O dia 8 de dezembro
de 1980 é uma das datas mais importantes do Século
XX. Neste dia, um animal cujo nome não merece ser escrito,
assassinou um dos mais importantes homens da humanidade, uma das
pessoas mais corajosas já nascidas e que deu ao mundo toda
sua paixão e expôs toda sua dor em versos corajosos
e despojados: John Winston Lennon. Sim, um dos Fab Four, co-líder
dos Beatles, banda tão grande que virou sinônimo
de perfeição, sucesso e o que mais você possa
imaginar. Em sua maravilhosa carreira-solo, Lennon mostrou que
poderia ser tão bom como era em sua antiga banda e seu
primeiro disco-solo é uma prova cabal disso.
Apesar
de ter lançado alguns álbuns experimentais antes,
ao lado da esposa Yoko Ono, John Lennon/Plastic Ono Band
é, de fato, a estréia solo de John. E uma das mais
fortes já ouvidas.
A vida dentro dos Beatles
havia se tornado um inferno para o tímido John Lennon.
A idolatria dos fãs,
a constante vigília que faziam na porta de sua casa, as
intermináveis brigas com os demais integrantes da banda,
a desconfiança - e até o preconceito - que tinham
em relação à Yoko Ono, tudo fazia com que
John se sentisse a cada dia mais tenso, insatisfeito e louco para
deixar aquela vida.
Sua
relação com a artista plástica Yoko Ono,
dona de seu legado, sempre foi difícil de ser engolida
por companheiros, amigos e fãs.
Mas - verdade seja dita
- foi nela que John encontrou sua cara metade e quem o ajudou
a expressar toda sua dor e revolta e a paixão.
Lennon não suportava
mais a fama. Em uma famosa entrevista para a revista Rolling
Stone, em 1970, feita por Jann Wenner, desceu a boca na vida
insana que levava com os Beatles: "oh, as humilhações
que eu sofria por ser um beatle. Às vezes, éramos
acordados no meio da noite em nossa primeira excursão americana
porque algum filho gorducho ou uma filha feia de algum prefeito
queria nos conhecer. Eu ficava louco, mas Brian (Epstein, antigo
empresário) nos obrigava a recebê-los."
John contava em detalhes
toda a vida sórdida do grupo e dizia que a banda era
"uma Roma portátil, cheia de sexo, drogas e dinheiro.
Tudo o que desejássemos, tínhamos. Se não
conseguíssemos groupies, transávamos com prostitutas."
Em um dos momentos mais
tensos, John relata que não permitiria mais esse caos em
sua vida: "Eles nunca mais me pegarão!"
Em
1968, o casal resolve lançar um disco extremamente radical,
de avant-garde e com uma das capas mais bizarras (e feias)
da história: Unfinished Music No.1: Two Virgins
trazia simplesmente John e Yoko em nu frontal.
Gravado em sua mansão,
em Kenwood, o disco trazia uma sucessão de loops,
ruídos, distorções, com John tocando piano,
bateria e conversas com Yoko.
O título fazia uma
referência a "dois inocentes perdidos num mundo louco"
e trazia as seguintes faixas:
Lado 1
1. "Two Virgins Side One": –
14:14
"Two Virgins No. 1"
"Together" (De Silva Brown-Henderson)
"Two Virgins No. 2"
"Two Virgins No. 3"
"Two Virgins No. 4"
"Two Virgins No. 5"
Lado 2
1. "Two Virgins Side Two": –
15:13
"Two Virgins No. 6"
"Hushabye Hushabye" (composer unknown)
"Two Virgins No. 7"
"Two Virgins No. 8"
"Two Virgins No. 9"
"Two Virgins No. 10"
O
disco chocou fãs e críticos ficando apenas na 124ª
posição, nos EUA.
John e Yoko não
se importaram muito e, no ano seguinte, editam Unfinished
Music No.2: Life with the Lions, que teve um resultado
pior ainda, ficando na 174ª posição.
Unfinished Music
No.2 trazia uma faixa assustadora:
"Baby's Heartbeat".
Nela, se ouvia os batimentos
cardíacos de John Ono Lennon II, filho do casal, que Yoko
perdeu em um aborto e que seria a primeira criança do casal,
antes de Sean.
O LP trazia as seguintes
faixas:
Lado 1
1. "Cambridge 1969" – 26:29
Lado 2
1. "No Bed For Beatle John" –
4:41
2. "Baby's Heartbeat" – 5:10
3. "Two Minutes Silence" – 2:00
4. "Radio Play" – 12:35
Ainda
em 1969, é lançado Wedding Album,
o último da trilogia dos discos experimentais do casal
e que ocupou apenas a 178ª posição na parada.
