Ele foi o Príncipe
da Escuridão. Para Duke Ellington era o "Picasso da
Arte Invisível". Foi um gênio. Um escroto. Um
visionário. Um oportunista. Um inovador. Um mestre. Um
silêncio. Amado, copiado, condecorado, homenageado, ridicularizado,
drogado, mulherengo, cafetão, irreverente, desbocado, violento,
cavalheiro. Miles Dewey Davis III foi isso tudo e muito mais.
Seu peculiar modo de tocar trumpete fez dele um dos maiores nomes,
não apenas do jazz, mas da história da música.
Um homem mítico, que atravessou diversas vezes o inferno
e de lá saía cada vez mais surpreendente e inovador.
Nesse primeiro texto, falarei sobre a sua volta na década
de 50, quando montou seu primeiro grande quinteto, tendo como
um destaque um jovem saxofonista que não era, nem de longe,
sua primeira opção: John Coltrane.
Se
Miles Davis tivesse sido "apenas" um extraordinário
músico, com uma carreira de quase 50 anos e uma discografia
tão extensa e fantástica (e praticamente impossível
de ser catalogada corretamente), ele já teria seu lugar
mais do que reservado no mundo do jazz e da música, em
geral. Mas Miles fez muito mais do que isso: apaixonado pelo som
do sax de Charlie Parker, durante muitos anos foi protegido não
apenas de Bird, mas também de Dizzy Gillespie. Depois disso,
começou arriscando seus primeiros passos sozinho, de forma
tímida, até começar a dar as cartas no jazz,
no início dos anos 50. E um pouco desses passos serão
contados agora...
Quando Miles Davis entrou
em 1954 para gravar um disco, muita coisa havia acontecido. É
correto dizer que Miles estava renascendo - fisicamente e artisticamente
- após uma luta de quatro anos contra as drogas que havia
praticamente destruído sua reputação. Durante
esse tempo, sem trabalho e com poucas chances de sobreviver, Miles
foi até cafetão. Por isso, quando o trumpetista
voltou ao batente, muita coisa mudaria.
Assim,
que voltou a tocar, Miles começou a construir uma nova
sonoridade. Ele ainda tinha um contrato a cumprir com a Prestige,
mas não tinha um grupo a acompanhá-lo. Por isso,
acabou sendo ajudado por alguns velhos amigos nas primeiras gravações
em 1954. Foi assim que Art Blakey (bateria), Horace Silver (piano)
e Percy Heath (baixo) começaram a dar suporte ao amigo.
Com companheiros tão
ilustres e talentosos, as idéias fluíam de maneira
fácil e várias composições nasceram.
Mas, se Miles mostrava-se em boa forma, o quarteto buscava um
estilo distante do bebop dos anos 40.
Em abril, Miles fez nova
tentativa, desta vez como quinteto, tendo Kenny Clarke em lugar
de Art Blakey e contando com Dave Schildkraut, no sax alto. Apesar
do excelente time, a música não era satisfatória.
A Prestige também andava preocupada porque não possuía
muito dinheiro para gastar com ensaios e resolveu que a banda
deveria trabalhar apenas em estúdio. Horace Silver lembra-se
bem dessas gravações, realizadas no dia 29 de abril:
"Miles sempre teve um enorme dom para fazer arranjos de cabeça,
sem escrevê-los muito. No estúdio, ele costumava
sentar com as mãos na cabeça, enquanto arrumávamos
nossos equipamentos e depois mostrava algumas coisas que gostaria
que tocássemos, expllicando o que desejava. Nesse dia,
Miles havia convidado J. J. Johnson (trombone) e Lucky Thompson
(sax tenor), para quem havia encomendado alguns arranjos. Começamos
a tocar, mas nada acontecia e como ninguém havia ficado
feliz com o resultado, acabamos tocando aqueles arranjos que Miles
tinha bolado na hora, e que resultaram em 'Walkin' e 'Blue 'n'
Boogie'".
O que mais impressionava
era o estilo peculiar com que Miles Davis tocava, com menos solos
e de uma maneira mais contida.
Miles teve uma nova sessão
de estúdio, em 29 de junho, e desta vez levou consigo o
saxofonista Sonny Rollins, além do trio Horace Silver,
Pearcy Heath e Kenny Clarke. Dessa formação, nasceu
o disco Walkin', um dos mais importantes e representativos
da fase Prestige.
