099 – Nick Cave and the Bad Seeds – Murder Ballads

Que Nick Cave é, por natureza, um homem soturno, com olheiras imensas, um olhar assustador, além de alto e magro, não é novidade para meus 11 leitores cativos. Mas, precisava o dito cujo fazer um disco mais sanguinolento do que tablóide, daqueles que se você espremer abastece uns 10 bancos de sangue por meses a fio? E o pior (ou melhor, depende do seu gosto) de tudo isso é que foi o maior sucesso comercial de sua carreira, e ele fez até a bonitinha, baixinha e melosa Kylie Minogue mostrar que sabe cantar. De onde só se pode concluir duas coisas: ou o homem não é apenas um gênio, e sim O gênio ou o mundo todo sempre quis (e quer) sangue, sangue, sangue!!! Sendo assim, vamos nós… mas não leiam esse texto com as luzes apagadas e em um dia chuvoso. Eu que gosto do cara, nunca fiz isso e nem sou besta de deixar seguir essa regrinha básica. E mantenham o celular (com a bateria carregada) à mão caso o telefone de casa misteriosamente fique mudo e um tal de Stagger Lee bata à sua porta no meio da noite…


“Eu sempre tive uma certa obsessão por Kylie e queria compor algo triste e lento para quee la cantasse e mostrasse que poderia ser mais do que uma cantora adolescente. E acho que consegui o meu objetivo.” A frase de Nick Cave, explicando o sucesso inesperado e surpreendente do single “Where the Wild Roses Grow”, juntando dois grandes nomes da música australiana foi certamente o maior sucesso comercial de sua longa carreira. E o mais bizarro de tudo isso é que as paradas abraçaram uma canção de um disco sombrio e com letras tão violentas que na América recebeu o ridículo e inevitável selo “Parental Advisory – Explicit Lyrics”, o que fez o homem rir ainda mais: “eu sempre quis um selo desses em meu disco. Há quinze anos que busco um em meus trabalhos!”

O projeto Murder Ballads foi nascendo aos pedaços, com canções que foram compostas durante seu disco anterior, Let Love In. “O projeto todo começou por acaso. Quando estávamos gravando nosso último disco, compus duas canções longas e que não tinham o menor sentido dentro dele. “Song of Joy” e “O’Malley’s Bar” falavam de violência, de uma forma nua e com personagens fictícios. Minhas canções sempre foram meio autobiográficas, o que não era o caso dessas duas e por isso ficaram de fora de Let Love In. Mas eu fiquei pensando numa forma de aproveitá-las.”

Nick conta que sempre sonhara em fazer um disco focado em letras onde a violência fosse o tema central: “eu sempre achei que daria um bom disco, mas sabe como é, já sou considerado um cara meio assustador, tenebroso e durante anos minha vida foi quase destruída pelas drogas. Então esperei um tempo para que todas essas imagens negativas pudessem ser dissipadas. E consegui isso, em parte, graças ao meu filho, Luke”.

Luke é o filho que ele teve com a brasileira Viviane Carneiro, que conheceu em São Paulo e com quem morou no Brasil e em Londres. Apesar de já estarem separados, o garoto vivia parte do tempo com o pai, na Inglaterra. “Quando ele nasceu, percebi que precisaria controlar meus demônios internos porque agora havia alguém muito pequeno que dependia de mim. O que um viciado não percebe é que ao se drogar você não está apenas prejudicando a sua vida, mas também os outros que vivem ao seu redor, e nessa época alguns jornais inventaram mentiras absurdas, como quando disseram que eu estava envolvendo com satanismo. Eu sou meio fúnebre, faço uma música pesada, mas não tenho nada com esse tipo de coisa.”

Cave explica que o conceito da violência não é algo assim tão chocante hoje em dia, no mundo da música: “veja a canção “Stagger Lee’, que eu adaptei. Vários grupos americanos de gangsta rap fizeram suas ‘Stagger Lee’, mas a minha talvez seja mais crua e maldosa. Mas a idéia é a mesma.”

