048 – Lou Reed – New York

A obsessão continua: depois do Velvet, é a vez do homem solo. O culpado de tudo. Aquele que ficou famoso em um cartaz dos anos 70 como se fosse um bandido procurado nos tempos do velho oeste. Os dizerem eram simples: procurado for fazer toda uma geração virar faggot (expressão ofensiva e chula para definir homossexuais) e junk. Se ele fez isso mesmo, merecia realmente ser procurado. Afinal, se ser politicamente incorreto na América de hoje, comandada por um maluco, já é, no mínimo, um perigo, imagine então nos anos 70? Isso não é uma ofensa. Só poderia ser o maior dos elogios!


Lou já não tinha mais nada a provar quando gravou New York. Ou melhor, tinha. Provar que poderia fazer um belo poema de amor à cidade que tanto retratou, sempre com uma navalha na boca. Não é à toa que Bowie quando comemorou seus 50 anos em 1997, no Madison Square Garden, o chamou para o palco anunciando como “o Rei de Nova York em Pessoa”. Juntos, detonaram quatro canções, a saber: “Queen Bitch” (homenagem do camaleão ao maldito, do disco Hunky Dory, de 1971), “I’m Waiting for The Man”, “Dirty Boulevard” (não por acaso do disco em questão) e “White Light/White Heat”. Uma lenda homenageando outra lenda. Esse é mais outro belo elogio.

Quando entrou para gravar New York, Lou estava saindo de um trabalho perturbador para ele mesmo: o disco homenagem a Andy Warhol, Songs for Drella com seu eterno parceiro, John Cale, com quem estava rompido há tempos. Sem conseguir exorcizar muito bem esse período, entrou logo em estúdio, e produziu mais uma obra-prima. Nem precisava nos dar mais um clássico do rock, mas quem disse que ele pensou nisso quando compunha? Ele é Lou Reed, o Rei. Quem somos para discutir?

Depois do jabá mais do que vergonhoso, voltemos ao que interessa. No segundo semestre de 1988, ainda que tentando digerir o Songs for Drella, Lou Reed começou a escrever de maneira febril para um novo trabalho, mesmo ainda sem direção. Depois do trabalho intimista com Cale, resolveu gravar um disco ao seu velho estilo: duas guitarras, baixo e bateria. Ou como ele próprio disse na contra-capa no disco: “nada supera duas guitarras, baixo e bateria”. Mas o homem superou a lenda.

Dos músicos convidados, apenas uma nova aquisição: o baterista Fred Maher, cunhado da mulher de Lou, Sylvia, e que co-produziria o disco com ele. Os velhos de guerra eram o baixista Rob Wasserman e a baterista do Velvet, Moe Tucker, que aparece em duas faixas: “Last Great American Whale” e “Dime Store Mystery”.

O projeto era ambicioso: “escrever um disco de rock que devesse ser apreciado durante 58 minutos, sentado como se estivesse assistindo um filme ou lendo um bom livro.”

“Quando comecei a escrever, tentava achar uma maneira de casar as minha letras com o ritmo da canção. Eu queria que as pessoas pegassem o clima das letras, essa era a minha maior preocupação para o disco. Ouvir as letras. É assim que aprendi a ouvir rock. Este é meu ponto de vista: eu escrevo para pessoas com um certo nível cultural. Eu não tinha o objetivo de escrever New York como se fosse um adolescente. Quando você fica mais velho, ou você aprende com o que viveu ou pula fora e não volta mais. Ainda acho que tenho algumas idéias melhores do que algumas pessoas que estão por aí e estou disposto a lutar por elas e nem acho isso tão difícil de fazer. Pode soar taxativo, mas é a minha visão das coisas.”

Mas mesmo para Lou Reed isso não foi fácil. Pelo contrário, foi um dos discos que mais o consumiu: “Levei três meses escrevendo as letras. A morte de Andy havia mexido comigo, mesmo que eu não quisesse admitir. `Dime Store Mystery` era para ele, uma canção de amor a um cara que aprendi a amar e tive o privilégio de conhecer. Mas esses sentimentos você só percebe quando os perde.”

Songs for DrellaMesmo compondo incessantemente New York, ainda trabalhava no conceito de Songs for Drella, aumentando ainda mais os demônios dentro de si.

“Era uma luta interna. Enquanto eu cutucava os problemas contemporâneos (Aids, racismo, violência de gangues, violência doméstica, abuso infantil), eu tinha que pensar em poemas delicados intimistas para Andy. Isso estava me deixando louco!”.

