71 - The Specials - Specials


O movimento punk não foi só feito de barulho e raiva. Algumas bandas souberam misturar todo seu protesto contra o governo conservador com ritmos leves e dançantes. E nem por isso eram menos contundentes do que Clash, Sex Pistols, Buzzcocks ou The Jam. Duas bandas souberam casar à perfeição: Madness e Specials. Essa última, um octeto formado por seis garotos brancos e dois negros, foi um dos melhores porta-vozes da nova onda inglesa, e ajudou a disseminar o reggae e o ska, que estavam para o punk assim como o blues para o rock dos anos 60. O principal articulador era o tecladista Jerry Dammers, amigo de Joe Strummer e simpatizante dos esquerdistas. Seu disco de estréia de 1979, intitulado apenas Specials, já nasceu clássico, mas para melhorar foi produzido por um dos nomes mais importantes, inovadores, criativos, geniais e carismáticos que apareceu no novo cenário: Elvis Costello.


Em 1977, na cidade de Coventry, na Inglaterra, Jerry Dammers (teclados), Horace Panter (baixo), Lynval Golding (guitarra), Silverton Hutchison (bateria) e Tim Strickland (vocais) formaram o The Automatics. O som era uma mistura ainda não muito conhecida entre o punk com o reggae. O grupo logo mudou a formação, pois Terry Hall entrou no lugar de Tim, e Roody Byers assumiu a outra guitarra, ao lado de Lynval.



Animado com o que haviam gravado, Jerry saiu atrás de uma gravadora. Mas a tarefa mostrou-se inglória e não conseguiu nenhum contato. A maior desculpa é que a mistura dos gêneros soava muito agressiva para o consumidor médio inglês. Jerry não se fez de rogado e continuou a fazer contatos, entre eles o roadie do Clash, Steve Connoly. Através de Connoly, conseguiu uma chance de conversar com o empresário da banda, Bernie Rhodes. A fita acabou chamando a atenção do saudoso Joe Strummer, que adorou o trabalho do grupo e acabaram convidados para abrir dois shows do Clash na turnê de 1978, intitulada “On Parole”. O Automatics acabou virando uma sensação e fazendo todos os shows da mini-excursão, que correu o país entre Junho e Julho daquele ano. Aliás, a banda agora tinha mudado de nome: The Special AKA The Coventry Automatics, até tornarem-se somente The Special AKA e ganha mais um integrante: Neville Staple.

Apesar da boa estréia em palco, Bernie achou que o Special AKA ainda estava muito cru e resolveu ajudar a banda, deixando que ficassem seis meses ensaiando em uma propriedade do empresário, em Londres. O lugar era um buraco imenso, com ratos andando por todos os cômodos e sete integrantes da grupo dividiam um minúsculo dormitório.

Após a experiência com Rhodes, o grupo resolveu voltar correndo para Coventry e ficaram mas um tempo ensaiando incessantemente. Foi nesse tempo, que a banda resolveu a utlizar o ska em seu som. Mas nem tudo ia bem. Silverton começou a falta dos ensaios, alegando que necessitava de um emprego que desse algum dinheiro para poder sustentar sua família. Alheio às dificuldades, Jerry resolve que era necessário adotar um novo visual para o grupo. Conversando com o amigo de velha data, Paul Simonon, baixista do Clash, começa a idealizar o que seria o look do Specials.

“Eu queria algo diferente, algo que parecesse meio mod e um pouco dos “rude boys” que existia nas Índias Ocidentais. Ao mesmo tempo que conversava com Paul sobre isso, eu e Horace começamos a bolar um logotipo para o selo que eu queria montar, o 2 Tone. Quando decidimos que a base seria uma capa de um antigo disco do Peter Tosh e que iríamos colorir de preto e branco, nasceu o personagem Walt Jabsco e todo o conceito ficou pronto”, lembra Jerry.

Com um selo pronto, visual definido e uma nova canção saindo do forno “Gangsters”, o grupo saiu pedindo dinheiro para amigos, parentes, paróquia da esquina com intenção de bancar a gravação. Mas havia um outro problema: Silverton havia saído de vez do grupo e a banda não tinha um baterista. A solução veio através de um amigo de Jerry, John “Brad” Bradbury, que foi escalado provisoriamente para o single e agradou tanto que virou membro fixo.
“Gangstes” foi inspirada na canção de Prince Buster “Al Capone”, de 1964. O grupo mudou a primeira frase da canção de Prince que era “Al Capones Guns Dont Argue” para “Bernie Rhodes Guns Dont Argue”, numa clara crítica ao empresário do Clash e que segundo o pessoal do Specials era uma figura tão nefasta quanto o mítico fora-da-lei de Chicago. Como não houve dinheiro para gravar sequer o lado B do primeiro single, aproveitaram uma canção chamada “The Selecter” do grupo do mesmo nome e no qual Brad havia participado. Nascia assim o primeiro compacto do novo selo, o 2 Tone. Produzido ao custo de 700 libras e sendo distribuído pela independente Rough Trade, uma primeira tiragem de 5000 cópia de “Gangsters” foi logo esgotada, e o single começou uma escalada pela parada de sucessos, sendo que em seis meses atingiu o sexto lugar das mais tocadas na Inglaterra.