O disco começa com “Song of Joy”, uma música que já causa um sentimento de repulsa ao ouvinte, ao narrar a história de uma mãe e suas três filhas que são assassinadas com requintes de crueldade. O assassino, após a chacina, ainda escreve na parede da casa, com sangue, alguns versos do poema épico Paraíso Perdido, de John Milton: Farewell happy fields/Where joy forever dwells/Hail horrors hail… The sun to me is dark/And silent as the moon.

A segunda canção composta para o trabalho, “O’Malley’s Bar”, tem para Cave uma conotação da paranóia dos dias de hoje. Ela fala de um cara que entra em um bar armado e sem motivo algum mata as pessoas que lá estão tranqüilamente: “essa é uma canção sobre um desses idiotas que entra em um McDonald’s da vida, armado, com ódio e desfere tiros em pessoas inocentes. Para mim esse é o pior dos covardes, aquele que não possui um pingo de moral. Mas o personagem é também uma mistura com aquele tipo de lunático que se considera um anjo vingador, com uma missão divina que é de exterminar as almas doentes. Na música, após cometer o crime e perceber que o bar está cercado de policiais, ele sai com as mãos para cima, desarmado. Ele, que teve coragem de matar pessoas inocentes, não tem a mesma coragem de fazer o mesmo consigo e prefere ser preso a morrer. Alguns acharam que a canção queria analisar um contexto psicológico desses indivíduos, o que é ridículo. É apenas uma fábula em cima do que acontece no dia-a-dia.”

Cave, aliás, não tem a menor simpatia pelo mundo de hoje, principalmente pela América: “o mundo de hoje é uma bosta paranóica cheia de ódio, mas nada se compara ao que acontece nos Estados Unidos. Eu nunca tive intenção de viver lá e nunca irei porque não consigo aceitar alguns valores que lá existem.” (Apenas uma observação: essas declarações foram feitas em 1996, antes do Bush filho. Imagine o que ele não diria hoje em dia…)

Para ele, que durante anos escreveu e explorou o mito do homem mau, a romantização com que hoje isso é encarado é preocupante: “desde que comecei a falar desse tipo de gente, muitos acharam que minhas músicas são uma espécie de manifesto e simpatia por essas pessoas. No cinema já vimos vários desses personagens serem até tratados como heróis ou simplesmente pessoas que foram deformadas pela sociedade. Eu não gosto muito dessa visão romântica, porque não acho nada de belo em uma pessoa que chega em uma escola com uma arma e começa a atirar em crianças. Em minha opinião a arte é um meio extremamente peculiar que possui sua própria moral e se há alguma beleza nela, é que se pode explorar temas como este sem fazer uma apologia de prós e contras.”

A primeira grande participação no disco é na faixa “Henry Lee”, onde faz um dueto com PJ Harvey. “PJ é uma cantora com uma forte marca pessoal e que durante anos me chamou a atenção. Eu a convidei, ela disse que sim, pois gostava do meu trabalho e acabou rolando.” Os dois acabariam tendo um romance, o que acelerou o processo de separação com Viviane.

Mas o grande tema do disco é mesmo “Where the Wild Roses Grow”, dueto com a musa teen Kylie Minogue, o que chamou a atenção sobre o disco e rendeu um belíssimo clip: “foi uma experiência quase religiosa a realização do vídeo para a canção, porque Kylie estava semi-nua e eu a tocava. Eu tinha ficado obcecado por ela desde que lançou “Better The Devil You Know’ e eu me lembro de tê-la visto na televisão e pensado como seria ela cantando algo mais doloroso, lento. Enviei algumas canções para ela, músicas que eu mesmo não conseguiria expressar. Mas não foi o momento certo e quando comecei a escrever Murder Ballads fiz a canção pensando especificamente em Kylie. A canção é uma espécie de balada sangrenta, assim como o vídeo, e serve como boa metáfora sobre meus impulsos a respeito dela. Embora os vídeos sejam coisas que não me fascinam muito, queria fazer um dessa canção, algo com um toque trágico e achei que essa ferramenta seria muito importante para o projeto. E Kylie foi extremamente profissional o tempo todo, amável e entendeu exatamente o que eu queria.”