Mesmo com tantas dúvidas, em janeiro de 1989, finalmente foi lançado o trabalho. A repercussão foi mais do que favorável. Segundo o New York Times “era finalmente a hora de prestar atenção em Lou de uma maneira mais séria”.
Mesmo sendo taxado de niilista por escrever apenas “canções tensas”, New York o colocou no topo da lista, em capas de revistas, mesmo que por pouco tempo.

“Foi meu disco mais vendido desde Sally Can’t Dance. Me deixou orgulhoso que as pessoas começassem a escrever sobre o trabalho, mesmo que de forma errada ou analisando equivocadamente minhas letras. O importante era debater os temas, mostrar que a América vendida ao mundo não existe mais, que temos problemas gravíssimos como qualquer nação pobre do mundo”.

Seu engajamento político, ainda que refinado, foi atribuído muito ao estreitamento de relação com Bono. Os dois fizeram algumas viagens pela América Central e África após se conhecerem pessoalmente durante as gravações do manifesto anti-apartheid Sun City, idealizado por Little Steven, guitarrista da E Street Band de Bruce Springsteen, em 1986.

“Bono estava numa época de conflito interno, porque o U2 tinha virado a banda mais popular do planeta e ele começava a ser criticado de maneira dura sendo acusado de querer ser um Messias no palco, enquanto posava de rock star para a mídia. Ele chegou perto de mim um dia e começou a falar o quanto gostava do meu trabalho, de minha posição independente e que havia entrado numa encruzilhada na carreira. Não sabia mais se deveria continuar com o grupo. Comecei a perceber que era apenas um garoto agoniado com o estrelato, que tinham colocado todo o peso do mundos nas suas costas e que não sabia como lidar com o fato. Sentamos e ele ficou falando horas e horas da vontade de viajar pelo mundo e ver com seus próprios olhos os problemas dos pobres. Quando me convidou, meu primeiro impulso foi dizer não, pois não sou um “working class hero”, mas aos poucos a idéia foi me seduzindo e aceitei a empreitada. E por mais que soe piegas, aprendi muito com ele.”

A amizade ficou tão forte que ao escrever “Beginning of a Great Adventure”, uma brincadeira sobre qual nome daria a um filho se tivesse, incluiu o nome do cantor irlandês na lista. Anos mais tarde, durante a turnê de Zooropa, Bono cantava com Lou Reed, em um telão e do outro lado do mundo, “Satellite of Love”, do disco Transformer, além de um plágio descarado na forma de escrever na canção de “The First Time”.

Mas é claro que houveram críticas. E pesadas: alguns desceram à lenha nas letras, acusando de serem anti-semistas e por atacar o Papa e o reverendo negro Jesse Jackson. Ainda assim, Lou Reed começava a planejar uma nova turnê, que nem chegou a sair do papel, pois acabou quebrando o tornozelo durante os ensaios.

Além das polêmicas, o trabalho foi comparado a Berlin, disco que compôs e 1973, e que virou um marco em sua carreira. Lou não vê similaridade aos trabalhos: “Em Berlin, fiz um disco falando de um período que me atraía muito, a Alemanha dos anos 30, pré-Hitler. Aquela imagem decadente, sempre foi muito interessante. Além disso, eu estava saindo do meu casamento com Betty e eu usei nós dois como pano de fundo. Imaginei dois norte-americanos drogados vivendo na Alemanha daquela época.”

Além da diferença no contexto, Berlin pode ser considerado a maior obra-prima do que depois ver ser rotulado, ridiculamente, de rock-deprê. Com uma banda de grandes músicos, entre eles Ginger Baker, Aynsley Dunbar, Tony Levin, Steve Hunter, Steve Winwood, Michael Brecker, entre outros, o disco era todo lento e as letras pertubadoras. “New York é totalmente diferente disto. É enérgico, seco, direto. E as letras são de outro enfoque.”

“Minha idéia para o disco era misturar a literatura com o rock de uma maneira que até então não tinha feito na minha carreira. Raymond Chandler era meu escritor favorito desde os tempos em que conheci Delmore Schwartz. Mas eu queria tentar casar o texto dele, com algo mais épico como Dostoiévski. Já imaginou unir literatura russa com guitarra? Nem eu, mas fui o que tentei realizar. E achei que consegui um bom resultado.”

Mais do que simplesmente um bom resultado, Lou mostrava uma visão aguda dos problemas: “não haviam personagens centrais, mas todas as canções tinham uma unidade. A idéia era amarrar como se fosse um grande conto, uma novela em pedaços. A grandiosidade de montar um tema assim me fez querer na época desejar fazer um disco com vários músicos, arranjos complicados, mas preferi simplificar, com medo de me perder. Já tinha consumido muito tempo com as letras e preferi ser o mais simples possível instrumentalmente falando. Queria dar uma característica de urgência e por isso necessitava de um som básico.”

