044 – Patti Smith – Dream of Life

Ela já foi chamada de “Bob Dylan de saias”, pela força de suas letras. Além do talento incomum para escrever, Patti Smith entrou para a história por ser, talvez, a primeira grande poeta feminina do rock, e por ter influenciado toda uma geração que explodiria durante o movimento punk e nos anos 80. Ela já era conhecida e respeitada em Nova York quando lançou seu primeiro compacto, “Piss Factory”, aos 28 anos, em 1975. Hesitou muito antes de montar uma banda já que seus escritos eram publicados em várias revistas. No mesmo ano, lançou “Horses”, um dos mais importantes álbuns da história do rock e que motivou bandas como R.E.M., The Smiths, U2, Waterboys, entre outras, a entrar no rock. Em 1978, alcançou o auge da carreira com a canção “Because The Night”, parceria com Bruce Springsteen. Ainda lançaria mais um disco, em 1979, “Wave”, antes de anunciar uma aposentadoria precoce quando atingia o ápice. Voltaria em 1988, com “Dream of Life”, um disco mais voltado para o lado familiar e tendo como parceiro de composição o seu marido Fred Smith, lendário músico do MC5. Só voltaria a gravar em 1996, depois da morte do marido e de uma profunda reavaliação de sua vida. Superado os traumas, continua gravando e mostrando que o mundo do rock não é feito apenas de homens.


Patti Smith pode ser considerada uma versão feminina de Bob Dylan. Não só pelas letras, mas por sua coerência. Nunca aceitou paparicações da mídia, dos fãs, e manteve sempre uma postura sóbria sobre sua importância. Prova disso, é que quando Bono tentou fazer uma festa em sua homenagem no ano em que completava 50 anos (ela nasceu em Chicago, em 30 de dezembro de 1946), criticou duramente o cantor por não precisar desses tipo de evento para se promover. Em várias entrevistas, deixou claro o amor pelo som de Jimi Hendrix, de Bob Dylan, seu melhor espelho, The Rolling Stones (era apaixonada por Keith Richards), e dos Doors de um cantor que viria ser seu amigo pessoal, Jim Morrison.

“Eu fui criada vendo os Stones e Dylan se apresentando. A geração de hoje não tem mais pessoas como eles para serem referências. Era uma época maravilhosa. Os shows não tinham a qualidade técnica de hoje, mas em compensação, ver Dylan e Hendrix no palco já compensava tudo. E esse diferencial não existe mais no rock de hoje”.

Patti começou a carreira como poetisa, influenciada por escritores beats como Allen Ginsberg e William Burroughs, de quem ficaria amiga íntima até sua morte, e por outros escritores não menos notáveis como o poeta irlandês William Butler Yeats, García Lorca e Rimbaud. Em 1968, mudou-se para Nova York e conheceu então o escritor de teatro e de cinema Sam Shepard, com quem escreveu junto uma peça de teatro (Mad Dog Blues) e atuou em peças como Cowboy Mouth. Começava então a conhecer a vanguarda de Nova York, ficando amiga de Andy Warhol, Lou Reed e publicou dois livros (Seventh Heaven, em 1971 e Witt, em 1973). No ano seguinte, quando começou a aparecer uma geração de artistas na cidade que daria o início ao punk, se aventurou a cantar. “Eu sempre quis cantar meus poemas, mas nunca tinha coragem. Foi só depois de ouvir Another Side, de Bob Dylan (disco de 1964), é que senti que poderia fazer o mesmo. Ele me libertou para a música”. Começava então a se apresentar em pequenos lugares da cidade até surgir o lendário clube CBGB, que projetou artistas como Television, Talking Heads, Blondie, Ramones, Richard Hell, Modern Lovers, entre outros, para o mundo.

Causou certo furor na comunidade cultural americana ao lançar o compacto “Piss Factory/Hey Joe”. Imediatamente foi contratatada e montou a Patti Smith Group, debutando com o histórico Horses. Apesar de não ser ainda uma grande cantora, suas letras impressionavam pelo vigor. No início do disco, recita: “Jesus morreu pelo pecado dos outros, não pelos meus”. Em seguida faz uma cover de “Gloria” de Van Morrison. Apesar de não ter feito grande sucesso comercial, Horses, foi aclamado como o melhor disco de estréia do ano.

“Eu nunca mais fui o mesmo depois de ouvir Horses. Eu fiquei atormentado por anos por aquele disco”, confessa Morrissey, no auge da carreira com os Smiths. Já Lou Reed, lembra que ficou estupefato com o lançamento: “Ela foi produzida por (John) Cale (ex-parceiro de Lou nos tempos de Velvet Underground) e me lembro da repercussão. Quando a conheci, ela me falava que gostava muito do Velvet, não só pelas minhas letras, mas pela nossa sonoridade que era realmente muito agressiva para a época. Quando ouvi seu disco, liguei para ela e disse: Uau Patti, que disco! Duvido que eu possa fazer algo melhor. Ela riu e agradeceu o elogio, mas disse que era apenas um início. Depois disso, tive vontade de reatar minha amizade com John, que saiu do Velvet magoado comigo.”