Wedding Album
é um disco igualmente difícil.
Com apenas duas longas faixas, trazia Yoko e John chamando seus
nomes enquanto se ouve a batidas dos corações do
casal.
"Amsterdam" é
uma coletânea de entrevistas e sons durante a famosa entrevista
que o casal deu em uma cama de casal, após selarem o casamento
no dia 20 de março de 1969.
O disco trazia as seguintes
faixas:
Lado 1
1. "John & Yoko" –
22:41
Lado 2
1. "Amsterdam" – 24:54
Mas,
antes de Wedding Album, é preciso retroceder
mais detalhadamente no ano de 1969.
Nesse ano, Lennon lançou
um dos compactos mais importantes dos anos 60: Give Peace
a Chance, editado em julho daquele ano.
Embora seja escrita por
John, é creditada, ainda, a Lennon & McCartney.
Lennon havia dito a frase
"All we are saying is give peace a chance",
espontaneamente, durante as duas semanas em que John e Yoko ficaram
em uma cama, dando entrevistas e protestando contra a Guerra do
Vietnã, durante a lua de mel do casal, no Amsterdam Hilton
Hotel, evento conhecido como Bed-In for
Peace.
O
casal convidou a imprensa do mundo para conversar com eles, das
9 da manhã até às 9 da noite.
O segundo Bed-In
for Peace aconteceria em Nova York, mas John
foi proibido de entrar no país, por ser a favor do uso
da maconha. Assim, o segundo evento aconteceu em Montreal, Canadá,
perto da fronteira com os Estados Unidos.
Após cantá-la
várias vezes, John resolveu gravá-la no dia 1º
de junho, no quarto 1742, que ocupava no The Queen Elizabeth Hotel,
usando quatro microfones e um gravador Ampex, de quatro canais,
alugado da RCA. O single foi creditado à Plastic Ono Band.
As
gravações atraíram dezenas de jornalistas
e celebridades da contra-cultura, casos de Timothy Leary e Allen
Ginsberg.
Além de cantar,
Lennon tocou guitarra acústica, ao lado de Tommy Smothers,
dos Smothers Brothers.
"Give Peace a Chance"
rapidamente se tornaria símbolo da luta contra a guerra
- e dos movimentos pacifistas - e cerca de 500 mil pessoas a cantaram
em frente à Casa Branca no Vietnam Moratorium Day,
no dia 15 de outubro.
1969 seguia um ano atribulado
para Lennon. Em setembro comunica
aos demais membros dos Beatles, que estava deixando a banda, mas
concorda em adiar o anúncio, já que estava sendo
editado um novo LP do grupo e isso poderia atrapalhar as vendagens.
Por isso, dá para
imaginar a raiva que sentiu ao ver Paul McCartney, oito meses
depois, anunciar o fim dos Beatles, levando todo o crédito:
"eu deveria ter feito o anúncio na época,
mas aceitei o pedido de todos. E aí vem Paul e diz que
ele está terminando os Beatles. Ah, como fui tolo!"
No
mesmo ano, lança o segundo compacto-solo, Cold
Turkey, editado em 24 de outubro de 1969.
O título é
uma gíria dada ao estado de abstinência de quem é
viciado em heroína e tenta largar a droga de uma maneira
definitiva.
As dores físicas
e emocionais são descritas por John na letra que termina
a canção berrando, descrevendo um pouco o sofrimento
que sentiu para ficar desintoxicado da substância. Veja
trechos da letra...
"A temperatura
está subindo / A febre é alta / Não posso
ver o futuro / Não posso ver o céu / Meus pés
estão tão / pesados / Minha cabeça também
/ Eu queria ser um bebê / Eu queria estar morto / Peru frio
me fez correr / Peru frio me fez correr / Meu corpo está
doendo / Osso de ganso-espinha / Não posso ver ninguém
/ Me deixe só ... / Trinta-seis horas / Rolando na dor
/ Rezando para que alguém / Me libertasse novamente / Oh
eu serei um bom menino / Por favor me faça bem / Eu lhe
prometo qualquer coisa / Me tire desse inferno! / Peru frio me
fez correr / Oh, oh, oh, oh"
Em
12 de dezembro, John edita o primeiro disco ao vivo de sua carreira,
Live Peace in Toronto 1969, um show creditado
à The Plastic Ono Band.
A banda tinha apenas dois
membros fixos, John e Yoko, sendo os demais convidados. Nesse
show, tiveram a companhia de Eric Clapton, Klaus Voormann (baixo)
e Alan White (bateria). White seria dentro de poucos meses o baterista
do Yes.