Cartaz promocional do vídeo da canção Falando da cena em que mata a personagem de Kylie com uma pedra, Nick explica que sempre “precisou matar” as mulheres em suas canções. “Geralmente escrevo quando estou muito furioso com quem tive um relacionamento e tudo acaba, e deixo isso vazar nas minhas letras. Isso não significa que não gosto e nem as respeito as mulheres, apenas é uma das maneiras que encontro para compor. Mas ultimamente são poucas as músicas feitas assim, porque me sinto mais solto e feliz.”

Esse é um dos discos em que Nick particularmente abusa de seu instrumento favorito, o piano. “Eu sempre tive um piano em casa, mas pouco tocava. Eu queria escrever poemas, mas eles eram terríveis na época. Acabei por aprender alguns acordes e tentei musicá-los para ver se melhoravam, mas só consegui piorá-los. E, para falar a verdade, não evolui muito desde essa época. Quando era garoto em Melbourne, todos meus amigos tocavam em várias bandas e ganhavam dinheiro com isso. Eu não era bom o suficiente, então fui ser o vocalista de minha banda. Acho que a única vez que toquei piano em um grupo foi em uma banda punk chamada The Little Cuties. Eu só comecei a melhorar um pouco quando minha avó ia nos visitar, sentava e começava a dedilhar e cantar. Minha mãe me forçou a ter aulas de piano e consegui aprender como mexer os dedos nas teclas e essa é toda minha técnica com o instrumento. Nada muito animador.”

Cave e Minogue chegaram até a participar o programa de música pop inglês “Top of The Pops”, onde dublaram a canção, e ele odiou a experiência: “dublando a canção lá é que pude notar o porquê do atual estado da música de hoje. Na verdade, eu não tenho o menor interesse por grupos de rock hoje. Prefiro ouvir os jovens músicos russos que fazem música clássica ou os blues antigos ou gente como Leonard Cohen. Não há nada de substancioso ou relevante em grupos como Oasis ou Blur. É apenas música para jovens de 13 anos e que fazem gritar. Meus fãs não se enquadram muito com esse perfil.”

Cave até disse para Kylie que ela deveria mudar sua imagem e parar de fazer esses programas. “Isso apenas serve para criar caricaturas através da mídia. No final, não importa quem você seja ou cante, as pessoas já criaram um rótulo e te catalogaram. Fizeram isso comigo e com todos, mas não me importo com essas coisas, mas Kylie confessou que fica muito angustiada por ser conhecida como a garota sexy do momento. A melhor coisa deste programa aconteceu nos bastidores quando conversei com várias pessoas que não me conheciam e afirmaram que eu não era tão amargo ou violento como pensavam.”

Ele explica que a gravação do disco foi em um clima meio opressivo, quase repulsivo: “eu tenho um sério problema quando começo a me enveredar em um tema que é de produzir quilômetros de letras e melodias. E o pessoal berrava para que eu parasse, que já estava extrapolando e eu mandava eles agüentarem, porque tinha mais, muito mais saindo de mim. Não conseguia parar. Durante uma pausa entre as gravações, peguei algumas músicas levei para minha casa e mostrei para minha mãe e pedi sua opinião. Ela ouviu com grande interesse, mas após mostrar três dessas canções, eu levantei irritado e disse para ela que eu ia tomar um banho quente e pensar em algo diferente. Aquilo tudo estava me enlouquecendo. Até mesmo Blixa, que é um cara que adora violência e tem uma banda que não é exatamente calma (o grupo alemão Einsturzende Neubaten), disse que estava com medo das letras e das melodias. Imagine então o meu estado…”

Após o ouvinte passar pela imensa e tétrica “O’Malley’s Bar”, com seus quase 15 minutos, um choque. O disco termina com uma música leve e otimista de Bob Dylan “Death Is Not the End”, uma linda ironia sobre o contexto de todo o disco.