“Quando eu escrevi Horses eu estava focada em gente como eu: fora da nata da sociedade, formado por pessoas que eram considerados marginais abandonados, mas altamente produtivos. Minha vida nesta época era assim e eu senti que deveria dar voz a todos eles e mostrar ao mundo que todos os problemas, não apenas os do meu país, mas os mundiais também nos preocupavam.”

Patti Smith foi então decolando na carreira até atingir as paradas do sucesso com a canção “Because The Night”, em parceria com Bruce Springsteen, do álbum Easter, de 1978: “Foi a primeira vez que comecei a entender a que ponto eu tinha chegado na carreira. A gravadora fazia festas em várias cidades da América para promover meu disco, que estava vendendo bem graças ao sucesso de “Because”. Eu comecei então a sentir toda a pressão da indústria em cima de mim e muitas vezes brigava com todos ao meu redor, porque eu não queria ser apenas considerada uma cantora de rock, uma espécie de bibelô da mídia. Eu não ligava quando as pessoas diziam que eu era feia, me vestia mal ou estas coisas, mas ficava enfurecida quando questionavam minha integridade como artista.”

Foi em uma destas festas que conheceu Fred Smith, ex-músico do grupo de Detroit, MC5, e que foi homenageado no disco seguinte, Wave, com a canção “Frederick”, de 1979. No mesmo ano, chocou os fãs ao dizer que estava abandonando o mundo da música, após um concerto na Itália, para mais de 85 mil pessoas, para se dedicar ao seu marido, com quem teve dois filhos.

“Foi um período de reclusão para mim importante, mas ao mesmo tempo doloroso, porque mesmo não gostando da máquina da indústria, eu sentia falta do contato com o público. Mas foi necessário eu parar, já que eu sofria de crises crônicas de bronquite durantes as viagens e minha condição física ia se deteriorando. Ao mesmo tempo, eu queria experimentar como era ser uma dona de casa, mãe, educar meus filhos, enfim ter uma vida normal.”


Em 1988, após um longo hiato, resolveu voltar ao mundo do rock, com Dream of Life, o disco em questão.

“Eu voltei a cantar atendendo um pedido do meu marido que achava que eu podia contribuir muito com a música. Pessoalmente eu considerava encerrada minha missão como rock-star, mas Fred fez de Dream… um álbum dele. Nós escrevemos juntos todas as músicas e ele ficava horas e horas trabalhando em cima das músicas. Quando “People Have The Power” começou a tocar nas rádios, senti uma sensação estranha: ao mesmo tempo de estar orgulhosa de voltar a compor e ao lado da pessoa que mais me entendia e me amava, eu temia voltar para a rotina que tinha quase acabado com minhas forças na década de 70.”

Foi também considerado o disco mais pessoal de sua carreira, e presta homenagens a seu filho Jackson, que tinha na época cinco anos. “Lembro do meu filho escutando o disco anos depois, e dizia que gostava muito de “People Have The Power”. Jackson é uma criança muito querida, porque eu e Fred tentamos dar a ele a melhor educação que pudemos. Eu comecei a estudar vários temas e escutávamos música clássica e John Coltrane em casa. Ele sabia que seu pai e eu éramos famosos, mas nunca se importou isso. O que ele queria era estar ao nosso lado.”

Outra mudança grande em sua carreira após o casamento com Fred, em 1980, foi mudar de cidade: abandonou a amada Nova York para morar em Detroit. “No começo não gostei da cidade, pelo simples fato de não possuir metrô, além de sentir falta das luzes das ruas de Nova York. Eu devo ser a única pessoa no mundo que odeia dirigir. Eu me sentia presa na cidade, mas ao mesmo tempo pude constituir uma família e perguntei se valia a pena trocar o meu lar pela estrada novamente, depois dos 40 anos.”

Após a boa repercussão do trabalho, Patti voltou aos palcos de maneira gradual e lenta. “Lembro que me chamavam para festivais em que tinham mais de 30 ou 40 mil pessoas. Eu fiquei meio temerosa, porque estava aprendendo a lidar como todo esse mundo novamente e queria lugares menores, onde pudesse conversar com o meu antigo público. Mas logo vi que teria que enfrentar grandes audiências.”

O disco pode ser considerado o mais “romântico” de sua carreira, já que possuía arranjos delicados e letras mais líricas. Fred queria que sua esposa voltasse ao mundo com a mesma energia do começo, mas mostrando o outro lado desconhecido de Patti, a de mãe madura e realizada pessoalmente. Canções como “Path That Cross”, “Going Under” e Looking For You”, pareciam “suaves” demais para quem tinha sido rotulado como a “mãe do punk”.