A gravadora estava feliz
com os resultados obtidos com os vários lançamentos
de Davis. Embora fosse um selo pequeno, tinham contrato com Thelonious
Monk e Modern Jazz Quartet (formado por John Lewis, Milt Jackson,
Pearcy Heath e Kenny Clarke). No Natal de 1954, a gravadora teve
uma grande idéia ao juntar o trio do Modern Jazz (Heath,
Clarke e Jackson) a Miles e Thelonious em uma gravação
às vésperas do Natal. As gravações
foram marcadas por uma grande tensão entre Miles e Monk.
Enquanto o trumpetista era uma estrela em ascensão, Monk
havia seguido por um caminho mais obscuro e penava. O falecido
baixista Charlie Mingus lembra de presenciar Miles sentindo-se
ameaçado pelo pianista e criar um ambiente terrível.
Monk
havia sido professor de Miles, ensinando harmonia e algumas de
suas grandes composições e teve que lidar com um
músico mimado e que invariavelmente o ameaçava.
Miles chegou ao limite de culpar o produtor Bob Weinstock pela
escolha de Monk como pianista. "ele é um não-músico
e irá estragar os meus solos." Na verdade, Miles confessaria,
anos depois, que o grande problema em trabalhar com Thelonious
era que ele não dava apoio algum aos músicos em
estúdio. "Eu adoro suas composições,
mas não suporto tê-lo atrás de mim no estúdio."
Dessas gravações nasceu um dos grandes clássicos
do jazz, o disco Bag's Groove.
Mas
a situação de Miles ainda era delicada, a ponto
de ser preso por não pagar a pensão alimentícia
de sua mulher, Irene. Foi lá que ele recebeu uma das piores
notícias possíveis: a morte de seu ídolo
e mentor Charlie Parker, com apenas 34 anos, no dia 12 de março
de 1955. Bird atravessava um momento de extrema penúria
financeira e criativa e quase implorando por um serviço
e muitos consideraram sua morte como uma "benção"
ao maior saxofonista de todos, pois Charlie Parker parecia ter
chegado ao fundo do poço em termos de criatividade e importância.
E Miles temia que o mesmo ocorresse consigo, já que sua
carreira estava marcada por percalços. Um dos motivos para
isso era o próprio selo Prestige, conhecido no meio com
um selo "junkie label", isto porque possibilitava
a músicos viciados participarem de gravações
e receber o pagamento logo após as sessões, em dinheiro.
Apesar
disso, a Columbia Records queria o trumpetista, mas Miles estava
enroscado no contrato com a Prestige, para quem devia ainda quatro
discos e mais um ano de contrato. Sabendo disso, o produtior George
Avakian tentava encontrar uma maneira de contratá-lo, embora
não soubesse como. E foi seu irmão, o fotógrafo
Aram, que instigou George a tentar uma negociação.
Os dois tinham ficado maravilhados com a apresentação
de Miles com seu grupo no Newport Festival, em 1955. Ao lado de
Gerry Mulligan, Zoot Sims, Thelonious Monk, Percy Heath e de Connie
Kay; Miles deu o melhor show de todo o festival, com destaque
para "'Round Midnight", composição de
Monk e que deixou os irmãos Avakian fascinados.
Após a apresentação,
Aram chamou seu irmão e disse para ele que não hesitasse
em contratar Miles. George argumentou que seria algo extremamente
complicado pois ele ainda tinha o contrato com a Prestige. Meses
depois, Miles seria contratado pela Columbia numa tacada de mestre
de George Avakian: Miles continuaria preso a Prestige até
pagar todos os discos que devia ao selo, mas poderia começar
a gravar pela Columbia, que, no entanto, só lançaria
esses trabalhos após o final do contrato com o antigo selo.
Era uma maneira de deixar uma casa sem magoar seus antigos donos.
Avakian, no entanto, sofreu
sérias críticas dentro da própria Columbia,
pois Miles havia pedido quatro mil dólares de adiantamento,
uma quantia considerada razoável pelo produtor, mas ostensiva
demais para os sisudos diretores, que não entendiam como
podiam dar tanto dinheiro a um ex-viciado. Ainda assim, o negócio
foi sacramentado.
Com um contrato novo, Miles
começou finalmente a montar uma nova banda. Cheio de trabalhar
com músicos contratados, ele queria ter um grupo com membros
fixos e com quem pudesse criar uma identidade.
E o primeiro a ser chamado
foi o baterista "Philly Joe" Jones, velho conhecido
de Miles e considerado um dos mais sólidos músicos.
Jones era um baterista da mesma escola de Max Roach, e segundo
Miles, era o único músico que poderia produzir o
fogo que ele tanto precisava.
