45 - Dialeto

Enquanto a música brasileira desmorona, em termos de qualidade, relevância e importância, alguns nomes lutam para mudar isso.

Estamos falando de um pessoal com pouco acesso ao público, lugares modestos, pouca publicidade e que apostam em obras mais complexas e influências incomuns. Uma destas bandas é o Dialeto, antigo Dialect, que existe desde 1991, embora tenha hibernado entre 1994 e 2006.

Liderado por Nelson Coelho (à esquerda), o Dialeto não abre de uma proposta, mesmo sabendo que ficarão relegados ao sucesso. Além de excelente guitarrista (tenho gravações dele com os grupos acima citados, além dos projetos Lux, AMT1, Ultimato, Zero, Stereotrips que fez com Fabio Golfetti), Nelson é um estudioso e fez do Dialeto um conceito musical.

Seu último trabalho, Bartók in Rock, explora a obra do compositor húngaro Béla Viktor János Bartók (1881-1945).

Reduzido ao formato trio - além de Nelson, o grupo conta Fred Barley (bateria) e Gabriel Costa (baixo) -, o grupo produziu um trabaho vigoroso, denso, com a participação do violinista David Cross, na primeira faixa.

David Cross é um velho conhecido dos fãs do King Crimson, por participar da trilogia mais importante do grupo de Robert Fripp - Larks' Tongues in Aspic (1973), Starless and Bible Black (1974) e Red (1974) -, para deleite dos músicos, fãs confessos do Crimson e de Cross. A parceira, aliás, deu tão certo, que ele estará vindo para alguns shows em São Paulo.

Para saber mais do Dialeto, como nasceu, suas ideias e projetos, falei com Nelson Coelho, em uma longa e bastante elucidativa entrevista.


(Dialeto em 2014: Jorge Pescara - touchguitar, Miguel Angel - drums, Nelson Coelho - guitars, Rainer T. Pappon - guitars)

Mofo: - Nelson, fale sobre o começo do Dialeto, quando eram Dialect. Qual é a proposta do grupo, as formações e o público alvo.
Nelson:
- A banda começou na verdade em 1985 quando saí do Zero (aliás sairam todos, ficou só o Guilherme Isnard), formamos a banda Sotaque, com o Andrei Ivanovic no baixo, o Miguel Angel na bateria e a Nice Juliano nos vocais. Essa formação durou dois anos. Quando a Nice saiu, resolvemos priorizar ainda mais o lado instrumental e mudar o nome para Dialeto. A proposta da banda sempre foi a de explorar conceitos musicais menos convencionais, escalas exóticas, compassos quebrados, dissonâncias, cromatismo e improvisação livre, daí a idéia de Sotaque e, depois, Dialeto, pois esses elementos acabavam por definir uma linguagem própria e muito diferente do que se fazia na década de 80. No começo dos anos 90 gravamos o nosso álbum de forma independente (Dialect, 1991) e a Faunus Records se interessou em lançar. Como a intenção deles era de vender mais para o mercado externo achamos que seria interessante mudar o nome para Dialect pois, mais do que um nome, queríamos passar esse conceito de linguagem própria. A formação inicial tinha o Andrei Ivanovic no baixo, o Miguel Angel na bateria e vocais de apoio, e eu, Nelson Coelho, na guitarra e vocais.

A banda ficou parada de 94 a 2006, quando retomamos para lançar o álbum de 91, em CD. Recuperamos as fitas com as bases originais, mas os overdubs haviam se perdido então regravamos os vocais, violinos, guitarras e efeitos, voltamos com o nome original, Dialeto, e batizamos o disco de Will Exist Forever que foi lançado em 2008 pela Rock Synphony, junto com a Voiceprint Brasil.

Com a boa recepção ao CD e aos shows gravamos, com a mesma formação, o segundo álbum, Chromatic Freedom recuperando músicas que tocávamos no começo e acrescentando algumas composições novas. A música que abre este álbum, "Enigma 5", foi na verdade composta na época do Sotaque, assim como "Rainha Perversa".

