Uma entrevista
com mais de um integrante de uma banda, por e-mail, é raro.
Que eu me lembre apenas o Hamfatter me concedeu tal honra e isso
porque a idéia foi deles, intrigado com um brasileiro que
queria conhecê-los melhor. Mas quando eu tive a idéia
de falar com o Fellini, pensei nessa hipótese. E os motivos
são vários: o Fellini é uma banda que poucos
se lembram, seus integrantes são pessoas inteligentes e
articuladas e é sempre interessante você mandar as
mesmas perguntas para todos e deixarem que eles respondam separadamente
e, depois, juntar todas. Assim, se um desmentir ou outro ou der
uma versão diferente de um fato, é problema deles
e que se entendam quando se encontrarem, não é mesmo?
Infelizmente a coisa não rolou dessa maneira e apenas Jair
Marcos e Thomas Pappon me responderam o questionário. Aliás,
quero agradecer Jair pela ajuda, fotos enviadas (as três
fotos em que aparecem os integrantes nessa matéria) e os
vários e-mails trocados, corrigindo informações.
Ele ainda me deu os e-mails de Ricardo Salvagni e Cadão
Volpato, mas estes não retornaram o meu pedido de entrevista.
Mesmo assim, desde já, meu muito obrigado pelas informações
de Thomas e Jair e fiquem um pouco com passado, presente e futuro
do Fellini...
Pergunta:
- Começarei pela pergunta que geralmente deixo para o final:
há alguma chance do Fellini voltar?
Jair Marcos: - O Fellini dificilmente voltará
como banda na ativa. Seu fundador, Thomas Pappon, mora em Londres,
e isso dificulta mais as coisas. Apesar de a banda ter acabado
oficialmente no início dos anos 90, muitos reencontros
para shows em diversas capitais brasileiras já foram realizados,
em 98, 2000, 2003 e 2005...
Thomas Pappon: - Duvido. Todos estão em outras,
com família, etc. Mesmo se estivesse morando em São
Paulo, seria preciso uma razão bem forte para achar tempo
e saco para ensaios.
Pergunta: - O Fellini
antecipou em alguns anos a mistura do rock com samba e mpb. Vocês
"lamentam" de terem aparecido cedo demais?
Jair Marcos: - Acho que não, muito pelo contrário.
Até nos tornamos fonte de influências por isso...
Thomas Pappon: - Não. Duvido que viéssemos
a ter impacto maior em outra época, por menor que ele tivesse
sido.
Pergunta:
- Eu me lembro que quando os Paralamas lançaram Selvagem?,
em 1986, um amigo meu ficou dizendo que vocês faziam muito
antes o que o trio começava a explorar. Vocês sentiam
sintonia com algum artista do maistream da época?
Jair Marcos: - Não, fazíamos o que vinha
às nossas mentes e corações. Nossa sintonia
era mais com a cena lá de fora, antes com a new wave, com
o pós-punk... Mas nosso gosto pela (excelente) música
nacional nos levou a essa outra forma de se fazer música,
tudo de uma forma bem natural.
Thomas Pappon: - Não saberíamos como entrar
em 'sintonia com o mainstream', nem se quiséssemos.
E a praia dos Paralamas era totalmente diferente. Esses caras
todos eram músicos, performers, bons de palco,
viviam disso...o que considero uma diferença importante.
Ninguém tinha o ímpeto experimental e a atitude
'foda-se' do Fellini - exceto, talvez, algumas bandas do underground
paulista.
Pergunta:
- Uma curiosidade: quando o Plano Cruzado explodiu e superaqueceu
a economia brasileira, entre 1986 e 1987, as grandes gravadoras
estavam pegando qualquer banda de esquina e lançando 30,
40 mil cópias de artistas que nunca mais se ouviu falar.
Por que o Fellini não aproveitou o momento e não
entrou numa major?
Jair Marcos: - As grandes gravadoras não compreenderam
nossa proposta de trabalho. Houve sim algumas tentativas em contactar
essas majors, mas sem maiores resultados.
Thomas Pappon: - Nunca nos convidaram. O Fellini nunca
foi banda de 'levantar' um público ao vivo - não
era 'rock Brasil'. Não seria um bom investimento para uma
major.
Pergunta:
- Recentemente, Fred 04, disse a uma entrevista à revista
Coquetel Molotov que Cadão Volpato é um dos melhores
letristas brasileiros de todos os tempos e as letras do Fellini
era um de seus trunfos. O Fellini era muito sofisticado para o
público médio dos anos 80 ou muito sofisticado para
a mídia dos anos 80?
Jair Marcos: - Acho que nem tanto. O Fellini é
arte, pura arte. Suas letras mostram totalmente esse sentido livre
de se expressar a arte, sem amarras ou receitas em como se fazer
determinado tipo de arte. Nossa música tem algo de surrealista,
algo de cinematográfico. As pessoas que acompanham a arte
em todas as suas expressões não devem ter estranhado
o Fellini. Mas na época o movimento punk ainda era intenso
e havia um público que ansiava por uma mensagem mais social
e direta, o que não era bem o nosso caso...
