209 - David Bowie - Diamond Dogs e David Live

Na década de 70 Bowie era inigualável. Mas, ao mesmo tempo, em que produzia um clássico atrás do outro, Bowie, colecionava histórias impressionantes com drogas, sucesso, mulheres, homens, que transformou sua vida num verdadeiro zoológico. E nenhum ano pareceu mais louco do que 1974, quando lançou Diamond Dogs, um disco assustador e brilhante. Foi também o ano de David Live, que rende, ao menos uma sensacional histórica no dia em que ele foi gravado. Resgatando o primeiro vinil da década de 70 que tive dele (e do qual me apaixonei instantaneamente), é hora de falar de um clássico quase esquecido: Diamond Dogs. E David Live, também...


Tentar enterrar Ziggy Stardust foi mais difícil do que Bowie pensava e queria. Apesar de ter "matado" o personagem em cima de um palco, os fãs só queriam saber dele. Meio irritado com tudo isso, David Bowie teve que deixar até sua antiga residência. Mas, ainda assim os fãs o seguiam, histericamente.

Mas não era apenas o personagem que havia mudado. O artista Bowie queria continuar suas novas idéias e a primeira coisa que fez foi matar sua antiga banda, The Spiders from Mars. Isso significou limar de sua vida o seu melhor companheiro, o talentosíssimo guitarrista Mick Ronson.

Os dois já haviam tido uma discussão feia, quando Bowie ficou sabendo que Tony DeFries (seu empresário) queria lançar o guitarrista em uma carreira-solo. Furioso, Bowie ligou para o músico e o chamou de "um merda incorrigível". Ele não aceitava a idéia de que um escudeiro seu pudesse sonhar com o estrelato. A partir daí, o clima entre os dois seria nenhum.

Ele também andava fascinado com duas idéias: gravar um disco inspirada no livro 1984, de George Orwell e apaixonado pelos livros e pelo estilo de escrever de um dos maiores nomes da literatura beatnick, William S. Burroughs.

Bowie até havia usado a técnica de Burroughs para escrever novas músicas, que nada mais era do que combinar pequenas tiras de papel escritas e tentar juntá-las em uma idéia.

Burroughs e ele até andaram socializando juntos, mas ele sofreu um duro golpe quando os donos do espólio de Orwell vetaram a idéia do cantor. Uma das principais responsáveis pelo veto foi a viúva, furiosa com a idéia de que esse "ser horroroso e andrógino use a obra-prima de meu marido."

E Bowie realmente parecia um ser assustador. Mais magro do que nunca, consumindo quilos de cocaína, bebendo feito um condenado e se alimentando apenas com leite, ele estava entrando de cabeça em um ciclo que o deixaria cada vez mais paranóico.

O veto deixou Bowie meio confuso por um tempo, já que ele havia feito várias músicas baseadas na idéias do livro. Ainda assim, ele continuou compondo.

O problema é que ele quase não tinha mais uma banda, menos ainda um guitarrista com a demissão de Mick Ronson. Assim, resolveu ele próprio assumir o instrumento para as gravações do disco Diamond Dogs.

capa do disco Diamond DogsO grande clássico do disco é certamente "Rebel Rebel", com um dos riffs de guitarras mais clássicos da história. E, apesar de ter sido feito por ele, Bowie teve uma "pequena ajudinha".

A letra era inspirada em um de seus amantes, Wayne County (ou Jayne County) e a letra falava de alguém que não podia se afirmar se era menino ou menina.

Mas David estava com sérios problemas com a melodia e por isso convidou Alan Parker, músico que havia trabalhado com Stevie Wonder, para ir até o estúdios Olympic. Parker conta que Bowie mostrou a ele os acordes básicos ele tocou na guitarra.

Bowie adorou, gravou-o e o dispensou. Toda sessão durou meia hora e o músico recebeu o cachê estipulado de 20 libras. Uma ninharia pelo clássico que nasceria dali.

capa e contra-capa de Diamond Dogs

Diamond Dogs foi lançado no dia 24 de abril e chocou os antigos fãs. O choque começava pela capa e contra-capa, desenhadas por Guy Peellaert, um artista holandês impressionista em que mostrava Bowie metamorfeseado de cachorro, com duas prostitutas gordas, rindo ao fundo.

foto do encarte do discoAs letras mostravam um cantor fortemente influenciado pela decadência, devastação e com temas inspirados em 1984, como "Big Brother" e a própria "1984" (com participação também de Alan Parker) e canções fora do padrão. Bowie também tocava saxofone.

