Em
1989, o mundo foi pego de surpresa com a canção
"She Drives me Crazy" de uma banda de nome estranho
e um disco para lá de perfeito. A tal bolacha vendeu 15
milhões de cópias e ficou três meses encabeçando
a parada norte-americana. O nome do grupo foi tirado de um antigo
filme do anos 60, estrelado por Robert Wagner (aquele mesmo do
Casal 20 e do filme Austin Powers!) e Natalie Wood (par de James
Dean em Juventude Transviada), que depois casaram, de fato. Após
dois discos de estúdio, um de remix e uma coletânea,
sumiram do mapa e pararam com tudo. Apenas em 2002 o cantor Roland
Gift, dono de um fraseado rítmico sensual e até
exótico voltou com um interessante álbum-solo. Essa
banda que regravou "Suspicious Mind" de Elvis e que
produziu grandes canções como "Johnny Come
Home", "Blue", "Good Thing", além
do mega-hit já citado, merece ter sua história contada
e as canções ouvidas. Para meus 10 leitores, dedico:
Fine Young Cannibals.
Para falar da origem do
Fine Young Cannibals é necessário voltarmos ao passado
de uma grande banda (que brevemente terá uma coluna só
sua aqui), o The Beat (que na América era conhecida como
English Beat). O Beat era uma banda que misturava new wave com
ska, nos mesmos moldes do Specials e Madness. Em 1983, o grupo
acabou e Andy Cox (guitarra) e David Steele (baixo), surpresos
com a saída dos vocalistas Ranking Roger e David Wakelin,
que montaram o General Public, tiveram que repensar uma nova banda.
Mas já que o Beat tinha ido para o espaço, resolveram
aumentar o leque musical da banda, enxertando elementos de jazz
e soul em uma nova identidade, e para isso queriam um vocalista
desconhecido e com uma voz forte e marcante.
As
audições para alguém ocupar o posto foram
exaustivas e mais de 500 cantores foram testados. Desesperados
por não encontrarem a voz certa, acabaram lembrando de
um jovem que tinha trabalhado como vocal de apoio para o Beat.
O nome do rapaz era Roland Gift. Resolveram procurá-lo
e o acharam em um bar cantando com uma banda especializada em
material R&B chamada Bonés. Os dois descreveriam Roland
como uma mistura da classe e porte de Sidney Poitier com a garganta
de Otis Redding. Exageros à parte, Roland era, de fato,
um cantor diferente, com uma voz sem paralelo na Inglaterra. Gift
era então um jovem de 21 anos, natural de Birmigham, que
havia mudado para a pequena Hull aos 10 e ficou muito tempo internado
em um hospital doente. Sua primeira experiência musical
havia sido como saxofonista em um grupo punk local chamado Blue
Kitchen.
Roland
acabou sendo chamado para a banda que ganhou um sugestivo nome:
Fine Young Cannibals, tirando do filme All The Fine Young Cannibals,
de 1960. No começo de 1985 conseguiram um contrato com
a gravadora London Records. A gravadora tentou empurrar um produtor
goela abaixo do trio, que espertamente recusou.
Gravaram
uma demo de enorme repercussão que virou o primeiro hit,
chamado "Johnny Come Home". Eis a letra da canção...
Johnny Come Home
Nobody knows the
trouble you feel
Nobody cares the feeling is real.
Johnny
we're sorry
won't you come on home?
We worry
won't you come on?
What is wrong in my life that I must get drunk every night ?
Johnny
we're sorry.
Use the phone
call your mum - she's missing you badly
missing her so
Who do you know
where will you stay?
Big city life is not what they say.
Johnny
we're sorry
won't you come on home? . . .
You'd better go
home
everything's closed
Can't find a room
money's all blown.
Nowhere to sleep out in the cold
nothing to eat
nowhere to go.
Johnny
we're sorry
won't you come on home? . . .
Won't you come
on home ? We worry
won't you come on home ?
Johnny
won't you come on home? We worry
Com
o sucesso, a gravadora quis imediatamente colocar a banda para
produzir um disco de estréia. Robin Millar foi o escolhido
para a função de produtor. Millar já tinha
trabalhado com o duo inglês Everything But The Girl. Intitulado
apenas Fine Young Cannibals, o disco é
uma irresistível mistura de jazz, soul, pop, com o vocal
totalmente diferente de Roland e que fez a imprensa britânica,
exageradamente, chamá-lo de "versão inglesa
de Marvin Gaye". O disco disparou nas paradas com vários
compactos de sucesso: além de "Johnny Come Home",
a beleza a elegância da letra de "Blue" (uma sutil
crítica ao governo conservador de Margaret Thatcher), havia
uma cover irrepreensível de uma mega sucesso de Elvis Presley,
"Suspicious Minds", com vocais de apoio de Jimmy Sommerville,
então Bronski Beat (e mais tarde no The Communards) mostrando
toda a classe e sofisticação do disco.
