Leonard é
um mito. Um homem que entrou para o mundo da música com
mais de 30 anos. Era um poeta renomado no Canadá e com
sua visão singular e peculiar do mundo e da vida, deixou
uma marca pessoal com seu disco de estréia. Leonard é
uma pessoa reclusa, que evita ser badalado e lança poucos
discos. Mesmo assim, influenciou barbaramente artistas de alto
calibre. Em 1991, um tributo chamado I’m Your Fan (um trocadilho
com o seu disco de 1988, I’m Your Man) reuniu algum de seus
admiradores: John Cale, Ian McCulloch, Pixies, Nick Cave, Peter
Astor (ex-Weather Prophets), House of Love, R.E.M., Lloyd Cole,
James, entre outros. O
homem que foi comparado a James Joyce pelos críticos norte-americanos
é uma dessas sumidades pouco comentadas, mas sempre reverenciadas.
E Songs... é um dos mais bonitos, delicados e espetaculares
álbuns de estréia que conheço.
O
que é um santo? Um santo é alguém que conseguiu
realizar uma remota possibilidade humana. É impossível
dizer qual é essa possibilidade. Eu acho que tem algo a
ver com a energia do amor. O contato com essa energia resulta
no exercício de um tipo de balanço dentro do caos
de nossa existência. Um santo não resolve esse caos;
se pudesse o mundo teria mudado há muito tempo.
Não acredito que um santo dissolva o caos nem para si mesmo,
pois há algo arrogante e tipicamente guerreiro na concepção
de um homem colocando ordem no universo. Sua gloria é um
tipo de equilíbrio. Ele desliza à deriva como um
ski solto. Seu curso é a carícia do morro. Sua marca
é o acúmulo de neve naquele momento específico,
arranjado pelo vento e a pedra. Algo no seu interior ama o mundo
de tal maneira que ele se entrega para as leis da gravidade e
o acaso. Longe de voar com os anjos, ele traça com a fidelidade
de uma agulha de um sismógrafo, o estado da sólida
paisagem. Seu lar é perigoso e finito, mas ele esta à
vontade no mundo. Ele consegue amar as formas das coisas humanas,
as formas finas e tortas do coração. É bom
ter entre nós tais homens, tais monstros equilibradores
do amor.
Leonard Cohen, Beautiful
Losers (1966)
É
aquela velha história. Gênios são gênios
não importam a idade que começam uma nova carreira
ou tentam novos vôos. Quem imaginaria que um poeta tímido,
que tinha vergonha de aparecer em público, com uma reputação
sólida construída como poeta fosse entrar no então
chamado mundo “decadente” do rock com mais de 30 anos
e tornar-se uma referência obrigatória para quem
viesse depois dele? Bem, Leonard Cohen foi uma dessas exceções,
e talvez, a mais brilhante e fulgurante de todas.
E seu valor foi mais do que reconhecido, tanto que no ano passado
recebeu do governo canadense a mais alta honraria que um civil
pode almejar, a “Companion of the Order of Canada”,
em reconhecimento aos seus inestimáveis e brilhantes trabalhos
em várias setores da cultura e da arte. Leonard estava
acompanhado na entrega do diretor Norman Jewison, do pianista
Oscar Peterson (talvez a última grande lenda do jazz da
primeira metade da década de 50), do ator Christopher Plummer
e dos ex-primeiros ministros Joe Clark e Brian Mulroney. Definitivamente,
esse senhor, adepto ao budismo e que passa boa parte de sua vida
hoje meditando e estudando, merece tantos prêmios.
Nascido
Leonard Norman Cohen, no dia 21 de Setembro de 1934, em Montreal,
Leonard perdeu o pai, um engenheiro, ainda aos nove anos. Com
17 anos foi para a Universidade McGill e formou um trio de country
chamado Buckskin McGill (nessa época, 1951, 1952, o rock
and roll não era ainda nem um bebê). Além
da música, começou a se interessar por poesia e,
como não poderia deixar de ser, integrou a cena local que
era considera cheia de “intenções subversivas”
como mandava o clichê da época.
Apesar da proximidade com
os Estados Unidos, o canadense Cohen amava mesmo a cultura européia.
Seus maiores ídolos eram o espanhol Lorca, os franceses
Albert Camus e Maupassant, os russos Dostoiévski e Tchekov
e seus cantores favoritos, Pireu, Brassens, Brel e Ferré.
