221 - Miles Davis - Kind of Blue

Kind of Blue. Um disco, um estilo, uma lenda, um mito, uma escola. Todos esses adjetivos e outros mais foram usados para descrever o grande momento da carreira de Miles Davis e - para muitos - do próprio jazz. Com uma banda fabulosa - John Coltrane, Bill Evans, Julian "Cannonball" Adderley, Paul Chambers, Jimmy Cobb e o pianista Wynton Kelly em apenas uma faixa - Miles criou composições fabulosas, começando com a clássica "So What" que abre o disco. Depois desse trabalho, jamais a música seria a mesma...


Em 1994 resolvi comprar meu primeiro disco de jazz e por ter lido que esse era o melhor disco de Miles Davis, arrisquei.

O disco nem vinha com a clássica capa original e sim com essa que está ao lado. Não sei qual a razão de mudarem algo tão clássico, mas desde esse dia, Kind of Blue fez parte da minha vida de forma irremediável.

Considerado o maior disco de jazz já feito e um dos mais vendidos até hoje, Miles conseguiu com ele coroar sua volta nos anos 50 e se fixar com o grande nome do jazz mundial.

Mas, seu nascimento teve alguns desdobramentos interessantes...

Para começar a falar desse disco é preciso retroceder mais de um ano. Miles possuía então um sexteto fabuloso com Red Garland (piano), Philly Joe Jones (bateria), Paul Chambers (baixo), John Coltrane (sax tenor) e Julian "Cannonball" Adderley (sax alto).

Miles também tinha o saudável hábito de pagar bem aos seus músicos, mas apenas quando estavam tocando. Nos meses em que ficavam parados, cada um se virava como podia. E Miles não estava dando muitos shows naquele ano, o que obrigou, principalmente, a Joe Jones tocar com outras pessoas. Isso começou a criar um sério obstáculo, porque quando Miles precisava dele, Jones já tinha compromissos agendados com outros. Por isso, resolveu chamar James Cobb, que tocava no quinteto de "Cannonball" Adderley. Cobb ficou extasiado com isso, não apenas pela ótima remuneração, mas pelos músicos envolvidos.

Bill EvansOutro problema sério de Red Garland e Joe Jones era com as drogas. Isso acabou arranjando muitos transtornos a Miles, que resolveu contratar um jovem pianista branco recomendado por George Russell: Bill Evans.

Jovem ainda, Bill tinha um estilo totalmente diferente de Red Garland. Adepto da escola francesa impressionista, tinha um estilo mais "europeu" e que agradou em cheio Miles.

Porém, Bill não se sentia à vontade no sexteto. Primeiro por ser o único branco e, segundo, por se sentir intimidado com tantos nomes importantes: "o grupo só tinha super-homens".

Além disso, Bill não entendia o humor de Miles, muito seco e não gostava de suas brincadeiras. Certa vez, ao dar uma opinião em uma discussão interna viu o chefe dizer que eles não precisavam da opinião de um branco. "Era uma brincadeira de Miles, mas Bill se sentiu completamente desconcertado", relembra James Cobb.

Bill começou a mudar a maneira de Miles compor, agora mais interessado em climas mais suaves. O problema é que Bill ficou apenas poucos meses, saindo em novembro, sendo substituído temporariamente por Red Garland novamente.

Julian "Cannonball" AdderleyMiles começava a encontrar outros problemas: Coltrane e Adderley tinham seus próprios grupos e queriam deixar o sexteto. Precavido, Miles conseguiu um contrato para Coltrane e seu grupo com a Atlantic Records e conseguiu que seu empresário arrumasse shows para os dois, nos intervalos em que não estivessem tocando ou gravando.

Em fevereiro de 1959, Miles consegue um novo pianista, Wynton Kelly. No dia 2 de março, Miles convoca seus músicos para uma nova sessão e Wynton fica chocado e surpreso ao encontrar Bill Evans lá.