O
sucesso fez a banda muito requisitada e acabaram aparecendo na
trilha sonora do fime Something Wild, de Johnathan Demme, fazendo
uma versão do clássico "Ever Fallen in Love",
dos Buzzcocks. O charme e a beleza incomum de Gift, para os padrões
britânicos, acabou atraindo o jovem cantor para as telas
de cinema. Primeiro, a banda fez uma participação
no filme Tin Men, de Barry Levinson, tocando algum de seus sucessos
em um bar. O filme era protagonizado por Danny De Vito e Richard
Dreyfuss. No mesmo ano, Gift participa de um filme polêmico
dirigido por Stephen Frears chamado Sammy and Rosie (Get
Laid), que retrata a vida de um jovem casal nada convencional
em uma Londres do meio da década de 80. O cantor vive o
personagem Danny, também conhecido como Victoria, um desempregado
que mora em um trailer e vive em uma comunidade perseguida pela
polícia. O filme rendeu alguns bons elogios ao cantor,
que trabalhou em mais uma produção cinematográfica
ainda em 1987, Out of Order. Enquanto Roland
se aventurava no cinema, David e Andy montaram um projeto paralelo
chamado Two men, a drum machine and a trumpet e lançaram
um single chamado "Tired of getting pushed around",
que teve uma razoável repercussão. O grupo voltou
a se unir no início de 1988 para a gravação
do segundo disco. Inspirados no antropólogo francês
Claude-Levi Strauss, autor de Le Cru ete lê cuit, gravaram
The Raw & the Cooked. E o mundo (deles) virou de ponta-cabeça.
Ok,
o grupo esperava e queria mais sucesso, mas nem em delírios
sonhava com o que aconteceu então. A canção
"She Drives Me Crazy" virou um hit monumental, com sua
batida meio disco, meio reggae e o fraseado vocal de Roland. O
disco vendeu inacreditáveis 15 milhões de cópias
mundo afora e o grupo amealhou incontáveis prêmios.
A
finemania virou uma histeria a ponto da revista Rolling
Stone colocar uma foto de Roland na capa com os dizerem "eles
enlouqueceram a América". "Good Thing" e
"She Drives me Crazy" foram número 1 na parada
americana por semanas, e o grupo lotou todos os palcos do mundo.
Veja a letra da canção...
She Drives Me Crazy
I can't stop
the way I feel
Things you do
don't seem real
Tell you what I got in mind
'cause we're runnin' out of time
Won't you ever set me free?
This waitin' 'rounds killin' me
She drives me crazy
like no one else
She drives me crazy
and I can't help myself
I can't get
any rest
People say
I'm obsessed
Everything that's serious lasts
But to me there's no surprise
What I have, I knew was true
Things go wrong, they always do
She drives me crazy
Like no one else
She drives me crazy
And I can't help myself
I won't make it,
On my own
No on likes,
To be alone
She drives me crazy
Like no one else
She drives me crazy
And I can't help myself
Uh huh huh
She drives me crazy
Like no one else
She drives me crazy
And I can't help myself
Uh huh huh
She drives me crazy
Like no one else
She drives me crazy
And I can't help myself
Mais
do que depressa a gravadora lançou um disco picareta para
capitalizar em cima do fenômeno do momento: The
Raw & the Remix (1990). Mas todo sucesso acabou causando
uma tensão incontrolável no trio. Roland explica
o fato: "Quando voltamos a trabalhar para compor novas canções
a pressão sobre nossas cabeças era algo desumano.
Nós tínhamos vendido 15 milhões de cópias
e a gravadora tinha plano de lançar 30 milhões de
cópias do novo disco! Todos queriam dar palpites nas composições
e eu, Andy e David olhávamos um para o outro e perguntávamos
'isso aqui é um hit ou não?'. Nós não
sabíamos o que fazer."
A
situação piorou quando em 1990, Roland causou um
tremendo mal estar ao recusar dois Brit Awards, avisando que o
evento servia como propaganda para o governo conservador. "O
governo desse país é uma merda, discriminando as
minorias étnicas violentamente. Eu não iria posar
ao lado de um deles e trair minhas convicções."