A urgência pode ser conferidas nas letras, como nos primeiros versos de “There is No Time: “Não é o momento para celebrações/ Não é o momento para apertos de mão/ Não é o momento para tapinhas nas costas/ Não é o momento para bandas de fanfarra/ Não é o momento para otimismo/ Não é o momento para reflexões intermináveis/ Não é o momento para meu país, certo ou errado/lembre-se o que isso já trouxe…”

Mal acabara o projeto New York, Lou voltava ao estúdios e no final do ano lançaria o disco Songs for Drella. “Eu estava realmente intenso, começando a escrever pequenas peças orquestrais e que casavam com o que John queria fazer quando me chamou para homenagearmos o Andy. O mais incrível era como consegui pular de algo tão distinto de um disco para o outro em tão poucos meses. Eu estava há mais de três anos sem lançar um disco, e do nada, saíram dois e totalmente diferentes. Depois de tudo, levei mais alguns anos para um novo trabalho.”

Sua nova gravadora, a Sire, comemorava o ano de 1989, em grande estilo: acabara de assinar com o cantor e de quebra, teve dois discos perfeitos: “Foi um alívio ter saído da RCA, pois sempre tive várias brigas com os diretores. Após compor ‘Walk On the Wild Side’, eles pediam um novo hit. Explicava que aquilo era um acidente. Como ia imaginar que uma história de um travesti iria virar sucesso nas rádios? Fazer Berlin já foi complicado, ainda mais porque insistiam que eu continuasse minha dupla com Bowie, quando eu queria experimentar sozinho. E as nossas relações se deterioram muito após Metal Machine Music. Eles já estavam ressabiados com os discos Low e “Heroes” de David, e quando souberam que eu ia pelo mesmo caminho, se arrepiaram. E até com razão, porque fiz mais para provocá-los. Depois disso, cada disco era uma longa e tediosa briga. A Sire me deu total liberdade para compor o material que eu desejasse, além de me contratarem num bom momento, já que estava sem gravar há anos e com muito material na cabeça.”

Para ele, uma das cenas mais insólitas do período foi a gratidão com que os fãs chegavam perto dele para agradecer o poema à cidade: “O mais gozado é que depois de lançar o disco, várias pessoas comentavam que eu finalmente havia homenageado Nova York. Eu fiz isso a vida inteira, será que ninguém percebia isso? Sempre usei essa cidade como pano de fundo de todas as minhas histórias. Não é só Woody Allen que é obcecado por ela…”

Bem, fico aqui. Para acompanharem as letras e suas traduções cliquem aqui. De preferência, ouvindo o vinil (ou o CD). Um abraço e até a próxima!

Discografia


Lou Reed (1972)
Transformer (1972)
Berlin (1973)
Rock ‘n’ Roll Animal (1974)
Sally Can’t Dance (1974)
Lou Reed Live (1975)
Metal Machine Music (1975)
Walk on the Wild Side & Other Hits* (1975)
Coney Island Baby (1975)
Rock and Roll Heart (1976)
Walk on the Wild Side: The Best of Lou Reed* (1977)
Live: Take No Prisoners (1978)
Street Hassle (1978)
The Bells (1979)
Vicious* (1979)
Rock and Roll Diary: 1967-1980* (1980)
Growing Up in Public (1980)
Rock & Roll Today (1980)
The Blue Mask (1982)
I Can’t Stand It* (1982)
Rock Galaxy* (1983)
Legendary Hearts (1983)
Live in Italy (1984)
New Sensations (1984)
City Lights (Classic Performances By Lou Reed)* (1985)
Mistrial (1986)
New York Superstar* (1986)
Wild Child* (1987)
New York (1989)
Retro* (1989)
Songs for Drella (1990)
Magic and Loss (1992)
Between Thought and Expression: The Lou Reed Anthology* (1992)
A Retrospective* (1993)
Very Best of Lou Reed & Velvet Underground* (1995)
The Best of Lou Reed & the Velvet Underground* (1995)
Different Times: Lou Reed in the ’70s* (1996)
Set the Twilight Reeling (1996)
Live in Concert (1997)
Perfect Day* (1997)
Perfect Night: Live in London (1998)
The Definitive Collection* (1999)
Very Best of Lou Reed* (2000)
Ecstasy (2000)
American Poet (2001)
The Wild Side: Best of Lou Reed* (2001)
Golden Collection* (2002)
Legendary* (2002)
NYC Man: The Ultimate Lou Reed Collection*(2003)
The Raven (2003)
The Platinum & Gold Collection* (2004)
NYC Man: Greatest Hits* (2004)
Le Bataclan ’72 (2004)
Animal Serendade (2004)
Hudson River Wind Meditations (2007)

* coletâneas