A
França sempre amou e cultuou o jazz dos Estados Unidos,
e em especial, músicos como Charlie Parker, Miles Davis
e todos aqueles que mudaram a cara da música no século
passado. Há quem diga, e até com alguma razão,
que eles eram muito mais respeitados na Europa do que na América
natal. Para os europeus, Bird era uma quase divindade. Na América,
apenas um negro talentoso, mas que tocava uma música estranha
e se entupia de drogas e que mereceu o trágico fim que
teve, com apenas 34 anos de vida.
Bem, nem tanto a terra
e nem tanto o céu. Bird era idolatrado na Europa por sua
arte, mas sem as sarjetas, as drogas e o mundo violento em que
viveu, talvez não fosse o verdadeiro Bird. E esse é
um dos aspectos mais admiráveis desse filme. Round
Midnight fala de uma salvação, ou uma tentativa.
Um francês de nome François Cluzet tenta salvar seu
herói, o saxofonista Dale Turner, da vida ordinária
que leva durante uma temporada do músico em Paris, no ano
de 1959.
Dale Turner é vivido
pelo extraordinário músico Dexter Gordon, que vive
um personagem que mais parece um cruzamento de Charlie Parker,
Miles Davis e Chet Baker. Gordon impressionou já que nunca
tinha trabalhado como ator profissionalmente antes, e muito menos
estrelado um filme.
Desesperado por ver alguém
tão talentoso se auto-destruindo, Cluzet tenta salvar a
vida de Turner, que não importa de ser ajudado. O filme
mostra a luta de um fã tentando salvar seu ídolo
de um fim do qual ele já nasceu preso. A volta de Turner
para Nova York, após ser tão paparicado em Paris,
só fecha o final que Cluzet tanto temia: Turner volta para
a maior metrópole norte-americana para algumas datas e
encontrar a morte por overdose.
Se a produção
de 1986, dirigida com muita sensibilidade e elegância por
Bertrand Tavernier é um primor, a ponto de Dexter Gordon,
o "ator amador" ter concorrido ao Oscar de melhor ator,
a música é um dos grandes lançamentos da
história, no gênero, e levou, com toda justiça,
o Oscar de melhor trilha-sonora. E toda essa beleza ficou nas
mãos de um verdadeiro conhecedor do jazz e um de seus melhores
músicos: o pianista Herbie Hancock.
Round Midnight
focaliza o jazz daquela época, com predominância
no cool jazz. Vale lembrar que em 1959 foi lançado
a cartilha do estilo, o indispensável e insuperável,
Kind Of Blue, de Miles Davis e que em seu sexteto
trazia músicos do quilate de John Coltrane, Bill Evans
e Julian "Cannonball" Adderley.
A música é
uma homenagem a esses anos, os "anos dourados" de jazz,
mas que nas próprias palavras de Miles, só tinha
de dourado para quem ouvia em casa, no conforto de sua poltrona.
Porque nessa época ser músico, e ainda negro e de
jazz, não era nada cool.
O diretor Tavernier conta
que convidou Hancock para o projeto, que aceitou na hora. Mas
o diretor impôs uma condição: a música
deveria ser toda gravada "ao vivo", com todos ao mesmo
tempo no estúdio. Após anos de negociações
com os estúdios, conseguiu o ok e contatou Hancock para
realizarem um sonho de infância do diretor. O pianista reafirmou
o desejo, especialmente após se apaixonar pelo roteiro.
Para a empreitada, Hancock
chamou o creme do jazz, uma seleção de tirar o fôlego.
Segue a lista: do ex-quinteto de Miles Davis da década
de 60 e no qual Hancock havia tocado, só faltou o próprio
Miles, já que convidou o baixista Ron Carter, o baterista
Tony Williams e saxofonista Wayne Shorter. Herbie convidou ainda
o cantor Bobby McFerrin, o guitarrista John McLaughlin, o trumpetista
e cantor Chet Baker, o baixista Billy Higgins, o trumpetista Cedar
Walton, o saxofonista Freddie Hubbard, o vibrafonista Bobby Hutcherson,
a cantor Lonette McKee, além do próprio saxofonista
tenor Dexter Gordon, e lógico o próprio Herbie nas
teclas. O diretor pediu, ainda, e Hancock concordou, em chamar
o baixista francês Pierre Michelot.
O resultado é uma
música hipnótica, fluida, lenta e perfeita. O disco
abre com uma versão de "Round Midnight", em que
o trio Herbie Hancock, Tony Williams e Ron Carter é coadjuvante
de um solo de trumpete feito por Bobby McFerrin...com as cordas
vocais!
"Body And Soul",
outro standard do jazz, tem a participação de Dexter
Gordon e guitarra de John McLaughlin, criando texturas delicadas.
Herbie Hancock fez mais
do que "apenas" organizar a gravação,
selecionar os músicos, as canções e ensaiar
todos. Ainda escreveu três belas obras para a empreitada:
"Bérangère's Nightmare", "Still Time"
e "Chan's Song (Never Said)", que encerra com o mesmo
quarteto que abriu o disco e com o mesmo truque de McFerrin.
O disco ainda contém
momentos preciosos como Chet Baker cantando com sua voz combalida
pela vida e pelas drogas, o clássico "Fair Weather",
Lonette McKee cantando "How Long Has this Been Going On?",
no mesmo estilo Ella Fitzgerald. A lamentar apena que o CD tenhas
apenas 11 faixas, embora em algumas versões tenha uma mais,
fechando com a mesma "Round Midnight" que o abre.
Mais do que uma excelente
trilha sonora, Round Midnight traz músicas
que deveriam ser ensinadas às pessoas e ouvidas mais vezes.
E, antes que me acusem de elitista, saiba que existe esse CD ainda
aqui, no Brasil. Por isso, corra atrás e dê um presente
a você e para quem gosta. E não deixe de ver o filme,
um dos grandes clássicos dos anos 80.
|