Em 1956, lança seu primeira obra chamada Let Us
Compare Mythologies, enquanto ainda estudava. Cinco anos
depois, The Spice Box of Earth, levou o jovem
canadense ao estrelato internacional. Após uma rápida
passagem pela prestigiosa Universidade de Columbia, em Nova York,
consegue algum dinheiro e começa uma peregrinação
pela Europa. Acaba se apaixonado pela Grécia e começa
a viver na ilha de Hydra, com Marianne e seu filho Axel. Permanece
por lá durante sete anos e em 1964 lança sua obra
mais polêmica, Flowers for Hitler, além
de dois belos romances, The Favorite Game, em
1963, que conta a história de um jovem artista judeu em
Montreal e Beautiful Losers, em 1966, que fez
o o jornal “Boston Globe” afirmar que “James
Joyce está vivo e mora em Montreal”. Cada livro vendeu
mais de 800 mil exemplares, um absurdo naqueles tempos.
Mesmo com tanto sucesso,
e feliz com sua vida em Hydra, Leonard resolveu largar tudo para
tentar a sorte no mundo da música. Apesar da vida confortável
e cheio de regalias, estava decidido a explorar um outro campo.
Ou nas palavras dele próprio: “Quando você
está escrevendo um romance é necessário ter
um local estável, um porto seguro. Você precisa de
uma mulher que possa organizar sua vida, ter crianças brincando
ao seu redor e saber que terá comida e carinho todo dia.
É ótimo ter uma casa limpa e em ordem. Eu tinha
tudo isso, mas mesmo assim decidir me tornar um compositor.”
Tomado
pelo impulso, acabou voltando para a América e se instalou
perto de Nashville para começar uma nova vida. Acabou conhecendo
Judy Collins, que gravou duas canções do desconhecido
compositor em seu disco In My Life, de 1966:
“Suzanne” e “Dress Rehearsal Rag”. No
ano seguinte, arriscou a sorte no tradicional festival Folk de
Newport e acabou chamando a atenção do lendário
John Hammond, responsável pelas primeiras gravações
de Billie Holiday e Bob Dylan para a Columbia Records. Hammond
ficou fascinado com a aparência frágil, voz vacilante
e letras de um lirismo incomum. No Natal do mesmo ano é
lançado então Songs of Leonard Cohen.
“Venha
olhar pela janela minha querida/Eu adoraria ser capaz de ler a
palma de sua mão/Eu sempre achei que seria um desses garotos
ciganos/Até você me dar um lar/Adeus Marianne, está
na hora de nós começarmos/A chorar e rir sobre tudo
isso novamente/Você sabe que eu amei viver contigo/Mas você
me fez esquecer de muitas coisas/Eu esqueci de rezar para os anjos/E
os anjos então esqueceram de nós em suas orações”.
Uma homenagem linda sincera, despojada e crua de seu relacionamento
com o primeiro grande amor de sua vida (“So Long, Marianne”),
mostra toda a exuberância dos versos de Leonard. O som pode
ser definido com um Dylan mais calmo. A voz lembra a de Bob por
ser meio anasalada, o instrumental de forte acento folk e country
também parece com Dylan, mas suas letras e interpretações
são mais contidas, pessoais. Não é exagero
algum considerá-lo um dos melhores poetas (na verdadeira
acepção da palavra) que a música tenha produzido.
Leonard ainda guarda bem
vivas as lembranças de como a música entrou em sua
vida: “O primeiro violão que eu comprei era usado
e foi uma loja na Craig Street em Montreal. Paguei 12 dólares
e era um instrumento estranho e eu não sabia nada sobre
ele, com exceção de que queria tocar um. Eu não
sabia a diferença entre uma corda de náilon e uma
de aço, não havia muito material escrito sobre isso,
não existia música pop, não existia cultura
de massa, televisão e estas descobertas eram feitas sozinhas.
Para piorar, existia uma idéia de que apenas os comunistas
eram guitarristas! Com o passar do tempo, eu fui conhecendo mais
sobre o violão, de maneira cautelosa e comecei a me aprofundar
sobre as cordas de náilon, no violão flamenco. Me
apaixonei pelo flamenco quando vi um jovem espanhol tocandop para
uma garota. Ele tinha cabelos pretos, era bonito, e tocava de
uma maneira muito sensual e pedi para que me ensinasse a tocar
daquela maneira. Acabou me ensinando rudimentos do estilo, até
que um dia ele estava atrasado para me dar a aula, seria a quarta.
Fui procurá-lo e descobri que tinha cometido suicídio.
Eu nunca soube de onde veio ou o motivo de ter se matado, mas
sou até hoje extremamente grato por tudo que me ensinou,
pois virou a base de minhas composições. Eu não
quero parecer pedante ou bancar o grande músico, mas muitas
pessoas falaram durante anos que eu só conhecia três
acordes, quando na verdade eu aprendi cinco.”
