Kind of Blue.
Um disco, um estilo, uma lenda, um mito, uma escola. Todos esses
adjetivos e outros mais foram usados para descrever o grande momento
da carreira de Miles Davis e - para muitos - do próprio
jazz. Com uma banda fabulosa - John Coltrane, Bill Evans, Julian
"Cannonball" Adderley, Paul Chambers, Jimmy Cobb e o
pianista Wynton Kelly em apenas uma faixa - Miles criou composições
fabulosas, começando com a clássica "So What"
que abre o disco. Depois desse trabalho, jamais a música
seria a mesma...
Em
1994 resolvi comprar meu primeiro disco de jazz e por ter lido
que esse era o melhor disco de Miles Davis, arrisquei.
O disco nem vinha com a
clássica capa original e sim com essa que está ao
lado. Não sei qual a razão de mudarem algo tão
clássico, mas desde esse dia, Kind of Blue
fez parte da minha vida de forma irremediável.
Considerado o maior disco
de jazz já feito e um dos mais vendidos até hoje,
Miles conseguiu com ele coroar sua volta nos anos 50 e se fixar
com o grande nome do jazz mundial.
Mas, seu nascimento teve
alguns desdobramentos interessantes...
Para
começar a falar desse disco é preciso retroceder
mais de um ano. Miles possuía então um sexteto fabuloso
com Red Garland (piano), Philly Joe Jones (bateria), Paul Chambers
(baixo), John Coltrane (sax tenor) e Julian "Cannonball"
Adderley (sax alto).
Miles também tinha
o saudável hábito de pagar bem aos seus músicos,
mas apenas quando estavam tocando. Nos meses em que ficavam parados,
cada um se virava como podia. E Miles não estava dando
muitos shows naquele ano, o que obrigou, principalmente, a Joe
Jones tocar com outras pessoas. Isso começou a criar um
sério obstáculo, porque quando Miles precisava dele,
Jones já tinha compromissos agendados com outros. Por isso,
resolveu chamar James Cobb, que tocava no quinteto de "Cannonball"
Adderley. Cobb ficou extasiado com isso, não apenas pela
ótima remuneração, mas pelos músicos
envolvidos.
Outro
problema sério de Red Garland e Joe Jones era com as drogas.
Isso acabou arranjando muitos transtornos a Miles, que resolveu
contratar um jovem pianista branco recomendado por George Russell:
Bill Evans.
Jovem ainda, Bill tinha
um estilo totalmente diferente de Red Garland. Adepto da escola
francesa impressionista, tinha um estilo mais "europeu"
e que agradou em cheio Miles.
Porém, Bill não
se sentia à vontade no sexteto. Primeiro por ser o único
branco e, segundo, por se sentir intimidado com tantos nomes importantes:
"o grupo só tinha super-homens".
Além disso, Bill
não entendia o humor de Miles, muito seco e não
gostava de suas brincadeiras. Certa vez, ao dar uma opinião
em uma discussão interna viu o chefe dizer que eles não
precisavam da opinião de um branco. "Era uma brincadeira
de Miles, mas Bill se sentiu completamente desconcertado",
relembra James Cobb.
Bill começou a mudar
a maneira de Miles compor, agora mais interessado em climas mais
suaves. O problema é que Bill ficou apenas poucos meses,
saindo em novembro, sendo substituído temporariamente por
Red Garland novamente.
Miles
começava a encontrar outros problemas: Coltrane e Adderley
tinham seus próprios grupos e queriam deixar o sexteto.
Precavido, Miles conseguiu um contrato para Coltrane e seu grupo
com a Atlantic Records e conseguiu que seu empresário arrumasse
shows para os dois, nos intervalos em que não estivessem
tocando ou gravando.
Em fevereiro de 1959, Miles
consegue um novo pianista, Wynton Kelly. No dia 2 de março,
Miles convoca seus músicos para uma nova sessão
e Wynton fica chocado e surpreso ao encontrar Bill Evans lá.