A tensão aumentou
ainda mais quando Roland avisou aos outros dois que iria sair
em excursão com uma companhia de teatro ao invés
de trabalhar em um novo disco. "Eu só queria ficar
um pouco livre daquilo tudo. Não havia mais diversão,
eram apenas telefonemas e cobranças em cima de mim. Me
enchi de tudo e resolvi fazer algo mais simples."
O
ódio de Andy e David cresceu tanto que resolveram não
falar mais com o cantor. Em 1996, saiu a coletânea The
Finest, com duas canções inéditas,
"The Flame" e "Since You've Been Gone". Esse
foi o último suspiro, que segundo o cantor, "pairou
como um fantasma durante seis anos até o lançamento
dessa compilação". Depois disso, a banda não
tinha mais motivos para continuar, já que a relação
entre os três era nula.
Mas o que eles fizeram durante os seis anos em que nada lançaram
e continuaram a existir, ao menos oficialmente? Roland desistiu
da música, pegou seus dois filhos e ficou dividido entre
Londres, Hull, Birmigham e uma fazenda que comprou na Nova Zelândia.
"Eu saí fora porque queria ver tudo de uma maneira
mais direta. Andy e David já haviam feito sucesso antes
(com o Beat), eu era o novato e me cansei daquilo tudo. Talvez
eu fosse um tolo em abrir mão de todo o glamour, mas eu
não sabia como encarar toda aquela pressão e responsabilidade.
Desde então passei a me preocupar com a educação
dos meninos, quero mostrar a eles o lado bom e passar um pouco
da minha experiência. Eu acumulei dinheiro em todos esses
anos, o suficiente para poder oferecer uma boa vida e sossego
e acho que essa é minha mais importante missão.
Eu cansei daquela coisa de símbolo sexual. Alguém
se lembra que eu fui punk, tinha um cabelo loiro e o apelido de
Guinness? (cerveja irlandesa preta, amarga e com um colarinho
loiro, espesso). Eu nunca gostei de passar horas em frente
a um espelho me vestindo ou dizendo 'nossa como sou bonito!'.
Eu nunca soube comprar roupa, minha namorada é que faz
isso. Eu tenho uma boa voz, sou afinado, mas aquela palhaçada
de 'nosso Otis Redding, nosso Marvin Gaye', soava mais como um
constrangimento do que propriamente um elogio."
Mas
se você pensa que Roland abandonou definitivamente o mundo
pop, está completamente por fora. Após longas férias,
resolveu voltar e com um novo disco, que leva apenas seu nome.
E por que a volta?
"Eu pensei muito porque
após o Fine acabar, fiquei um ano e meio tentando um acordo
com a gravadora para lançar um disco só meu e depois
de muita luta, a reunião que estava agendada, foi cancelada.
Fiquei possesso, peguei o telefone e perguntei se queriam ou não
me contratar e ouvi uma negativa. E passei muito tempo após
isso sem muita certeza do que fazer, até que, em 2000,
fiz uns shows pequenos com essas novas músicas que estavam
sendo escritas desde 1998 e vi que as pessoas gostaram. Parei
e pensei se deveria tentar uma volta e me pareceu a idéia
certa. Encontrei Andy Cox, conversamos e ele participou de algumas
faixas. David não fala mais comigo desde o final do grupo,
mas não me importo."
Para
a produção chamou um velho amigo dos tempos do Cannibals,
David Z, além de um grupo chamado Tha Acrylic Victims,
e um convidado muito especial para Roland, Desmond Dekker, ídolo
de vários anos.
"Se quero o sucesso?
Claro que sim. Se quero tudo aquilo de novo. Não exatamente.
Eu quero reconhecimento e que o disco venda bem e renda um bom
dinheiro, mas não quero mais toda aquela histeria. Caso
contrário, volto para minha fazenda e minha família.
E por falar em família,
quando Roland finalmente casará com sua namorada? "Casar?
Hum, não vou. Meus pais não se casaram, meus avós
não se casaram e não acho certo mexer em uma tradição
familiar".
O disco é um excelente
modelo de excelência pop, com arranjos mais enxutos, e que
lembram (e nem teria como ser diferente) o Fine Young Cannibals.
Dificilmente Roland terá o mesmo sucesso que sua antiga
banda. Mas como já cantou o próprio "ele não
é mais o homem que costumava ser."
Até a próxima
coluna. Um abraço!
Discografia
Fine Young Cannibals (1985)
The Raw & the Cooked (1989)
The Raw & the Remix (1990)
The Finest (1996)
Discografia de
Roland Gift
Roland Gift (2002)
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