A
obsessão continua: depois do Velvet, é a vez do
homem solo. O culpado de tudo. Aquele que ficou famoso em um cartaz
dos anos 70 como se fosse um bandido procurado nos tempos do velho
oeste. Os dizerem eram simples: procurado for fazer toda uma geração
virar faggot (expressão ofensiva e chula para definir homossexuais)
e junk. Se ele fez isso mesmo, merecia realmente ser procurado.
Afinal, se ser politicamente incorreto na América de hoje,
comandada por um maluco, já é, no mínimo,
um perigo, imagine então nos anos 70? Isso não é
uma ofensa. Só poderia ser o maior dos elogios!
Lou já não tinha mais nada a provar quando gravou
New York. Ou melhor, tinha. Provar que poderia fazer um
belo poema de amor à cidade que tanto retratou, sempre
com uma navalha na boca. Não é à toa que
Bowie quando comemorou seus 50 anos em 1997, no Madison Square
Garden, o chamou para o palco anunciando como “o Rei de
Nova York em Pessoa”. Juntos, detonaram quatro canções,
a saber: "Queen Bitch" (homenagem do camaleão
ao maldito, do disco Hunky Dory, de 1971), "I’m Waiting
for The Man", "Dirty Boulevard" (não por
acaso do disco em questão) e "White Light/White Heat".
Uma lenda homenageando outra lenda. Esse é mais outro belo
elogio.
Quando entrou para gravar
New York, Lou estava saindo de um trabalho perturbador
para ele mesmo: o disco homenagem a Andy Warhol, Songs for
Drella com seu eterno parceiro, John Cale, com quem estava
rompido há tempos. Sem conseguir exorcizar muito bem esse
período, entrou logo em estúdio, e produziu mais
uma obra-prima. Nem precisava nos dar mais um clássico
do rock, mas quem disse que ele pensou nisso quando compunha?
Ele é Lou Reed, o Rei. Quem somos para discutir?
Depois do jabá mais do que vergonhoso, voltemos ao que
interessa. No segundo semestre de 1988, ainda que tentando digerir
o Songs for Drella, Lou Reed começou a escrever
de maneira febril para um novo trabalho, mesmo ainda sem direção.
Depois do trabalho intimista com Cale, resolveu gravar um disco
ao seu velho estilo: duas guitarras, baixo e bateria. Ou como
ele próprio disse na contra-capa no disco: “nada
supera duas guitarras, baixo e bateria”. Mas o homem superou
a lenda.
Dos músicos convidados,
apenas uma nova aquisição: o baterista Fred Maher,
cunhado da mulher de Lou, Sylvia, e que co-produziria o disco
com ele. Os velhos de guerra eram o baixista Rob Wasserman e a
baterista do Velvet, Moe Tucker, que aparece em duas faixas: “Last
Great American Whale” e “Dime Store Mystery”.
O projeto era ambicioso:
“escrever um disco de rock que devesse ser apreciado durante
58 minutos, sentado como se estivesse assistindo um filme ou lendo
um bom livro.”
“Quando comecei a escrever,
tentava achar uma maneira de casar as minha letras com o ritmo
da canção. Eu queria que as pessoas pegassem o clima
das letras, essa era a minha maior preocupação para
o disco. Ouvir as letras. É assim que aprendi a ouvir rock.
Este é meu ponto de vista: eu escrevo para pessoas com
um certo nível cultural. Eu não tinha o objetivo
de escrever New York como se fosse um adolescente. Quando
você fica mais velho, ou você aprende com o que viveu
ou pula fora e não volta mais. Ainda acho que tenho algumas
idéias melhores do que algumas pessoas que estão
por aí e estou disposto a lutar por elas e nem acho isso
tão difícil de fazer. Pode soar taxativo, mas é
a minha visão das coisas.”
Mas mesmo para Lou Reed isso
não foi fácil. Pelo contrário, foi um dos
discos que mais o consumiu: “Levei três meses escrevendo
as letras. A morte de Andy havia mexido comigo, mesmo que eu não
quisesse admitir. `Dime Store Mystery` era para ele, uma canção
de amor a um cara que aprendi a amar e tive o privilégio
de conhecer. Mas esses sentimentos você só percebe
quando os perde.”
Mesmo
compondo incessantemente New York, ainda trabalhava no
conceito de Songs for Drella, aumentando ainda mais os
demônios dentro de si.
“Era uma luta interna.
Enquanto eu cutucava os problemas contemporâneos (Aids,
racismo, violência de gangues, violência doméstica,
abuso infantil), eu tinha que pensar em poemas delicados intimistas
para Andy. Isso estava me deixando louco!”.
Mesmo com tantas dúvidas,
em janeiro de 1989, finalmente foi lançado o trabalho.
A repercussão foi mais do que favorável. Segundo
o New York Times “era finalmente a hora de prestar atenção
em Lou de uma maneira mais séria”.