Em 2012, com a indisponabilidade do Andrei, convidamos o Jorge Pescara para assumir os graves com o Baixo Touchstyle dele e gravamos The Last Tribe, lançado em 2013 pela gravadora americana Moonjune Records. Nas apresentações ao vivo tivemos a participação especial do Rainer Pappon na guitarra. No início de 2014, convidamos o Gabriel Costa para assumir o baixo pois o Pescara se mudou para o Rio de Janeiro, pouco depois o Miguel Angel precisou se dedicar mais a outras atividades e chamamos o Fred Barley para assumir a bateria.

Sobre um público alvo, na verdade, nunca existiu, a música sempre foi feita para ser descoberta por quem estiver disposto a ouvir com atenção e mente aberta, ou seja, pode ser qualquer um.

Mofo: - A banda já tem mais de 20 anos - tenho um cd de vocês, de 1992 - e quatro cds (Will Exist Forever, de 2008, Chromatic Freedom, de 2009, The Last Tribe, de 2013 e Bartók in Rock, 2017). Me fale da evolução do trabalho ao longo dos anos.
Nelson:
- Acho que a busca por explorar elementos musicais pouco usuais permanece desde sempre e é o que caracteriza o som da banda. A evolução me parece se deu mais na maturidade individual natural e na valorização do aspecto expressivo das interpretações e o foco nas melodias. Outra mudança também foi a concentração na música inteiramente instrumental a partir de The Last Tribe.

(Stereotrips - Nelson Coelho e Fabio Golfetti - 1979 at FAUUSP - foto de Zico Rocha Soares)

Mofo: - Na atual formação, o Dialeto conta com dois músicos que já estiveram presentes em trabalhos solos de Fabio Golfetti (o baterista Fred Barley) ou no próprio Violeta de Outono (caso do atual baixista, Gabriel Costa). Você e Fabio aliás são arquitetos e amigos de longa data e possuem influências semelhantes. Até que ponto vai a troca de ideia entre vocês?
Nelson:
- O Fabio é um grande amigo, somos colegas de turma de faculdade, uma amizade de quase 40 anos. Formamos várias bandas juntos desde o final da década de 70: Lux, AMT1, Ultimato, Zero, Stereotrips. O primeiro show do Violeta de Outono, que ainda nem tinha sido batizado, foi abrindo o show de estréia do Sotaque no Lira Paulistana. A troca de ideias é constante e ilimitada. Aliás, o Fabio é o responsável pela volta do Dialeto. A banda estava parada desde 94 quando em 2006 ele, do nada, marcou um show para nós no CCSP.

Mofo: - No último disco, Bartók in Rock, três coisas chamam a atenção: é todo instrumental, a escolha de um compositor totalmente fora do mundo do rock e um som influenciado pelo King Crimson, tanto que tem a presença do violinista David Cross, que tocou com o grupo de Robert Fripp em sua trilogia dos anos 70, Larks Tongue in Aspic, Starless and Bible Black e Red. Fale um pouco destes elementos.
Nelson:
- O nosso álbum anterior, "The Last Tribe" já era inteiramente instrumental, acho que, de minha parte, há uma vocação muito maior para tocar guitarra do que para cantar. O som do Dialeto sempre foi influenciado pelo King Crimson, especialmente essa fase com o David Cross, e o King Crimson foi influenciado pelo Bartók, aliás, curiosamente ontem mesmo o Robert Fripp postou no perfil dele no Facebook que estava ouvindo os quartetos do Bartók. A música do Bartók já andou permeando o rock: "Barbarian", do Emerson, Lake and Palmer, é uma adaptação de "Allegro Barbaro", do Bartók e o Keith Emerson declarou a sua influência várias vezes, também o Focus se inspirou no Bartók em "Eruption" e "Hamburgo Concerto".