Thomas Pappon: - Não queria soar pedante, mas
acho que os fãs do Fellini de fato são gente bem
educada - não necessariamente 'sofisticada' - que está
convencida de que o grupo fez coisas sensacionais e que precisam
ser conhecidas. O número de fãs era pequeno nos
anos 80 - mas me parece que este número está crescendo,
nesta década em particular. Com a internet, com o Orkut,
a tendência tem sido de uma constante 'descoberta' do Fellini.
Hoje vejo que o grupo - e as letras do Cadão - foram e
continuam sendo 'trilha sonora' da vida de muitas pessoas. E fora
do Brasil muita gente começou a conhecer o Fellini agora,
por causa das duas coletâneas recentes dedicadas ao pós-punk
de São Paulo.
Até agora o Cadão tem sido comparado a Renato Russo
e Cazuza. Mas acho que daqui a uns anos ele vai ser comparado
a Chico Buarque e Caetano Veloso. Ah, e não podemos reclamar
da mídia dos anos 80. Ela gostava muito da gente (sem sacanagem).
Pergunta: - Se
vocês voltassem hoje, acha que as dificuldades seriam maiores
ou menores que nos anos 80? Particularmente acho o mercado atual
muito mais fechado aos independentes...
Jair Marcos: - O mercado musical no Brasil é muito
medíocre, estúpido. Mas é porque uma grande
massa é/está medíocre e estúpida,
e uma coisa está atendendo a outra, infelizmente, numa
reciprocidade bossal. Você sabe, nós sabemos, que
há muita coisa boa por aí, que não sai da
cena independente, e vai morrer aí... Hoje é um
pouco pior, porque os próprios artistas independentes também
não estão unidos, não se cooperam, não
se prestigiam... Não há uma cena definida. Assim
fica muito mais difícil mesmo. Mas lá nos anos 80,
havia muita dificuldade, sim, e ter um vinil gravado era como
ganhar uma Copa. Hoje o pessoal grava CDs às largas, mas
o anonimato é muito maior.
Thomas Pappon: - Acho que o esquema faça-você-mesmo
e a curiosidade dos anos 80 ajudou bastante a todos os grupos
da época. Não sei como andam as coisas hoje no mercado
aí no Brasil, mas uma 'volta do Fellini' certamente seria
bem vinda pelo nosso público e parte da mídia. Mesmo
que no esquema independente.
Pergunta:
- Cadão disse, em uma entrevista à Bizz, em 86 ou
87, que se "Rock Europeu" tivesse tido mais capricho
na produção e um backing vocal feminino teria tocado
até na Rádio Cidade. Por que vocês não
tentaram um hit radiofônico para abrirem um mercado para
vocês e outras bandas? Por que a maioria das bandas independentes
preferia não fazer algo mais palatável ao público
consumidor e ter alguma chance na mídia?
Jair Marcos: - A mídia não foi nossa preocupação
maior, mas fazer a música que nos agradava. As rádios
paulistas 89FM (SP) e a 97FM (ABC), por exemplo, tocaram o "Rock
Europeu" na medida, e esse foi nosso grande hit da época,
ao lado de "História do Fogo". Pra nós
era uma grande alegria poder ouvir essas músicas nessas
rádios, até então independentes também,
e era o que nos bastava.
Thomas Pappon: - Se o Velvet Underground tivesse tentado
fazer 'hits radiofônicos' provavelmente estaria esquecido
e não existiriam bandas como Joy Division, Echo & The
Bunnymen, Sonic Youth, Nirvana, etc, etc... Se os Beatles tivessem
tentado fazer algo 'mais palatável ao público' não
teriam feito o Sgt. Pepper's. Se "Rock Europeu"
tivesse tido o tal 'capricho na produção', provavelmente
não estaria sendo tocada em dezenas de rádios européias
ou college radios nos EUA como está sendo - desde
que foi lançada na coletânea The Sexual Lives
of the Savages, da gravadora britânica Soul Jazz,
em 2005. E se o Fellini tivesse, algum dia, 'aberto o mercado
para outras bandas', provavelmente não estaria sentado
no computador, dando entrevista para um website chamado Mofo...
Pergunta:
- Certa vez, Calanca me disse que os discos da Baratos Afins não
vendiam muito porque ele não tinha saco para fazer alguns
joguinhos da mídia. Como era o relacionamento com ele,
que também era produtor?
Jair Marcos: - O Calanca sempre teve essa postura alternativa,
e acho que ele poderia ter trabalhado melhor a divulgação
e distribuição dos produtos que ele lançou,
inclusive os nossos. Mas ele sempre alegava muitas dificuldades
no encaminhamento dessas questões...
Thomas Pappon: - O Calanca bancou uma sessão de
estúdio para botar a percussão do Silvano (Michelino)
em "Zum zum zum Zazoeira" e "Teu Inglês"
e a sessão de mixagens do Só Vive 2 Vezes.