“Realmente o clima era muito mais ameno. Eu estava mais velha, tinha muito a perder já que tinha construído um lar e era feliz. Por isso, me concentrei em falar sobre as pessoas e emoções. Várias vezes eu voltava ao passado tentando lembrar do clima dos concertos e da atmosfera que eu sentia quando viajava e ainda estava só. São doces lembranças que guardo com grande carinho, mas eu era outra pessoa, muita coisa tinha acontecido comigo na década de 80. Eu não abri mão de falar sobre realmente do que achava importante, mas Fred foi muito sutil e soube dar um toque bem leve nas canções.”

Mesmo sem alcançar o sucesso de “Because The Night”, “People Have the Power” foi bem aceita por um público bem mais jovem que a conhecia mais pela sua história do que sua música. O disco também foi elogiado e considerado um dos melhores retornos de um “dinossauro” do rock.

“Duas coisas me marcaram nessa época: a primeira, foi ouvir uma versão dance ridícula dance de People nas rádios. Se fosse na década de 70, eu ficaria indignada, mas achei tão estranho que até dei risadas. Outra foi que comecei a ficar mais famosa quando alguns artistas, como o U2, resolveram fazer cover de “Dancing Barefoot” (do disco Wave de 1979). Isso me aproximou mais com os jovens, o que eu não esperava tão facilmente.”

Quando todos esperavam que tivesse voltado para ficar, ficou novamente quase uma década fora da mídia: “Foi uma época muito triste, já que Fred morrera, além de alguns amigos meus. Isso me fez fechar novamente e perguntar como seguiria minha carreria e ainda queria. Além de ser meu último parceiro, Fred era talvez a única pessoa que sabia exatamente como eu era. Eu olhava pessoas como Madre Teresa e me sentia impotente perto do trabalho que ela fazia ou de Elizabeth Taylor que levantava fundos para combater a AIDS. Eu não sabia se poderia fazer o mesmo tipo de coisa, ainda mais sem poder contar com o apoio de Fred.”


Patti só voltaria a gravar em 1996, lançando Going Home, disco que tem uma faixa em que homenageia Kurt Cobain, do Nirvana; “fiquei muito triste quando Kurt morreu, pois sentia uma grande identidade com sua música, suas letras e a dificuldade em lidar com a fama e ao mesmo tempo ser pai de família. Foi realmente uma perda imensa para o mundo”.

Felizmente resolveu voltar ao mundo do rock e continua compondo e lançando discos com certa regularidade. Patti Smith, que sonhava um dia em conhecer seus ídolos, acabou ficando amiga íntima de Dylan e fez o discurso de felicitações quando o Velvet Underground entrou para o Rock and Roll Fame. Ela continua por aí, compondo lindas canções e lembra muito Dylan, não só pela coerência já citada, mas por seu aguçado senso de justiça e de poesia. Se ela é a maior compositora feminina do rock ou não, é irrelevante. Mas jamais será esquecida como uma das artistas mais honestas e íntegras do rock.

Fiquem com a letra de “People Have The Power”. Um abraço a todos e até a próxima coluna!

People Have The Power
I was dreaming in my dreaming
of an aspect bright and fair
and my sleeping it was broken
but my dream it lingered near
in ther form of shining valleys
where the pure air recognized
and my senses newly opened
I awakened to the cry
that the people/have the power
to reedem/the work of fools
upon the meek/the graces shower
its decreed/the people rule

The people have the power
The people have the power
The people have the power
The people have the power

Vengeful aspects became suspect
and bending low as if to hear
and the armies ceased advancing
because the people had their ear
and the sheperds and the soldiers
lay beneath the stars
exchanging visions
and laying arms
to waste/in the dust
in the form of/shining valleys
where the pure air/recognized
and my senses/newly opened
I awakened/to the cry

Refrain

Where there were deserts
I saw fountains
like cream the waters rise
and we strolled there together
with none to laugh or criticize ans the leopard
and the lamb
lay together truly bound
I was hoping in my hoping
to recall what I had found
I was dreaming in my dreaming
god knows/purer view
as I surrender to my sleeping
I commit my dream to you

Refrain

The power to dream/to rule
to wrestle the world from fools
its decreed the people rule
its decreed the people rule
LISTEN
I believe everything we dream
can come to pass thru our union
we can turn the world around
we can the earth’s revolution
we have the power
People have the power…

Discografia

Horses (1975)
Radio Ethiopia (1976)
Easter (1978)
Wave (1979)
Dream of Life (1988)
Gone Again (1996)
The Patti Smith Masters: The Collective
Peace and Noise (1997)
Gung Ho (2000)
Land 1975-2002 (2002)
Trampin’ (2004)
Twelve (2007)