A Panela do Diabo é um
disco histórico por vários motivos: foi o último
LP de Raul Seixas e lançado dois dias antes de se falecimento,
ocorrido no dia 21 de agosto de 1989; foi o único trabalho
que Raul dividiu com alguém; e juntou duas gerações
de roqueiros baianos: Raul Seixas, o maior nome do rock brasileiro,
dono de uma carreira brilhante e cheia de acidentes e pessoais,
e Marcelo Nova, ex-líder do Camisa de Vênus e que
começava uma sólida carreira-solo, ao lado da banda
Envergadura Moral. Uma parceria que rendeu 50 shows, uma dezenas
de composições e um disco que nasceu clássico.
A
parceria de Raul Seixas e Marcelo Nova pode ser considerada uma
das mais importantes e emotivas na história do rock.
Era o encontro do ídolo,
já extremamente doente, enfrentando problemas com alcoolismo,
diabates, e um fã apaixonado por toda sua obra e que, quando
menino, assistia Raul Seixas nos teatros de Salvador, a bordo
do Raulzito e os Panteras.
Em entrevista ao jornalista
Luís Claudio Garrido, à Revista Bizz, publicada
em dezembro de 1989, Marcelo relembra como nasceu a parceria que
resultou em 50 discos e no disco A Panela do Diabo.
"Foi por etapas.
Primeiro, eu ia aos shows dele na Bahia - na época de Raulzito
e Seus Panteras - e, depois das apresentações, ia
até o palco apertar a mão dele. Ele nem me conhecia.
Muito tempo depois, o Camisa de Vênus estava tocando no
Circo Voador e ele foi ver. Chamei Raul para o palco e nós
tocamos, na base do improviso, um medley de rock´n´roll,
misturando 'Long Tall Sally' com 'Be-Bop-A-Lu-La' e 'Tutti Frutti'.
Eu estava tão emocionado que não conseguia cantar
nada, só ficava olhando. Depois disso, em 1984, fui ver
o último espetáculo dele em São Paulo, numa
danceteria que chamava Raio Laser. Quando terminou fui cumprimentá-lo,
e nos aproximamos, trocando endereços. Para minha surpresa,
num domingo, às 11 horas da manhã, Raul, Tony Osanah
e suas respectivas esposas batem na minha porta. Eu fiquei assim,
sem acreditar. Em 1986, o Camisa gravou "Ouro de Tolo".
No ano seguinte, a gente já se freqüentava mais e
fizemos "Muita Estrela, Pouca Constelação"
- eu compus a letra e ele, a música. Aí não
parou mais, até chegar setembro do ano passado, quando
ele teve mais uma crise de saúde e estava em condições
financeiras muito ruins, pelo fato de estar há cinco anos
sem trabalhar. Eu o convidei para fazer uma apresentação
na Bahia. Ele gostou do resultado, eu também, e combinamos
de fazer mais dois ou três espetáculos, que acabaram
virando cinqüenta."
Marcelo Nova estava no
auge da carreira com o Camisa de Vênus. em 1986, a banda
havia lançado o disco Correndo o Risco,
com mais de 300 mil cópias vendidas, graças aos
sucessos "Simca Chambord", "Só o Fim"
e "Deus me Dê Grana", além de uma versão
de "Ouro de Tolo", de Raul.
No ano seguinte, a banda
resolve editar o disco Duplo Sentido, um álbum
duplo e que trazia o sucesso "Muita Estrela, Pouca Constelação",
primeira composição da parceria Raul e Marcelo.
O LP teria uma vendagem
bem mais modesta - cerca de 40 mil cópias - e decretaria
o fim do grupo, ao menos, até 1996.
Após
o fim do Camisa, Marcelo iniciou uma carreira-solo, com a Envergadura
Moral - Johnny Chaves (teclados), Carlos Alberto Calasans (baixo),
Gustavo Mullem (guitarra) e Franklin Paollilo (bateria).
Os shows mostravam uma
realidade aterradora: inchado, sem forças e bebendo sem
parar, Raul Seixas era apenas uma sombra do que havia sido. Há
três anos sem subir num palco, Raul mostrava-se completamente
esgotado, aos 44 anos, contrastando com a energia ilimitada de
Nova, sete anos mais novo.
Após 50 shows realizados,
André Midani, chefe da WEA, os convidou para lançar
um disco. Imediatamente, os dois se trancaram em estúdio
e começaram a dar vida às músicas que já
vinham escrevendo.
A
Panela do Diabo é um disco simples de rock and
roll, simples, direto, feito com coração, com rock
e momentos mais leves.
Um LP com temas pesados,
mas tratados com ironia e acidez, uma marca comum entre Raul e
Marcelo.
O trabalho trazia 11 temas,
incluindo o sucesso "Carpinteiro do Universo", que puxou
as vendagens do álbum, superiores a 150 mil cópias
e que rendeu um disco de ouro.
Tragicamente, o LP foi
lançado no dia 19 de agosto de 1989, dois dias antes da
morte de Raul, encontrado morto, em sua cama, no apartamento que
residia em São Paulo.
Não são poucos
que enxergam um curioso paralelo com o projeto Traveling Wilburys,
que teve dois discos. Banda formada em 1988 por Bob Dylan, Roy
Orbison, George Harrison, Jeff Lynne e Tom Petty, viu Roy Orbison
participar apenas do primeiro LP, já que, meses depois
morreu de um enfarte, assim como Raul.
O LP trazia as seguintes
faixas:
Lado 1
1. "Be-Bop-A-Lula"
Gene Vincent / Bill "Sheriff Tex" Davis 0:20
2. "Rock 'n' Roll" Marcelo Nova / Raul Seixas 5:20
3. "Carpinteiro do Universo" Raul Seixas / Marcelo Nova
4:34
4. "Quando Eu Morri" Marcelo Nova 4:22
5. "Banquete de Lixo" Marcelo Nova / Raul Seixas 5:55
6. "Pastor João e a Igreja Invisível"
Raul Seixas / Marcelo Nova 3:37
Lado 2
1.
"Século XXI" Marcelo Nova / Raul Seixas 4:05
2 . "Nuit" Raul Seixas / Kika Seixas 4:27
3 . "Best Seller" Marcelo Nova / Raul Seixas 3:48
4 . "Você Roubou Meu Videocassete" Raul Seixas
/ Marcelo Nova 2:45
5 . "Cãibra no Pé" Raul Seixas / Marcelo
Nova 3:00
As composições
eram feitas como uma verdadeira dupla, com cada um opinando na
letra ou na música do outro.
Segundo Marcelo na mesma
entrevista, "foi um trabalho feito em parceria mesmo.
Eu o definiria como um disco de rock'n'roll. Dois homens de meia-idade
não poderiam fazer de conta a esta altura do campeonato.
Por isso, a gente decidiu abrir o disco cantando 'Be-Bop-A-Lu-La',
um rock dos anos 50, que era para ninguém ter dúvida
quanto à nossa intenção. "
Passados mais de 22 anos
do lançamento, o disco se encontra fora de catálogo
tanto em LP ou CD, como manda a maldita lei da indústria
fonográfica brasileira que privilegia o comercialismo vulgar
e burro, relegando aos sebos e colecionadores obras como essa.
A busca, talvez, torne
o disco mais interessante de ser ouvido e digerido. Passados 22
anos, Raul Seixas segue sem substitutos. Marcelo Nova ainda está
vivo e segue sua carreira. A Panela do Diabo é um disco
fiel às origens dos dois e um belo exemplo de rock brasileiro.
Que venha uma reedição.
Urgentemente.
Um abraço e até
a próxima coluna.
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