Como ele era o artista mais quente do momento, Tony Defries resolveu investir pesado na promoção de Diamond Dogs, fazendo a MainMan gastar US$ 400 mil em anúncio na televisão, além de dar brindes a mais de cinco mil jornalistas na América.

Defries gastava pesado, apesar dos críticos americanos ficarem confusos com o que ouviam, em parte pelas experimentações sonoras, efeitos bizarros e as letras doentias de Bowie. Estava claro que algo não ia bem com o músico.

E Bowie se sentiu muito inseguro em estúdio, sem o apoio de uma banda, com medo de fracassar, e essa insegurança é um dos trunfos do trabalho, por mais irônico que possa parecer.

Bowie cantando Panic in DetroitNascia ali um novo David Bowie, um músico que queria ser a vanguarda e para isso mudava radicalmente, inclusive visualmente, abandonando o cabelo vermelho de Ziggy e voltando a ser loiro.

Após o lançamento do disco, era hora de levar o trabalho para o palco. E essa seria uma das grandes razões para a falência do cantor pouco tempo depois...

O primeiro passo foi contratar músicos para a empreitada. Bowie e Defries tinham uma estratégia estranha: primeiro procuravam pessoas conhecidas que não viam há anos e estavam no limbo.

Um deles foi o guitarrista Keith Christmas, que conta uma história curiosa: "eu estava em casa, em abril de 1974, com minha namorada, quando o telefone tocou e ela atendeu. Disse, espantada, que Bowie queria falar comigo. Eu pensava, intrigado, como havia se lembrado de mim. Ele estava me convidando para sua excursão. Primeiro me pediu para que eu voasse até Nova York, mas eu não tinha visto de entrada e Defries me arrumou um, sabe lá Deus como. Imediatamente me colocaram numa limousine. Na noite seguinte, me chamou para sairmos e fiquei apavorado. Ele me levou a todos os bares gays que conhecia e ficava paquerando meninos e meninas. Ele estava completamente alucinado, e eu carregava um saco com pílulas e o salvei de um tombo feio em uma escada. Dias depois, estávamos no estúdio ensaiando, sós, quando ele me chamou para jogarmos cartas, puxou uma navalha afiada e com ela arrancou um naco de uma garrafa de Coca-Cola. Algo me dizia que eu não iria viajar com ele. Um ano depois ele me ligou novamente e pediu para que eu fizesse uma jam com ele. Eu fui, uma hora depois me dispensou todo feliz e nunca mais o vi. E acho que gostou dessa jam, porque 18 anos depois usou um dos meus riffs para escrever 'Black Tie White Noise'". O escolhido acabou sendo Earl Slick.

A excursão teria um planejamento inédito até então. Apenas a montagem do palco custou US$ 250 mil e, pela primeira vez na história do rock, foi usado um guindaste.

Além disso, o espetáculo era rigorosamente coreografado e Jules Fisher havia desenhado um cenário que misturava o pesadelo das decadentes cidades urbanas com visões futuristas, inspiradas no filme Metropolis, de Fritz Lang.

O espetáculo de duas horas era rigidamente controlado pelo coreógrafo Toni Basil e Bowie (usando sóbrios e elegantes ternos), pessoalmente, checava exaustivamente os efeitos especiais.

Não é preciso dizer que a turnê foi um pesadelo... Na noite de abertura dos 50 shows pela América, o sistema de som simplesmente morreu; uma semana depois, o guindaste quebrou com Bowie no alto (logo ele, que morria de medo de altura) e ele teve que cantar seis músicas no alto, sem ver o chão.

Bowie tentava levar o clima da Broadway para os palcos, mas os inúmeros problemas técnicos fizeram a excursão virar um pesadelo.

Para piorar, o baixista Herbie Flowers - recrutado porque tinha um "nome fantástico!" - amigo de Bowie há cinco anos, começou a quebrar o pau com o músico e com a MainMan por questões financeiras.