O álbum Chromatic Freedom, e especialmente a música título, já fazia referência a um conceito musical formulado pelo Béla Bartók, chamado Cromatismo Expressivo, que propõe o uso da escala de 12 tons porém dentro de uma tonalidade,valorizando a expressividade das melodias. Desde o primeiro álbum procurei explorar esse conceito agregando a livre improvisação o que, na minha opinião traz uma liberdade expressiva incrível.

Mofo: - No encarte há um belo texto de Bartók explicando porque a música folclórica precisa se abrir aos sons de outros países, ou corre o risco de estagnar e morre. Como isso influencia você e seu trabalho?
Nelson:
- Desde a adolescência eu já gostava da ideia contida no "Manifesto Antropofágico" de Oswald Andrade, de assimilação de culturas, acho que o brasileiro e especialmente o paulistano já vivencia muito essa assimilação da diversidade cultural. Desde o início a banda tinha esse aspecto multicultural com os músicos tendo descendências varias, eu de portugueses, italianos, espanhóis, índios e sabe-se lá mais o que, o Miguel de haitianos e espanhóis e o Andrei de Yugoslavos. Fora isso sempre achei intrigante como a música pode passar a sensação de localização dependendo da escala e do rítmo utilizado.

O Bartók foi pioneiro na pesquisa de música étnica, desde 1910 ele já andava pelas aldeias do leste europeu com um gravador primitivo , daqueles de cilindro de cera, gravando in loco as músicas dos aldeões. Deixou um trabalho acadêmico vasto e importantíssimo nessa área. Na década de 80, quando ainda estavamos na faculdade, eu e o Fabio Golfetti fizemos uma grande pesquisa de música folclórica do mundo todo na discoteca do CCSP, gravamos várias fitas com músicas genuínas de lugares como Índia, Japão, China, Azerbaijão, Afganistão, Tibet e também lugares nas Américas e na África. Foi um trabalho extremamente importante na nossa formação.

Inclusive a música "Existence"', do primeiro álbum do Dialeto, é inspirada em um tema que aparece tanto no Azerbaijão quanto no Afganistão o que mostra como a fronteira entre os povos é artificial. Quando achei esse texto do Béla Bartók sobre esse assunto a identificação foi instantânea.

Mofo: - O som de vocês tem muito mais a ver com o rock europeu do que tocado aqui. O disco foi distribuído lá fora por alguém?
Nelson:
- O The Last Tribe foi distribuído pela Moonjune Records e recebeu muitas críticas favoráveis no mundo todo. Mesmo os outros álbuns também acabaram tendo uma boa penetração no exterior. Mas, o fato de ter mais a ver com o rock europeu tem a ver com as influências mesmo, especialmente com o que eu ouvia na adolescência, basicamente Rock Progressivo, que era muito mais presente na Europa.

Mofo: - Vocês darão um show com o David Cross em São Paulo. Como é tocar com alguém que participou de discos tão clássicos e, talvez, a melhor trilogia do rock progressivo.
Nelson:
- Ainda não sei, o show vai ser dias 21 e 22 de julho. Certamente é uma grande honra e uma grande responsabilidade. Ter a participação dele na gravação de uma música do disco já foi uma coisa incrível. E eu considero sim que LTIA, SBB e RED é a melhor trilogia do rock progressivo, e considero que o David Cross é a maior expressão do violino no rock em todos os tempos. Ou seja, ainda não caiu a ficha.

Mofo: - Para encerrar: quais são os projetos futuros e um recado para os fãs.
Nelson:
- Sem muitos projetos futuros no momento, a ideia é tocar ao vivo e ver o que acontece. E para os fãs só tenho um recado: Muito obrigado!

E não percam os shows dias 21 e 22 de julho no SESC Belenzinho em São Paulo com David Cross. Vai ser demais!

Discografia

Dialect (LP,1991)
Will Exist Forever (2008)
Chromatic Freedom (2010)
The Last Tribe (2013)
Bartók in Rock (2017)