Miles o havia chamado por
acreditar que os dois poderiam tocar partes diferentes no disco,
mas pagava os dois integralmente, mesmo que não atuassem
em todos os números.
"Miles
costumava fazer isso, chamar dois músicos para explorar
algumas idéias que ele tinha. Ele escreveu algumas coisas
de blues, mais adequadas para Wynton e tinha outras coisas para
Bill tocar. Ele não via problema nisso e todos aceitavam",
explicou Cobb.
Na primeira gravação,
foram feitos três músicas e Wynton participou apenas
de "Freddie Freeloader".
O
mais incrível é a maneira de como essas gravações
foram feitas. Bill Evans explica: "Miles chegou com novas
músicas que ele havia escrito horas antes e nos apresentou
apenas um esqueleto delas, indicando o que queria em cada uma.
O grupo começou a tocar espontaneamente e gravamos apenas
um take só, ou seja, foram gravadas ao vivo."
E esse improviso é uma das grandes belezas de Kind
of Blue.
Nessa sessão foram
gravadas as três canções que fariam parte
do lado A do disco: "So What", "Freddie Freeloader"
(a única com Kelly) e "Blues In Green".
"So What" determinou
como o disco seria. Bill Evans toca uma introdução
bem lenta, impressionista, e a melodia vai para o baixo, com o
restante do sexteto tocando partes isoladas. O baixo parecia rezar
enquantos os metais pareciam dizer "amém". Em
número longo - mais de nove minutos - e valorizando o silêncio,
Miles cria um clássico da música universal.
A seguir, vem "Freddie
Freeloader", um blues e o primeiro dia é encerrado
com "Blues In Green", a única em que Miles trabalhou
antes, tendo ajuda do amigo e arranjador Gil Evans, que não
levou os créditos devidos.
A segunda sessão
aconteceu em 22 de abril, com "All Blues" e "Flamenco
Sketches".
Quando
Kind of Blue saiu, foi largamente elogiado,
embora alguns poucos críticos não o considerassem
um disco de jazz, devido às estranhas melodias e o trabalho
de Evans.
O disco solidificou ainda
mais a reputação do músico, que tinha lançado
em 1958 Milestones, Porgy and Bess e
tinha vendas excelentes.
Porém, alguns contratempos
começavam a acontecer. Coltrane ficou doente e ele necessitou
cancelar alguns shows. Além disso, Coltrane e Adderley
estavam ficando grandes demais para o sexteto e desenvolvendo
uma sonoridade própria. Miles Davis sabia que seu sexteto
teria vida curta.
Outro
problema que começou a atormentá-lo era o racismo.
Ele sempre havia tido problemas com policiais brancos, mas em
Nova York teve o maior exemplo.
Durante um intervalo em
um show em Birdland, Miles acompanhou uma garota branca até
um táxi e ficou tomando ar na calçada quando foi
abordado por um policial. O oficial perguntou o que ele estava
fazendo lá e mandou ir embora. Miles argumentou que ele
tocava e estava trabalhando na casa de shows. O policial, rispidamente,
disse que iria prendê-lo se não o obedecesse. Miles
disse que queria ser preso então e de repente, um outro
policial, acertou covardemente e por trás, sua cabeça
com um cassetete. Miles acabou sendo preso, passou a noite na
cadeia, teve que pagar US$ 1.000 de fianças e ainda teve
que levar cinco pontos. Revoltado, disse depois: "me bateram
como se eu fosse um tom tom".
Em setembro, Miles teria
o desgosto de ver Julian Adderley se mandar, mesmo oferecendo
a exorbitante quantia - para a época - de US$ 20 mil anuais
para o saxofonista. Logo, seria a vez de Coltrane sair e a vida
de Miles Davis teria uma tremenda reviravolta.
Uma curiosidade: quando
saiu em disco e depois na sua primeira edição em
CD com aquela capa diferente, o disco apresentava problemas na
rotação. Isso aconteceu devido a um dos dois gravadores
usados estar com a rotação errada. Isso foi corrigido
na edição remasterizada, anos depois, e que também
contém uma versão extra de "Flamenco Sketches".