Mesmo sendo taxado de niilista por escrever apenas “canções
tensas”, New York o colocou no topo da lista, em
capas de revistas, mesmo que por pouco tempo.
“Foi meu disco mais
vendido desde Sally Can’t Dance. Me deixou orgulhoso
que as pessoas começassem a escrever sobre o trabalho,
mesmo que de forma errada ou analisando equivocadamente minhas
letras. O importante era debater os temas, mostrar que a América
vendida ao mundo não existe mais, que temos problemas gravíssimos
como qualquer nação pobre do mundo”.
Seu engajamento político,
ainda que refinado, foi atribuído muito ao estreitamento
de relação com Bono. Os dois fizeram algumas viagens
pela América Central e África após se conhecerem
pessoalmente durante as gravações do manifesto anti-apartheid
Sun City, idealizado por Little Steven, guitarrista da E Street
Band de Bruce Springsteen, em 1986.
“Bono estava numa época
de conflito interno, porque o U2 tinha virado a banda mais popular
do planeta e ele começava a ser criticado de maneira dura
sendo acusado de querer ser um Messias no palco, enquanto posava
de rock star para a mídia. Ele chegou perto de mim um dia
e começou a falar o quanto gostava do meu trabalho, de
minha posição independente e que havia entrado numa
encruzilhada na carreira. Não sabia mais se deveria continuar
com o grupo. Comecei a perceber que era apenas um garoto agoniado
com o estrelato, que tinham colocado todo o peso do mundos nas
suas costas e que não sabia como lidar com o fato. Sentamos
e ele ficou falando horas e horas da vontade de viajar pelo mundo
e ver com seus próprios olhos os problemas dos pobres.
Quando me convidou, meu primeiro impulso foi dizer não,
pois não sou um “working class hero”, mas aos
poucos a idéia foi me seduzindo e aceitei a empreitada.
E por mais que soe piegas, aprendi muito com ele.”
A amizade ficou tão
forte que ao escrever “Beginning of a Great Adventure”,
uma brincadeira sobre qual nome daria a um filho se tivesse, incluiu
o nome do cantor irlandês na lista. Anos mais tarde, durante
a turnê de Zooropa, Bono cantava com Lou Reed, em um telão
e do outro lado do mundo, “Satellite of Love”, do
disco Transformer, além de um plágio descarado
na forma de escrever na canção de “The First
Time”.
Mas é claro que houveram
críticas. E pesadas: alguns desceram à lenha nas
letras, acusando de serem anti-semistas e por atacar o Papa e
o reverendo negro Jesse Jackson. Ainda assim, Lou Reed começava
a planejar uma nova turnê, que nem chegou a sair do papel,
pois acabou quebrando o tornozelo durante os ensaios.
Além das polêmicas,
o trabalho foi comparado a Berlin, disco que compôs
e 1973, e que virou um marco em sua carreira. Lou não vê
similaridade aos trabalhos: “Em Berlin, fiz um disco falando
de um período que me atraía muito, a Alemanha dos
anos 30, pré-Hitler. Aquela imagem decadente, sempre foi
muito interessante. Além disso, eu estava saindo do meu
casamento com Betty e eu usei nós dois como pano de fundo.
Imaginei dois norte-americanos drogados vivendo na Alemanha daquela
época.”
Além da diferença
no contexto, Berlin pode ser considerado a maior obra-prima
do que depois ver ser rotulado, ridiculamente, de rock-deprê.
Com uma banda de grandes músicos, entre eles Ginger Baker,
Aynsley Dunbar, Tony Levin, Steve Hunter, Steve Winwood, Michael
Brecker, entre outros, o disco era todo lento e as letras pertubadoras.
“New York é totalmente diferente disto. É
enérgico, seco, direto. E as letras são de outro
enfoque."
"Minha idéia
para o disco era misturar a literatura com o rock de uma maneira
que até então não tinha feito na minha carreira.
Raymond Chandler era meu escritor favorito desde os tempos em
que conheci Delmore Schwartz. Mas eu queria tentar casar o texto
dele, com algo mais épico como Dostoiévski. Já
imaginou unir literatura russa com guitarra? Nem eu, mas fui o
que tentei realizar. E achei que consegui um bom resultado."
Mais do que simplesmente
um bom resultado, Lou mostrava uma visão aguda dos problemas:
"não haviam personagens centrais, mas todas as canções
tinham uma unidade. A idéia era amarrar como se fosse um
grande conto, uma novela em pedaços. A grandiosidade de
montar um tema assim me fez querer na época desejar fazer
um disco com vários músicos, arranjos complicados,
mas preferi simplificar, com medo de me perder. Já tinha
consumido muito tempo com as letras e preferi ser o mais simples
possível instrumentalmente falando. Queria dar uma característica
de urgência e por isso necessitava de um som básico."