O disco incluía
alguns sucessos dos tempos dos Beatles e os mais recentes sucessos
solos de Lennon:
Lado 1
1. "Blue Suede Shoes" (Carl Perkins)
– 3:50
2. "Money (That's What I Want)" (Janie Bradford/Berry
Gordy) – 3:25
3. "Dizzy Miss Lizzy" (Larry Williams) – 3:24
4. "Yer Blues" (Lennon-McCartney) – 4:12
5. "Cold Turkey" (John Lennon) – 3:34
6. "Give Peace a Chance" (Lennon-McCartney) –
3:41
Lado 2
1. "Don't Worry Kyoko (Mummy's Only
Looking for Her Hand in the Snow)" (Yoko Ono) – 4:48
2. "John, John (Let's Hope for Peace)" (Yoko Ono) –
12:38
Nos
tempos dos Beatles, John era um mestre em criar fases de duplo
sentido e simbolismos; agora, porém, Lennon usaria frases
curtas, secas e tentar entender e mostrar os demônios pessoais.
Fora do grupo, adotou um
visual com cabelo curto e repicado e começava a escrever
novas composições.
O primeiro compacto da
nova fase vem com Instant Karma!, em que Lennon
ridiculariza os superstars, condição, aliás,
em que era um dos maiores representantes. É também
uma das canções mais rápidas já gravadas
na história. John a escreveu no mesmo dia em que a gravou
e dez dias depois era lançada, em 6 de fevereiro de 1970.
Participaram das gravações:
Lennon (voz, violão e piano elétrico); Billy Preston
(piano acústico); Klaus Voorman (baixo); Alan White (bateria);
George Harrison (guitarra elétrica e vocal) Yoko Ono (vocal
de apoio), Mal Evans (palmas) e mais uma dúzia de frequentadores
do Hatchetts Pub, nos vocais de fundo.
O compacto era creditado
a John Ono Lennon e trazia Phil Spector na produção,
ao lado do casal.
Para superar a dependência
das drogas, Lennon aderiu à terapia e se tornou adepto
da teoria de Artur Janov, o Grito Primal. John e Yoko ficaram
sob os cuidados de Janov, durante quatro meses, em Los Angeles.
Janov obrigou o cantor a se confrontar com seus medos de infância
e fez com que ele deixasse isso aflorar para que aprendesse a
lidar com todas essas emoções.
Após o tratamento,
volta à Londres e convida Spector para produzir seu novo
LP, o primeiro disco de sua carreira, pós-Beatles, descontando
os álbuns experimentais.
John
Lennon/Plastic Ono Band foi gravado num clima de intimista,
com poucos convidados e com urgência.
O disco foi gravado em
apenas duas semanas, um tempo bem curto, se pensarmos que os Beatles
passavam meses gestando seus álbuns.
John cuidaria das guitarras,
violões e piano, deixando o baixo para Klaus Voormann e
a bateria para Ringo Starr.
Além deles, Yoko
é creditado "tocando" wind. Billy Preston toca
piano em "God" e Phil Spector, em 'Love".
Voormann era antigo conhecido
de Lennon, desde os tempos em que os Beatles tocaram em Hamburgo,
antes do estouro mundial. Ele também
foi o responsável pelo desenho da capa de Revolver.
O LP traz as seguintes
faixas, todas assinadas por John Lennon:
Lado 1
01. Mother
02. Hold On
03. I Found Out
04. Working Class Hero
05. Isolation
Lado 2
01. Remember
02. Love
03. Well Well Well
04. Look at Me
05. God
06. My Mummy's Dead
Na
capa, John se deita no colo de Yoko e ambos contemplam a natureza.
O disco abre com "Mother",
em que John expõe toda a saudade e a amargura por pouco
ter conhecido seus pais: "mãe, eu tive você,
mas você nunca me teve / mãe, eu sempre te quis,
mas você nunca me quis / e agora eu tenho que dizer adeus
adeus / pai, você me deixou/ mas eu nunca te deixei/ pai,
eu precisei de você, mas você nunca precisou de mim
... e agora eu tenho que dizer adeus adeus."
"Em Hold On",
John faz uma letra na primeira pessoa, pedindo que ele "se
segure". O pedido é feito também para Yoko
e para o mundo.
Após "I Found
Out", Lennon canta uma de suas mais engajadas poesias, "Working
Class Hero", o herói da classe trabalhadora.
Vale deixar a letra inteira
aqui, por maior que seja...