Um abraço e até
a próxima coluna.
Discografia
Discos de estúdio
Birth of the Cool (1949)
And Horns (1950)
Blue Period (1951)
Conception Original Jazz (1951)
1951 The New Sounds of Miles Davis (1951)
Diggin' (1951)
Dig (1951)
Live at the Barrel, Vol. 2 (1952)
Miles Davis Plays the Compositions of Al Cohn (1952)
Miles Davis Quartet (1953)
Blue Haze (1953)
Miles Davis Quintet (1954)
Bags' Groove (1954)
Miles Davis Quintet (1954)
Miles Davis and the Modern Jazz Giants (1954)
Walkin' (1954)
Green Haze (1955)
The Musings of Miles (1955)
Odyssey (1955)
Milt and Miles (1955)
Miles Davis and Milt Jackson Quintet/Sextet (1955)
Circle in the 'Round (1955)
Cookin' (1955)
The New Miles Davis Quintet (1955)
Miles (1955)
Miles Davis & Horns 51-53 (1955)
Workin' (1956)
Steamin' (1956)
Relaxin' (1956)
Cookin' with the Miles Davis Quintet (1956)
'Round About Midnight (1956)
Miles Ahead (1957)
L'ascenseur pour L'Échafaud (1957)
Milestones (1958)
Porgy and Bess (1958)
Kind of Blue (1959)
Sketches of Spain (1960)
Directions (1960)
Someday My Prince Will Come (1961)
Quiet Nights (1962)
Sorcerer (1962)
Seven Steps to Heaven (1963)
E.S.P. (1965)
Miles Smiles (1966)
Nefertiti (1967)
Miles in the Sky (1968)
Filles de Kilimanjaro (1968)
In a Silent Way (1969)
Bitches Brew (1970)
Big Fun (1969)
A Tribute to Jack Johnson (1971)
On the Corner (1972)
Get Up With It (1972)
We Want Miles (1981)
The Man with the Horn (1981)
Star People (1982)
Decoy (1983)
Aura (1985)
You're Under Arrest (1986)
Tutu (1986)
Music from Siesta (1986)
Amandla (1989)
Dingo (1990)
Doo-Bop (1991)
Discos ao vivo
Miles & Monk at Newport (1955)
Miles Davis at Newport 1958 (1958)
Olympia 11 Octobre 1960, Pt. 1 (1960)
Olympia 11 Octobre 1960, Pt. 2 (1960)
Friday at the Blackhawk (1960)
Friday at the Blackhawk, Vol. 2 (1960)
Friday and Saturday Nights in Person (1961)
In Person: Friday Night at the Blackhawk (1961)
Miles Davis in Person, Vol. 1 (1961)
Miles Davis in Person, Vol. 2 (1961)
In Person: Saturday Night at the Blackhawk (1961)
At Carnegie Hall (1961)
Miles in St Louis (1961)
In Person at the Blackhawk (1961)
Miles at Antibes (1962)
Miles in Antibes (1963)
Four & More (1964)
My Funny Valentine (1964)
Miles in Tokyo (1964)
Miles in Berlin (1964)
Miles Davis in Europe (1964)
Live at the Plugged Nickel (1965)
In Berlin [live] Columbia (1966)
Live-Evil (1970)
Miles Davis at Fillmore: Live at the... (1970)
Black Beauty: Miles Davis at Fillmore West (1970)
Miles Davis at the Lincoln Center (1972)
Dark Magus (1974)
Pangaea (1975)
Agharta (1975)
Live A'Round the World (1988)
Miles in Montreux (1989)
Miles & Quincy (1991)
Green Dolphin Street (1992)
Newport Jazz Festival (1993)
On Green Dolphin Street (1999)
Miles Davis Live (2000)
Olympia 11 Juillet 1973 (2001)
At Newport 1958 (2001)
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