eu as toco. Por isso, descarto algumas velhas canções.

Pergunta: - Você tem uma grande legião de fãs por aqui já que o Gong é uma banda cult. Você veio ao Brasil em 1992. O que achou de nosso país?
Daevid Allen
: - Eu amei o Brasil. Achei o país extremamente agradável, com um clima igual ao da Austrália e extraordinariamente rico em termos culturais. Penso que seria ótimo morar aí!

Pergunta: - O que você conhece de música brasileira, excetuando bossa nova e o Violeta de Outono?
Daevid Allen
: - O Brasil produz uma quantidade incrível de baixistas! Conheci vários da banda de Airto Moreira. Aliás, poderia me relembrar alguns dos que tocaram com ele? Considero os baixistas os membros mais maternos de uma família. Eles não são os primeiros a serem percebidos, mas sem eles tudo desmorona. O baixo é igualmente equilibrado entre a melodia e o ritmo.

Pergunta: - Me explique, por favor, a concepção do Invisible Opera...
Daevid Allen:
- A idéia era criar bandas em continentes separados, mas que compartilhassem o mesmo nome e dividissem suas músicas. Originalmente, o termo "ópera invisível", descreve um som que vem de vozes espirituais (em um nível psíquico ou talvez de um ouvido interno) quando um grupo toca junto e os músicos acabam se perdendo dentro da música. Nós temos experimentado esse momento quando a música parece tocar por si mesma. Então, o que alguém ouve acima ou abaixo de uma música é o que chamamos de "Invisible Opera", ou seja, a voz espiritual. Com o Gong essa experiência é um pouco maior porque o som do Gong parece vir de um espaço extra-terrestre muito particular.

Pergunta: - Se não estou enganado, suas influências, no início, eram mais o jazz de John Coltrane, Charles Mingus, Ornette Coleman e os beatnicks. E quais eram suas bandas de rock favoritas?
Daevid Allen:
- Não apenas Coltrane, assim como Sonny Rollins e Eric Dolphy. Thelonious Monk foi também uma grande influência e também Duke Ellington. Don Cherry era outro padrinho musical nosso. Ele tocou com o Gong no Museu de Arte Moderna em Estocolmo, em 1968. Foi nosso primeiro show fora de Paris. Em termos de rock minhas maiores influências foram os Yardbirds, Jeff Beck, Cream e Captain Beefheart.

Pergunta: - Muito obrigado pela oportunidade de fazer uma entrevista contigo, Daevid. Gostaria de deixar uma mensagem final aos seus fãs?
Daevid Allen:
- Meus amigos, amem uns aos outros e fiquem ligados em uma freqüência que mantenha seus corações e mentes abertos!!! Paz e amor para todos!!!

Discografia-solo

Banana Moon (1970)
Fred the Fish (1975)
Good Morning (w/Euterpe) (1976)
Now is the Happiest Time of Your Life Affinity LP (1977)
N'existe pas! (1978)
Divided Alien Playbax 80 (1982)
Ex/Don't Stop (w/David Tolley) (1982)
Death of Rock and Other Entrances (1982)
Alien in New York (1983)
The Owl and the Tree (Mother Gong) (1989)
Australia Aquaria (1990)
Stroking the Tail of the Bird (w/Gilli Smyth & Harry Williamson) (1990)
The Australian Years (1991)
The Seven Drones (1991)
Who's Afraid (1992)
12 Selves (1993)
Dreamin' a Dream (1995)
Hit Men (1995)
22 Meanings (1998)
Eat Me Baby, I'm A Jellybean (1998)
Nectans Glen (2001)
Sacred Geometry (2001)
Makoto Mango (2004)
Gentle Genie (2004)
Live Spring '88: The Return (2004)
BMO Vol 1: Studio Rehearsal Tapes 1977 (w/Euterpe) (2004)
BMO Vol 2: Live in the UK (w/Brainville) (2004)
BMO Vol 3: Self Initiation (2004)
BMO Vol 4: Bards of Byron Bay (w/Russell Hibbs) (2004)
BMO Vol 5: Live in Chicago (w/University of Errors) (2004)
BMO Vol 6: Live @ the Knit NYC (w/Nicoletta Stephanz) (2004)
BMO Vol 8: Divided Alien Playbax Disk 1 (2004)
BMO Vol 9: Divided Alien Playbax Disk 2 (2004)
BMO Vol 10: Melbourne Studio Tapes (w/Invisible Opera Company of Oz) (2004)