O cúmulo disso aconteceu justamente na noite em que iriam gravar um disco ao vivo na Filadélfia. Flowers ficou furioso com isso, porque ganhava pouco mais de US$ 100 semanais e exigia uma gratificação extra para a gravação de um disco. Começou a bater-boca violentamente com o cantor e com Tony Defries e o resultado disso foi uma guerra de cadeiras horas antes do espetáculo.

A briga só diminuiu quando Defries prometeu US$ 5 mil extras aos músicos, valor que só pagou dois anos depois, após ser processado. Não é por acaso que Bowie aparece como um vampiro na capa do disco e todo pálido.

O formato do show já havia sofrido uma tremenda mudança, quando Bowie conheceu o guitarrista Carlos Alomar e um desconhecido cantor chamado Luther Vandross, em um estúdio no dia 11 de agosto.

Bowie gostou tanto dos dois que resolveu mudar o formato e se aproximar mais da música negra, inspirada no programa televisivo Soul Train. Os dois foram adicionados ao grupo na segunda parte da turnê, que começou no dia 2 de setembro, em Los Angeles e foi com eles que Bowie começou a pensar no disco ao vivo.

capa do disco David LiveÉ fato: Bowie odeia David Live. Simplesmente o detesta, a ponto de dizer que nunca o ouviu depois de finalizado.

Ele detesta principalmente sua foto da capa, com cara de vampiro (também depois de uma briga com cadeiras horas antes...), detesta o som, que considerou de "plástico", com sua tentativa de fazer funk e soul com seus clássicos. Mas o pior ainda estava para vir...

Defries descobrira que sua estrela havia feito saques vultosos e que estava devendo mais de US$ 500 mil. Ele havia sacado US$ 50 mil para passar um mês e havia gasto tudo em menos de 10 dias e precisava urgentemente de fundos para cobrir tais empréstimos.

O cantor estava completamente fora de si, movido a cocaína, bebida e orgias e se alimentando apenas de café e suco de laranja. Defries tentou desesperadamente um empréstimo com a RCA e obrigou os músicos a um complexo plano de pagamento para que pudesse sanar as dívidas, aumentando ainda mais a raiva geral.

Ainda assim, Bowie era a estrela do ano e circulava no meio dos astros de cinema e com seus ídolos, caso de John Lennon.

Mas tudo iria azedar quando os outros artistas da MainMan naufragavam e as dívidas da empresa cresciam assustadoramente e as de Bowie também, batendo na casa das 622 mil libras esterlinas em 1975. Seria o começo da ruína financeira do cantor e o final da parceria com Defries. Mas isso é papo para outro dia...

Fiquem com a discografia de Bowie. Um abraço e até a próxima coluna.

Discografia

David Bowie (1967)
Space Oddity (também conhecido como Man of Words/Man of Music, 1969)
The Man Who Sold The World (1971)
Hunky Dory (1971)
The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars (1972)
Aladdin Sane (1973)
Pin Ups (1973)
Diamond Dogs (1974)
David Live (1974)
Young Americans (1975)
Station to Station (1976)
ChangesOneBowie (1976)
Low (1977)
“Heroes” (1977)
Stage (1978)
Prokofiev's Peter and the Wolf (1978)
Lodger (1979)
Scary Monsters (And Super Creeps) (1980)
ChangesTwoBowie (1981)
Christiane F. Win Kinder (trilha sonora, 1982)
David Bowie in Betrtort Brecht's Baal (1982)
“Peace on Earth” /“Little Drummer Boy” (com Bing Crosby, 1982)
Ziggy Stardust: The Motion Picture (1983)
Let's Dance (1983)
Golden Years (1983)
Love You Till Tuesday (1984, gravado em 1969)
Tonight (1984)
Never Let Me Down (1987)
Tin Machine (1989)
Sound and Vision (1989)
ChangesBowie (1990)
Tin Machine II (1991)
Oy Vey, Baby (1992)
Black Tie White Noise (1993)
Singles: 1969-1993 (1993)
Buddha of Suburbia (1994)
1.Outside (1995)
Earthling (1997)
The Best of David Bowie 1969/1974 (1997)
The Best of David Bowie 1974/1979 (1998)
“hours...” (1999)
Singles Collection (1999)
Bowie at the Beeb: The Best of the BBC Radio Sessions (2000)
London Boy (2001)
Heathen (2002)
Reality (2003)

 

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