A urgência pode ser
conferidas nas letras, como nos primeiros versos de "There
is No Time: "Não é o momento para celebrações/
Não é o momento para apertos de mão/ Não
é o momento para tapinhas nas costas/ Não é
o momento para bandas de fanfarra/ Não é o momento
para otimismo/ Não é o momento para reflexões
intermináveis/ Não é o momento para meu país,
certo ou errado/lembre-se o que isso já trouxe..."
Mal acabara o projeto New
York, Lou voltava ao estúdios e no final do ano lançaria
o disco Songs for Drella. "Eu estava realmente intenso,
começando a escrever pequenas peças orquestrais
e que casavam com o que John queria fazer quando me chamou para
homenagearmos o Andy. O mais incrível era como consegui
pular de algo tão distinto de um disco para o outro em
tão poucos meses. Eu estava há mais de três
anos sem lançar um disco, e do nada, saíram dois
e totalmente diferentes. Depois de tudo, levei mais alguns anos
para um novo trabalho."
Sua nova gravadora, a Sire,
comemorava o ano de 1989, em grande estilo: acabara de assinar
com o cantor e de quebra, teve dois discos perfeitos: "Foi
um alívio ter saído da RCA, pois sempre tive várias
brigas com os diretores. Após compor 'Walk On the Wild
Side', eles pediam um novo hit. Explicava que aquilo era um acidente.
Como ia imaginar que uma história de um travesti iria virar
sucesso nas rádios? Fazer Berlin já foi complicado,
ainda mais porque insistiam que eu continuasse minha dupla com
Bowie, quando eu queria experimentar sozinho. E as nossas relações
se deterioram muito após Metal Machine Music. Eles
já estavam ressabiados com os discos Low e "Heroes"
de David, e quando souberam que eu ia pelo mesmo caminho, se arrepiaram.
E até com razão, porque fiz mais para provocá-los.
Depois disso, cada disco era uma longa e tediosa briga. A Sire
me deu total liberdade para compor o material que eu desejasse,
além de me contratarem num bom momento, já que estava
sem gravar há anos e com muito material na cabeça."
Para ele, uma das cenas mais
insólitas do período foi a gratidão com que
os fãs chegavam perto dele para agradecer o poema à
cidade: "O mais gozado é que depois de lançar
o disco, várias pessoas comentavam que eu finalmente havia
homenageado Nova York. Eu fiz isso a vida inteira, será
que ninguém percebia isso? Sempre usei essa cidade como
pano de fundo de todas as minhas histórias. Não
é só Woody Allen que é obcecado por ela..."
Bem, fico aqui. Para acompanharem
as letras e suas traduções cliquem
aqui. De preferência, ouvindo o vinil (ou o CD). Um
abraço e até a próxima!
Discografia
Lou Reed (1972)
Transformer (1972)
Berlin (1973)
Rock 'n' Roll Animal (1974)
Sally Can't Dance (1974)
Lou Reed Live (1975)
Metal Machine Music (1975)
Walk on the Wild Side & Other Hits* (1975)
Coney Island Baby (1975)
Rock and Roll Heart (1976)
Walk on the Wild Side: The Best of Lou Reed* (1977)
Live: Take No Prisoners (1978)
Street Hassle (1978)
The Bells (1979)
Vicious* (1979)
Rock and Roll Diary: 1967-1980* (1980)
Growing Up in Public (1980)
Rock & Roll Today (1980)
The Blue Mask (1982)
I Can't Stand It* (1982)
Rock Galaxy* (1983)
Legendary Hearts (1983)
Live in Italy (1984)
New Sensations (1984)
City Lights (Classic Performances By Lou Reed)* (1985)
Mistrial (1986)
New York Superstar* (1986)
Wild Child* (1987)
New York (1989)
Retro* (1989)
Songs for Drella (1990)
Magic and Loss (1992)
Between Thought and Expression: The Lou Reed Anthology* (1992)
A Retrospective* (1993)
Very Best of Lou Reed & Velvet Underground* (1995)
The Best of Lou Reed & the Velvet Underground* (1995)
Different Times: Lou Reed in the '70s* (1996)
Set the Twilight Reeling (1996)
Live in Concert (1997)
Perfect Day* (1997)
Perfect Night: Live in London (1998)
The Definitive Collection* (1999)
Very Best of Lou Reed* (2000)
Ecstasy (2000)
American Poet (2001)
The Wild Side: Best of Lou Reed* (2001)
Golden Collection* (2002)
Legendary* (2002)
NYC Man: The Ultimate Lou Reed Collection*(2003)
The Raven (2003)
The Platinum & Gold Collection* (2004)
NYC Man: Greatest Hits* (2004)
Le Bataclan '72 (2004)
Animal Serendade (2004)
Hudson River Wind Meditations (2007)
* coletâneas
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