Resolvido
o problema do baterista, Miles foi atrás de um baixista
e acabou recrutando um jovem músico de 22 anos, Paul Chambers,
que havia acabado de chegar em Nova York diretamente de Detroit.
Miles havia visto Chambers tocando com o pianista George Wallington,
no Bohemia Cafe e havia gostado muito de seu estilo e técnica.
Após achar sua "cozinha",
Miles chamou o pianista Red Garland. Canhoto, Red foi convidado
após ter tentado Horace Silver, Ray Bryant, e Bengt Hallberg.
Garland tinha um estilo mais "rítmico", o que
casava melhor com a proposta de Miles.
E havia ainda um posto
vago, o de saxofonista. A primeira e favorita opção
de Miles era seu antigo companheiro, Sonny Rollins, já
que Miles havia pensado o quinteto em cima da sonoridade de Rollins.
"Eu
quero que esse grupo soe da mesma maneira que Sonny toca, que
é a maneira que todo mundo deveria tocar."
Mas Sonny, viciado em heroína,
havia desaperecido em Chicago e ninguém o conseguia encontrar.
Foi então que o "Philly Joe" recomendou um antigo
colega seu e que ja havia tocado com Dizzy Gillespie: John Coltrane.
Miles, no entanto, quis
tentar primeiro Julian "Cannonball" Adderley, sem sucesso,
e só depois de muita insistência por parte do baterista
é que aceitou o desconhecido músico, embora sem
grande entusiasmo. Coltrane era grande amigo de Sonny Rollins
e o desaparecimento do segundo é dado por alguns como uma
"desculpa" para que Coltrane acabasse sendo contratado
por Miles.
"Eu
não fiquei muito animado quando conheci Coltrane. Ele era
um músico completamente desconhecido, mas rapidamente conseguimos
nos conectar de uma maneira que eu jamais imaginei ser possível.
E Coltrane também estava extasiado em tocar com Davis,
a quem considerava um pioneiro musical.
O primeiro disco com o
novo quinteto saiu ainda pela Prestige: The New Miles
Davis Quintet. Com essa nova formação,
Miles conseguiria o impossível: lançaria seis fabulosos
discos em menos de um ano: Além desse, sairiam Cookin',
Relaxin', Workin', Steamin e
'Round About Midnight.
Assim
'Round About Midnight marcava a estréia
de Miles pela Columbia, uma parceira que duraria quase 30 anos.
O título foi sugerido pelo produtor George Avakian, que
havia ficado estupefato com a versão de "'Round Midnight",
em Newport. Ela seria, também, a canção que
abriria o disco com um lindo trabalho de Coltrane e Miles.
Coltrane recorda que temia
encontrar muitas dificuldades em trabalhar com Miles. "Foi
uma surpresa ver que ele era muito receptivo e aceitava sugestões
para os arranjos e que nos dava liberdade para improvisarmos".
Na verdade, os dois possuíam
estilos que se casavam perfeitamente. Enquanto Miles buscava espaços
e utilizava com grande beleza o silêncio, Coltrane era um
vulcão, compulsivo e dotado de grande velocidade. E os
dois tinham ainda uma grande seção rítmica
os acompanhando.
Gil Evans, um dos maiores
parceiros de Miles, disse que um dos grandes méritos do
trumpetista era saber exatamente o que queria e o que não
queria, além de possuir uma grande confiança em
suas escolhas.
Ele soube recriar brilhantemente
arranjos para "All Of You", de Cole Porter; "Ah-Leu-Cha",
de Charlie Parker; "Tadds' Delight", de Tadd Dameron
e o standard "Dear Old Stockholm", arranjada
por Stan Getz. Além delas, foram gravadas "Two Bass
Hit", de Dizzy Gillespie; "Little Melonae"; "Budo"
(de Bud Powell e Miles) e "Sweet Sue, Just You", que
acabaram entrando numa versão remasterizada, em CD.
As gravações
aconteceram em três sessões: no dia 26 de outubro
de 1955 foram feitas "Ah-Leu-Cha", "Two Bass Hit",
"Little Melanoe" e "Budo"; no dia 5 de junho
de 1956 foram gravadas "Bye Bye Blackbird", "Tadd's
Delight" e "Dear Old Stockholm"; e finalmente no
dia 10 de setembro de 1956; "'Round Midnight", "All
Of You" e "Sweet Sue, Just You".