E bancou as capas e fabricação dos discos. O resto
foi feito e bancado pelo grupo. Nosso relacionamento é
bom, sou amigo do Luís. Mas poderia ser bem ruim, tendo
em vista as barbeiragens em alguns relançamentos em CD
e a falta de transparência da Baratos. Nunca ganhamos um
centavo da gravadora.
(Quando peço uma explicação dessas "barbeiragens",
Thomas disparou: As letras do Adeus de Fellini
não foram revisadas pelo pessoal da banda e, por isso,
têm vários erros. Até os nomes dos integrantes
estão errados (Cadão Volpatto, Thomas Pappou, Ricardo
Salvagui). O font das letras é horrível. As 'faixas
bônus' no 3 Lugares Diferentes foram incluídas
sem consultar a banda. "Aeroporto", por exemplo, não
era para ter sido usada, pois tinha sido lançada no cassete
de Amor Louco.)
Pergunta:
- Qual é a opinião de vocês sobre a cena rock
no Brasil, tanto da grande mídia como a indie?
Jair Marcos: - O rock mainstream sempre foi
muito medíocre, e hoje não poderia ser diferente.
Aliás, nem sei o que está rolando por aí.
Não assisto a programas populares e muito menos tenho ouvido
rádios pop, portanto só sei que existe um tal Detonautas,
mas não tenho e não quero ter a mínima idéia
do que esses "manos" fazem por aí. Esse rock
de boutique me entedia à exaustão, e tenho que aproveitar
meu tempo e meus ouvidos pra saber o que andam fazendo de qualidade
por aí afora, realmente, aqui e acolá. A música
indie também nos chega pouco, consideradas as atuais dificuldades
que comentamos acima. A menos que você vá para as
baladas, o que não tem sido muito o meu caso, pelo menos,
então fica mais difícil ver o que está sendo
feito, apesar de eu conhecer bastante coisa feita nos últimos
anos. Às vezes, encontro alguém que me dá
uma cópia de CD, que recebo sempre com carinho pra aquela
ouvida e só. Acho que o rock no Brasil está mais
disperso do que nunca!
Thomas Pappon: - Acho tudo uma merda. Fora o Júpiter
Maçã.
Pergunta:
- Qual seria o setlist perfeito do Fellini em um show?
Jair Marcos: - "Rock Europeu", "Samba
das Luzes", "LSD", "Chico Buarque Song",
"Pai", "Zum Zum Zum Zazoeira", "História
do Fogo", "Grandes Ilusões"...
Thomas Pappon: - Passo essa para os fãs. Mas outro
dia vi um show do Gang of Four onde tocaram apenas o álbum
Entertainment!, de cabo a rabo. Pensei que seria
do cacete fazer um show de despedida tocando O Adeus de
Fellini, na formação original (Ricardo
na bateria) do começo ao fim.
Pergunta: - Quais
são seus discos favoritos do grupo?
Jair Marcos: - Eu gosto de todos, mas meu favorito é
Amor Louco.
Thomas Pappon: - Por anos achei que era o Amor
Louco...mas enjoei um pouco dele...hoje acho que é...deixa
eu ver....o 3 Lugares Diferentes.
Pergunta: - Como
era o método de gravações em estúdio?
Jair Marcos: - Gravávamos as bases com bateria,
depois os baixos, depois as guitarras e violões (cada um
à sua vez), os backings vocals e a voz ficava
sempre pro final. Nessa ordem, como manda o figurino!
Thomas Pappon: - Depende do disco. As músicas
sempre estiveram prontas antes. O Amor Louco
e o Adeus...foram gravados em estúdios
profissionais. Com cada músico gravando em separado. Os
outros três foram gravados em casa, com porta-estúdio.
Pergunta:
- Finalizando: já que fizeram tantos shows acústicos,
por que não pedem à MTV para gravarem um acústico?
Jair Marcos: - Hey, não fizemos "tantos"
shows acústicos assim, aliás, nem me lembro de ter
feito um show acústico, mas usamos violões eletrificados
em alguns, o que não era necessariamente "acústico".
"Pedir" à MTV ou a
qualquer outra emissora não é muito de nosso feitio.
Adoraríamos um convite, sim, mas tudo teria que estar bem
"casado", e o Thomas teria que estar aqui no Brasil,
ao menos de passagem... Hoje as condições não
são muito favoráveis para qualquer projeto, mas
em breve eu, Cadão e Ricardo estaremos apresentando novidades...
Um abraço!
Thomas Pappon: - O show no TIM Festival foi bem acústico
- e bem legal. Pena que ninguém gravou em vídeo.
Daria um bom DVD. Por sinal, tem um vídeo de um show nosso
em Belo Horizonte em 89, gravado ao vivo pela TV Educativa. Outro
dia achei esse show numa fita velha, e me pareceu uma surpresa,
bem legal, bem acústico, aliás.
Pergunta: - Deixe
uma mensagem final aos fãs...
Jair Marcos: - Aos nossos fãs que crescem no Brasil
e no mundo, nosso eterno Adeus e um grande obrigado!
Thomas Pappon: - Não nos deixem sós...
|