“A idéia era que, após tanto banho de sangue e violência, o ouvinte soubesse que aquelas músicas eram apenas canções e não uma defesa da violência. Essa canção de Dylan pode até parecer ingênua e sentimental demais para algo tão pesado. Mas sabe como é, se tem uma coisa que Dylan não possui é ingenuidade em suas letras.”

A canção é uma surpresa pelas várias pessoas que a cantam: além de Nick, cantam Thomas Wydler e Blixa Bargeld (dois integrantes dos Bad Seeds), Anita Lane, PJ Harvey, Kylie Minogue e Shane McGowan, uma das figuras mais estranhas do meio.

“Shane é o próprio beberrão andarilho, uma espécie de personagem saído de um romance de Charles Bukowski, meio perigoso, meio incontrolável. E o vocal de beberrão de Shane é fantástico, pois ao mesmo tempo é assustador e doce. Como ele veio me visitar um dia, aproveitei para que ele cantasse umas estrofes da música.”

O disco foi feito aos poucos e ninguém teve muito acesso aos resultados. Acho que Kylie e Shane só ouviram suas participações em “Death Is Not The End” quando o disco já estava sendo vendido. E até hoje ele sorri quando perguntam porque o disco vendeu tanto. “Eu mesmo fiz essa pergunta várias vezes até perceber que a resposta é mais óbvia do que pensamos. Basta você ligar a televisão ou ler jornais e revistas. O que mais chama a atenção das pessoas, uma doce história ou algo grotesco, sórdido? Basta ver o quanto esses tablóides sensacionalistas vendem não só aqui na Inglaterra como no resto do mundo. As pessoas amam tragédia e sangue, ainda que sua moral católica e de bons modos o obriguem a negar. O ser humano é movido pelo sangue, foi o que concluí.”

Cave não teve muita vontade em sair com o disco em turnê, embora tenha sido seu mais vendido. “Seria complicado reproduzir todas aquelas canções, já que provavelmente não poderia fazer o dueto com Kylie ao vivo muitas vezes, e por ser ele, como já disse, um disco meio fora do contexto de meus trabalhos anteriores.

Clique Aqui para as letras traduzidas do álbum Murder Ballads.

Para encerrar, deixo a letra de “Death Is Not The End” e não de “Where the Wild Roses Grow”. Um abraço e até a próxima!

When you’re sad and when you’re lonely
And you haven’t got a friend
Just remember that death is not the end

And all that you held sacred
Falls down and does not mend
Just remember that death is not the end
Not the end, not the end
Just remember that death is not the end

When you’re standing on the crossroads
That you cannot comprehend
Just remember that death is not the end

And all your dreams have vanished
And you don’t know what’s up the bend
Just remember that death is not the end
Not the end, not the end
Just remember that death is not the end

When the storm clouds gather round you
And heavy rains descend
Just remember that death is not the end

And there’s no-one there to comfort you
With a helping hand to lend
Just remember that death is not the end
Not the end, not the end
Just remember that death is not the end

For the tree of life is growing
Where the spirit never dies
And the bright light of salvation
Up in dark and empty skies
When the cities are on fire
With the burning flesh of men
Just remember that death is not the end

When you search in vain to find
Some law-abiding citizen
Just remember that death is not the end

Not the end, not the end
Just remember that death is not the end
Not the end, not the end
Just remember that death is not the end

Discografia

From Her to Eternity (1984)
The Firstborn Is Dead (1985)
Kicking Against the Pricks (1986)
Your Funeral…My Trial (1986)
Tender Prey (1988)
Ghosts…of the Civil Dead (1989)
The Good Son (1990)
Henry’s Dream (1992)
Live Seeds (1993)
Let Love In (1994)
Murder Ballads (1996)
The Boatman’s Call (1997)
The Best of Nick Cave & the Bad Seeds (1998)
No More Shall We Part (2001)
Nocturama (2003)
Abbatoir Blues / Lyre Of Orpheus (2004)