Miles o havia chamado por acreditar que os dois poderiam tocar partes diferentes no disco, mas pagava os dois integralmente, mesmo que não atuassem em todos os números.

da esquerda para a direita: Coltrane, Adderley, Miles e Bill"Miles costumava fazer isso, chamar dois músicos para explorar algumas idéias que ele tinha. Ele escreveu algumas coisas de blues, mais adequadas para Wynton e tinha outras coisas para Bill tocar. Ele não via problema nisso e todos aceitavam", explicou Cobb.

Na primeira gravação, foram feitos três músicas e Wynton participou apenas de "Freddie Freeloader".

O mais incrível é a maneira de como essas gravações foram feitas. Bill Evans explica: "Miles chegou com novas músicas que ele havia escrito horas antes e nos apresentou apenas um esqueleto delas, indicando o que queria em cada uma. O grupo começou a tocar espontaneamente e gravamos apenas um take só, ou seja, foram gravadas ao vivo." E esse improviso é uma das grandes belezas de Kind of Blue.

Nessa sessão foram gravadas as três canções que fariam parte do lado A do disco: "So What", "Freddie Freeloader" (a única com Kelly) e "Blues In Green".

"So What" determinou como o disco seria. Bill Evans toca uma introdução bem lenta, impressionista, e a melodia vai para o baixo, com o restante do sexteto tocando partes isoladas. O baixo parecia rezar enquantos os metais pareciam dizer "amém". Em número longo - mais de nove minutos - e valorizando o silêncio, Miles cria um clássico da música universal.

A seguir, vem "Freddie Freeloader", um blues e o primeiro dia é encerrado com "Blues In Green", a única em que Miles trabalhou antes, tendo ajuda do amigo e arranjador Gil Evans, que não levou os créditos devidos.

A segunda sessão aconteceu em 22 de abril, com "All Blues" e "Flamenco Sketches".

capa do disco Kind of BlueQuando Kind of Blue saiu, foi largamente elogiado, embora alguns poucos críticos não o considerassem um disco de jazz, devido às estranhas melodias e o trabalho de Evans.

O disco solidificou ainda mais a reputação do músico, que tinha lançado em 1958 Milestones, Porgy and Bess e tinha vendas excelentes.

Porém, alguns contratempos começavam a acontecer. Coltrane ficou doente e ele necessitou cancelar alguns shows. Além disso, Coltrane e Adderley estavam ficando grandes demais para o sexteto e desenvolvendo uma sonoridade própria. Miles Davis sabia que seu sexteto teria vida curta.

Outro problema que começou a atormentá-lo era o racismo. Ele sempre havia tido problemas com policiais brancos, mas em Nova York teve o maior exemplo.

Durante um intervalo em um show em Birdland, Miles acompanhou uma garota branca até um táxi e ficou tomando ar na calçada quando foi abordado por um policial. O oficial perguntou o que ele estava fazendo lá e mandou ir embora. Miles argumentou que ele tocava e estava trabalhando na casa de shows. O policial, rispidamente, disse que iria prendê-lo se não o obedecesse. Miles disse que queria ser preso então e de repente, um outro policial, acertou covardemente e por trás, sua cabeça com um cassetete. Miles acabou sendo preso, passou a noite na cadeia, teve que pagar US$ 1.000 de fianças e ainda teve que levar cinco pontos. Revoltado, disse depois: "me bateram como se eu fosse um tom tom".

Em setembro, Miles teria o desgosto de ver Julian Adderley se mandar, mesmo oferecendo a exorbitante quantia - para a época - de US$ 20 mil anuais para o saxofonista. Logo, seria a vez de Coltrane sair e a vida de Miles Davis teria uma tremenda reviravolta.

Uma curiosidade: quando saiu em disco e depois na sua primeira edição em CD com aquela capa diferente, o disco apresentava problemas na rotação. Isso aconteceu devido a um dos dois gravadores usados estar com a rotação errada. Isso foi corrigido na edição remasterizada, anos depois, e que também contém uma versão extra de "Flamenco Sketches".