Leonard comenta que John
Hammond foi extremamente importante em sua formação:
“John era um extremamente generoso em estúdio. Ele
ficava lendo um jornal sem parar enquanto eu ficava lutando com
a guitarra no estúdio. Muitas pessoas achavam que isso
era um desrespeito da parte dele, mas na verdade o que ele queria
era mostrar que eu teria todo tempo para elaborar a melodia sem
ser interrompido a todo instante. Aquele jornal era tão
velho que parecia ser do tempo em que ele produzira a Billie Holiday
e eu adorava a atmosfera que ele criava, porque sabia que poderia
errar, começar novamente, gravar um take diferente e que
nada o afetaria. Isso era notável, de uma generosidade
imensa e muito divertido, porque dava a impressão para
as pessoas que lá estavam que ninguém sabia que
diabos estava acontecendo lá dentro. Eu não sabia
como usar o microfone, pois nunca tinha usado um antes. Em casa
eu trocava em frente ao espelho, porque me sentia mais confortável
dessa maneira. Era uma necessidade meio narcisista de minha parte
para criar um clima favorável. John então providenciou
um espelho imenso para que eu ficasse confortável. Era
um cavalheiro.”
Para
Cohen, a única maneira de compor uma canção
é através de um profundo auto-conhecimento e despojamento:
“Muitas pessoas me questionam se há alguma mística
em escrever. Eu acho que a única receita é entrar
em contato com o você mesmo ou interessar-se em se conhecer.
Muitas pessoas não estão interessados nisso, mas
o material que utilizo são meus pensamentos e as paisagens
e pinturas que elas podem me fornecer.”
Ele gosta de explicar porque
três de suas melhores canções de seu álbum
de estréia estão relacionadas ao universo feminino.
Abaixo, Leonard explica a origem de cada uma delas.
SO LONG, MARIANNE:
“Marianne me deu um incrível senso de order na minha
vida. Foi uma bênção viver com uma pessoa
como ela, que veio da Noruega, onde vivia no campo. Ela punha
flores na minha mesa pela manhã, especialmente gardênias,
me trazia sanduíches enquanto eu trabalhava para sustentar
nossa família. Eu não percebia que ela era a musa
que todo poeta tinha pedido. Ela me nutria de várias formas”.
SUZANNE:
“O nome apareceu enquanto eu dedilhava uns acordes. Pelo
que me lembro, a canção era sobre Montreal que era
um porto e onde os marainheiros iam até a igreja de lá,
chamada de Notre Dame de Bom Secour. Eu sabia que lá havia
a Nossa Senhora do Porto, que era uma virgem na igreja com os
braços estendidos. Voc6e podia subir a torre e ver o rio,
e a canção veio da idéia dessa visão.
Um dia encontrei Suzanne, que era esposa de um amigo meu e ela
era uma mulher deslumbrante, assim como seu marido. Todos homens
se apaixonavam pela formas delas, assim como as mulheres por seu
marido, Armand. A idéia de qualquer um de nós flertamos
com ela era impossível. Mas um dia eu a encontrei e ela
me convidou gentilmente para ir ao seu estúdio e ela me
serviu um chá, com pequenas rodelas de laranja e mentalmente
eu toquei seu corpo perfeito em minha mente, porque não
teria como ser de outra maneira. E assim nasceu o nome e a simbologia
para a canção.”
SISTERS OF MERCY:
“Ela foi inspirada em duas moças que eu conheci durante
uma nevasca em Edmonton. Eu estava fazendo uma pequena turnê,
cantando em escolas públicas por minha conta e estávamos
no mesmo local. Elas não tinham um quarto no hotel e eu
as convidei para dividir o quarto comigo. Elas adormeceram na
cama de casal, enquanto fiquei na cadeira. Elas dormiam de uma
maneira tão delicada juntas. Eu vivia lutando contra a
solidão nesse período e sempre desejava encontrar
mulheres durante as viagens. Então peguei uma caneta, um
pedaço de papel e reparei que o luar brilhava em cima da
camada de gelo que havia se formado sobre o rio e eu imaginei
que poderia ser tão belo como imaginava”.
Uma
das mais belas metáforas do disco é a foto da contra-capa.
A pintura se chama Anima Sola, de origem mexicana
e que segundo Leonard, mostra o triunfo do espírito sobre
a matéria. "O espírito da linda mulher se liberta
das correntes, do fogo e da prisão", explica o compositor.
Para encerrar, deixo a
letra de “Suzanne”, “So Long, Marianne”
e a relação dos artistas que gravaram I’m
Your Fan, um dos inúmeros tributos que Leonard
Cohen recebeu ao longo da carreira. Além disso, há
a discografia completa e todos os livros que escreveu ao longo
de sua vida. Até mais!