Assim que você
nasce eles te fazem se sentir pequeno
Ao invés te darem todo tempo te dão nenhum
Até que a dor é tão grande que você
não sente mais nada
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Eles te magoam em casa
E te batem na escola
Eles te odeiam se é esperto
E desprezam um tolo
Até que você fique tão fudido e maluco
e que não consiga seguir as regras deles
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Após te torturarem
E te assustarem por vinte bizarros anos
Então esperam que você escolha uma carreira
Até que você não consegue mais funcionar
pois está cheio de medo
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Te mantém drogado com religião
e sexo e TV
E você pensa que é tão astuto, sem classe
e livre
Mas você continua apenas um pedinte fudido
Pelo que eu vejo
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Há lugar no topo, eles continuam
a te dizer
Porém, primeiro você precisa aprender a sorrir enquanto
mata
Se você quer ser como o povo do alto da montanha
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Um herói da classe trabalhadora é algo para ser
Se quiser ser um herói basta
me seguir
Se quiser ser um herói basta me seguir
Em "Love", John
canta "o amor é real, real é o amor / amor
é sentimento, sentir amor / Amor é querer ser amado".
E John queria muito ser amado...
"God" traz Lennon
destruindo a utopia dos anos 60. "Deus é um conceito
/ no qual nós medimos / nossa dor... o sonho acabou / O
que posso dizer? / O sonho acabou / ontem / eu era um sonhador
/ mas hoje eu renasci / Eu era o leão-marinho / mas agora
sou John..."
O
disco fecha com o curto e triste lamento "My Mummy's Dead",
onde John, mais uma vez, fala da morte de sua mãe.
John Lennon/Plastic
Ono Band tem sido um pouco esquecido, em parte, pelo
estrondoso sucesso do disco seguinte, Imagine,
que ficou em primeiro lugar tanto na América quanto no
Reino Unido, enquanto o álbum de estréia ficou em
sexto, nos Estados Unidos e, em oitavo, na Inglaterra.
Além da faixa-título,
uma das canções mais famosas de todos os tempos
e que rivalizou com os clássicos realizados
nos tempos dos Beatles, o disco trazia outros hinos, como "Jealous
Guy".
Imagine
marca o surgimento de um Lennon mais lírico, pai de família
e marido dedicado. Mas para realizar o segundo álbum, John
precisou curar suas feridas e tentar se reconciliar consigo mesmo.
Mas, isso é papo
para outro dia. Deixo vocês com a discografia do artista.
Um abraço e até a próxima coluna.
Discografia
Compactos
"Give Peace a Chance" (creditado
como Plastic Ono Band, 1969)
"Cold Turkey" (creditado como Plastic Ono Band, 1969)
"Instant Karma!" (creditado como John Ono Lennon) (1970)
"Mother" (1970)
"Power to the People" (creditado como John Lennon/Plastic
Ono Band) (1971)
"Imagine" (1971)
"Happy Xmas (War Is Over)" (credited como John &
Yoko, The Plastic Ono Band with The Harlem Community Choir) (1971)
"Woman Is the Nigger of the World" (1972)
"Mind Games" (1973)
"Whatever Gets You Thru the Night" (1974)
"#9 Dream" (1975)
"Stand by Me" (1975)
"(Just Like) Starting Over" (1980)
"Happy Xmas (War Is Over)" (1980)
"Give Peace a Chance" (with The Plastic Ono Band) (1980)
"Imagine" (1980)
"Woman" (1981)
"Watching the Wheels" (1981)
"Love" (1982)
"Nobody Told Me" (1984)
"Borrowed Time" (1984)
"I'm Stepping Out" (1984)
"Jealous Guy" (1985)
Discos e CDs
Unfinished Music No.1: Two Virgins (1968)
Unfinished Music No.2: Life with the Lions (1969)
Wedding Album (1969)
Live Peace in Toronto 1969 (1969)
John Lennon/Plastic Ono Band (1970)
Imagine (1971)
Some Time in New York City (with Yoko Ono) (1972)
Mind Games (1973)
Walls and Bridges (1974)
Rock 'n' Roll (1975)
Shaved Fish (1975)
Double Fantasy (with Yoko Ono) (1980)
The John Lennon Collection (1982)
Milk and Honey (with Yoko Ono) (1984)
Live in New York City (1986)
Menlove Ave. (1986)
Imagine: John Lennon (1988)
Lennon (1990)
Lennon Legend: The Very Best of John Lennon (1997)
John Lennon Anthology (1998)
Wonsaponatime (1998)
Acoustic (2004)
Working Class Hero: The Definitive Lennon (2006)
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