Um abraço e até a próxima coluna.

Discografia

Discos de estúdio

Birth of the Cool (1949)
And Horns (1950)
Blue Period (1951)
Conception Original Jazz (1951)
1951 The New Sounds of Miles Davis (1951)
Diggin' (1951)
Dig (1951)
Live at the Barrel, Vol. 2 (1952)
Miles Davis Plays the Compositions of Al Cohn (1952)
Miles Davis Quartet (1953)
Blue Haze (1953)
Miles Davis Quintet (1954)
Bags' Groove (1954)
Miles Davis Quintet (1954)
Miles Davis and the Modern Jazz Giants (1954)
Walkin' (1954)
Green Haze (1955)
The Musings of Miles (1955)
Odyssey (1955)
Milt and Miles (1955)
Miles Davis and Milt Jackson Quintet/Sextet (1955)
Circle in the 'Round (1955)
Cookin' (1955)
The New Miles Davis Quintet (1955)
Miles (1955)
Miles Davis & Horns 51-53 (1955)
Workin' (1956)
Steamin' (1956)
Relaxin' (1956)
Cookin' with the Miles Davis Quintet (1956)
'Round About Midnight (1956)
Miles Ahead (1957)
L'ascenseur pour L'Échafaud (1957)
Milestones (1958)
Porgy and Bess (1958)
Kind of Blue (1959)
Sketches of Spain (1960)
Directions (1960)
Someday My Prince Will Come (1961)
Quiet Nights (1962)
Sorcerer (1962)
Seven Steps to Heaven (1963)
E.S.P. (1965)
Miles Smiles (1966)
Nefertiti (1967)
Miles in the Sky (1968)
Filles de Kilimanjaro (1968)
In a Silent Way (1969)
Bitches Brew (1970)
Big Fun (1969)
A Tribute to Jack Johnson (1971)
On the Corner (1972)
Get Up With It (1972)
We Want Miles (1981)
The Man with the Horn (1981)
Star People (1982)
Decoy (1983)
Aura (1985)
You're Under Arrest (1986)
Tutu (1986)
Music from Siesta (1986)
Amandla (1989)
Dingo (1990)
Doo-Bop (1991)

Discos ao vivo

Miles & Monk at Newport (1955)
Miles Davis at Newport 1958 (1958)
Olympia 11 Octobre 1960, Pt. 1 (1960)
Olympia 11 Octobre 1960, Pt. 2 (1960)
Friday at the Blackhawk (1960)
Friday at the Blackhawk, Vol. 2 (1960)
Friday and Saturday Nights in Person (1961)
In Person: Friday Night at the Blackhawk (1961)
Miles Davis in Person, Vol. 1 (1961)
Miles Davis in Person, Vol. 2 (1961)
In Person: Saturday Night at the Blackhawk (1961)
At Carnegie Hall (1961)
Miles in St Louis (1961)
In Person at the Blackhawk (1961)
Miles at Antibes (1962)
Miles in Antibes (1963)
Four & More (1964)
My Funny Valentine (1964)
Miles in Tokyo (1964)
Miles in Berlin (1964)
Miles Davis in Europe (1964)
Live at the Plugged Nickel (1965)
In Berlin [live] Columbia (1966)
Live-Evil (1970)
Miles Davis at Fillmore: Live at the... (1970)
Black Beauty: Miles Davis at Fillmore West (1970)
Miles Davis at the Lincoln Center (1972)
Dark Magus (1974)
Pangaea (1975)
Agharta (1975)
Live A'Round the World (1988)
Miles in Montreux (1989)
Miles & Quincy (1991)
Green Dolphin Street (1992)
Newport Jazz Festival (1993)
On Green Dolphin Street (1999)
Miles Davis Live (2000)
Olympia 11 Juillet 1973 (2001)
At Newport 1958 (2001)

 

 


 

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