O disco foi aclamado instantaneamente
como um clássico e registrou o primeiro grande quinteto
comandado por Miles. Com músicos tão talentosos,
ele conseguia imprimir uma marca que seria tão copiada
por várias décadas. O auge estava perto quando registrou
o espetacular Kind Of Blue, em 1959, já
como sexteto, contando com Bill Evans (seu pianista favorito),
o mesmo Julian "Cannonball" Adderley que recusara o
convite anos antes, e o baterista James Cobb. Kind Of
Blue é considerado até hoje como o mais
influente disco de jazz e o que mais vendeu dentro do gênero.
Mas entre esses dois discos
muita coisa aconteceu, inclusive uma temporária ausência
de Coltrane, que foi substituído, ironicamente, por Sonny
Rollins. Mas isso é papo para um outro dia.
Deixo vocês com a
discografia de Miles ao vivo e em estúdio, a mais próxima
que encontrei da correta, pois ele ainda possui diversas coletâneas
e obras póstumas. Um abraço.
Discografia
Discos de estúdio
Birth of the Cool (1949)
And Horns (1950)
Blue Period (1951)
Conception Original Jazz (1951)
1951 The New Sounds of Miles Davis (1951)
Diggin' (1951)
Dig (1951)
Live at the Barrel, Vol. 2 (1952)
Miles Davis Plays the Compositions of Al Cohn (1952)
Miles Davis Quartet (1953)
Blue Haze (1953)
Miles Davis Quintet (1954)
Bags' Groove (1954)
Miles Davis Quintet (1954)
Miles Davis and the Modern Jazz Giants (1954)
Walkin' (1954)
Green Haze (1955)
The Musings of Miles (1955)
Odyssey (1955)
Milt and Miles (1955)
Miles Davis and Milt Jackson Quintet/Sextet (1955)
Circle in the 'Round (1955)
Cookin' (1955)
The New Miles Davis Quintet (1955)
Miles (1955)
Miles Davis & Horns 51-53 (1955)
Workin' (1956)
Steamin' (1956)
Relaxin' (1956)
Cookin' with the Miles Davis Quintet (1956)
'Round About Midnight (1956)
Miles Ahead (1957)
L'ascenseur pour L'Échafaud (1957)
Milestones (1958)
Porgy and Bess (1958)
Kind of Blue (1959)
Sketches of Spain (1960)
Directions (1960)
Someday My Prince Will Come (1961)
Quiet Nights (1962)
Sorcerer (1962)
Seven Steps to Heaven (1963)
E.S.P. (1965)
Miles Smiles (1966)
Nefertiti (1967)
Miles in the Sky (1968)
Filles de Kilimanjaro (1968)
In a Silent Way (1969)
Bitches Brew (1970)
Big Fun (1969)
A Tribute to Jack Johnson (1971)
On the Corner (1972)
Get Up With It (1972)
We Want Miles (1981)
The Man with the Horn (1981)
Star People (1982)
Decoy (1983)
Aura (1985)
You're Under Arrest (1986)
Tutu (1986)
Music from Siesta (1986)
Amandla (1989)
Dingo (1990)
Doo-Bop (1991)
Discos ao vivo
Miles & Monk at Newport (1955)
Miles Davis at Newport 1958 (1958)
Olympia 11 Octobre 1960, Pt. 1 (1960)
Olympia 11 Octobre 1960, Pt. 2 (1960)
Friday at the Blackhawk (1960)
Friday at the Blackhawk, Vol. 2 (1960)
Friday and Saturday Nights in Person (1961)
In Person: Friday Night at the Blackhawk (1961)
Miles Davis in Person, Vol. 1 (1961)
Miles Davis in Person, Vol. 2 (1961)
In Person: Saturday Night at the Blackhawk (1961)
At Carnegie Hall (1961)
Miles in St Louis (1961)
In Person at the Blackhawk (1961)
Miles at Antibes (1962)
Miles in Antibes (1963)
Four & More (1964)
My Funny Valentine (1964)
Miles in Tokyo (1964)
Miles in Berlin (1964)
Miles Davis in Europe (1964)
Live at the Plugged Nickel (1965)
In Berlin [live] Columbia (1966)
Live-Evil (1970)
Miles Davis at Fillmore: Live at the... (1970)
Black Beauty: Miles Davis at Fillmore West (1970)
Miles Davis at the Lincoln Center (1972)
Dark Magus (1974)
Pangaea (1975)
Agharta (1975)
Live A'Round the World (1988)
Miles in Montreux (1989)
Miles & Quincy (1991)
Green Dolphin Street (1992)
Newport Jazz Festival (1993)
On Green Dolphin Street (1999)
Miles Davis Live (2000)
Olympia 11 Juillet 1973 (2001)
At Newport 1958 (2001)
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