Suzanne
Suzanne takes you
down to her place near the river
You can hear the boats go by
You can spend the night beside her
And you know that she's half crazy
But that's why you want to be there
And she feeds you tea and oranges
That come all the way from China
And just when you mean to tell her
That you have no love to give her
Then she gets you on her wavelength
And she lets the river answer
That you've always been her lover
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you know that she will trust you
For you've touched her perfect body with your mind.
And Jesus was a sailor
When he walked upon the water
And he spent a long time watching
From his lonely wooden tower
And when he knew for certain
Only drowning men could see him
He said "All men will be sailors then
Until the sea shall free them"
But he himself was broken
Long before the sky would open
Forsaken, almost human
He sank beneath your wisdom like a stone
And you want to travel with him
And you want to travel blind
And you think maybe you'll trust him
For he's touched your perfect body with his mind.
Now Suzanne takes your hand
And she leads you to the river
She is wearing rags and feathers
From Salvation Army counters
And the sun pours down like honey
On our lady of the harbour
And she shows you where to look
Among the garbage and the flowers
There are heroes in the seaweed
There are children in the morning
They are leaning out for love
And they will lean that way forever
While Suzanne holds the mirror
And you want to travel with her
And you want to travel blind
And you know that you can trust her
For she's touched your perfect body with her mind
So Long, Marianne
Come over to the
window, my little darling,
I'd like to try to read your palm.
I used to think I was some kind of Gypsy boy
before I let you take me home.
Now so long, Marianne, it's time that we began
to laugh and cry and cry and laugh about it all again.
Well you know that I love to live with you,
but you make me forget so very much.
I forget to pray for the angels
and then the angels forget to pray for us.
Now so long, Marianne, it's time that we began ...
We met when we were almost young
deep in the green lilac park.
You held on to me like I was a crucifix,
as we went kneeling through the dark.
Oh so long, Marianne, it's time that we began ...
Your letters they all say that you're beside me now.
Then why do I feel alone?
I'm standing on a ledge and your fine spider web
is fastening my ankle to a stone.
Now so long, Marianne, it's time that we began ...
For now I need your hidden love.
I'm cold as a new razor blade.
You left when I told you I was curious,
I never said that I was brave.
Oh so long, Marianne, it's time that we began ...
Oh, you are really such a pretty one.
I see you've gone and changed your name again.
And just when I climbed this whole mountainside,
to wash my eyelids in the rain!
Oh so long, Marianne, it's time that we began ...
Quem
participa do tributo I’m Your Fan de 1991
1. The House of
Love: Who by fire
2. Ian McCulloch: Hey, that’s no way to
say goodbye
3. Pixies: I can’t forget
4. That Petrol Emotions: Stories of the street
5. The Lilac Time: Bird on the wire
6. Geoffrey Oryema: Suzanne
7. James: So long Marianne
8. Jean-Louis Murat: Avalanche IV
9. David McComb & Adam Peters: Don’t
go home with your hard-on
10. R.E.M.: First we take Manhattan
11. Lloyd Cole: Chelsea hotel
12. Robert Foster: Tower of song
13. Peter Astor: Take this longing
14. Dead Famous People: True love leaves no traces
15. Bill Pritchard: I’m your man
16. Fatima Mansions: A singer must die
17. Nick Cave and the Bad Seeds: Tower of song
18. John Cale: Hallelujah
Discografia
Songs of Leonard Cohen
(1967)
Songs From a Room (1969)
Songs Of Love And Hate (1971)
Live Songs (1973)
New Skin For The Old Ceremony (1974)
The Best Of (1975)
Death Of A Ladies’ Man (1977)
Recent Songs (1979)
Various Positions (1984)
I’m Your Man (1988)
The Future (1992)
Cohen Live (1994)
More Best Of (1997)
Field Commander Cohen - Tour of 1979 (2001)
Ten New Songs (2001)
The Essential Leonard Cohen (2002)
Dear Heather (2004)
Livros que escreveu
Let Us Compare Mythologies
(1956)
The Spice Box of Earth (1961)
The Favorite Game (1963)
Flowers for Hitler (1964)
Beautiful Losers (1966)
Parasites of Heaven (1966)
Selected Poems 1956-1968 (1968)
The Energy of Slaves (1972)
Death’s of a Lady Man (1978)
Book of Mercy (1984)
Credo (1985)
Stranger Music (1993)
Dance Me To The End of Love (1996)
God is Alive, Magic Is Afoot (2000)
Book of Longing (2006)
Gostaria de agradecer a
Jarkko Artjatasalo, responsável pelo excepcional site
Leonard Cohen Files e com quem troquei alguns
e-mails. Thank you so much Jarkko!
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do álbum Songs Of Leonard Cohen.
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