Aproveitando o bom momento, Jerry mostrou-se novamente um habilidoso articulador, conseguindo um contrato com o empresário do The Damned, Rick Rogers, para abrir as apresentações da banda, e roubando a cena.

Aliás, a história de como nasceu “Gangsters” é bastante curiosa e vale conhecer. Com a palavra, Lynval: “Depois que participamos da “On Parole Tour” com o Clash, perguntamos ao Bernie Rhodes se ele podia nos ajudar. Ele disse que topava e nos mandou para Paris, para que ganhássemos um pouco mais de experiência já que considerava a banda muito crua. Ele alugou uma van, colocou nosso equipamento e nos mandou para Dover. Nós achávamos que ele ia conosco, mas de repente ele trouxe Mickey Foot, seu braço direito. Quando chegamos em Dover, mandou descarregarmos a van, deu uma grana para Mickey, nos abandonou e voltou para Londres. Tivemos que carregar tudo até a barca que faríamos a viagem até a França até aparecer um outro problema em Calais: quando mostramos nossos passaportes, os franceses cismaram com Silverton porque ele era de Barbados e não o deixaram entrar! Como ele não tinha permissão para trabalhar o despacharam para Londres novamente. Ele teve que retornar, conseguir o visto de trabalho enquanto nós fomos encontrar o cara que o Bernie tinha contratado para nos buscar e carregar nosso equipamento. Era uma daquelas peruas mínimas e não havia como entrar sete homens e mais os instrumentos e resolvemos que algum de nós faríamos o percurso Calais-Paris pedindo carona. Eu pensei em sair, mas quando percebi que era a primeira vez em uma terra estranha, que eu era negro em um país com sérios problemas raciais, disse para Neville que nem matando sairia da perua. Nos encolhemos entre os instrumentos e fomos até Paris parecendo sardinhas. Terry, Roddy, Jerry e Horace acabaram tendo que pedir carona e o Jerry deu uma puta sorte conseguindo ir até Paris em um Rolls Royce! Enfim, acabamos nos encontrando em Paris e fomos para o hotel. Era uma residência perto do local que faríamos nosso show e minutos depois que nos instalamos, veio uma mulher batendo em nossa porta e perguntando se éramos ingleses. Disse que sim e ela começou a reclamar que uma banda da Inglaterra havia destruído o hotel quando ficaram lá (foram os Damned). Do nada apareceram dois caras, pegaram minha guitarra novinha junto com a do Roddy e disseram que só nos devolveriam quando pagássemos os prejuízo que eles tinham deixado no hotel. A mulher berrava “ou pagam ou ficarão sem as guitarras”, e achamos que era alguma brincadeira, mas vimos que era sério. Comecei a conversar com ela até perder a paciência e disse que se estragasse minha Telecaster creme novinha, que era tudo para mim, eu ia ficar puto e não ia aceitar ser roubado. Ela acabou nos expulsando do hotel e chamou a polícia, que chegaram aos montes e berravam “vocês aí, ingleses e jamaicanos!” e nos prenderam. Eu ficava berrando “quero minha guitarra” e o responsável pelo clube que íamos tocar apareceu para nos socorrer. Ele demorou uns 10 minutos para chegar até lá e eu berrando “quero minha guitarra!”. Depois que saímos da delegacia fomos para o clube e todo nosso equipamento estava lá, inclusive minha amada guitarra. Eu perguntei como eles tinham conseguido e me explicaram que apontaram uns revólveres na cara dos policiais e exigiram tudo de volta. “Caralho, vocês são gangsters”, disse! E aí nasceu a canção e colocamos o Bernie porque ele foi o culpado de tudo. E a canção acabou falando dessa viagem. Mas na verdade ela não seria o nosso primeiro single. “Nite Klub” era a nossa primeira canção, mas quando fomos gravar não conseguimos faze-la e acabamos compondo “Gangsters”. Silverton tinha saído do grupo e Jerry chamou Brad no dia da gravação! Foi tudo muito esquisito!”

A letra da canção é esta:

Gangsters


Bernie Rhodes knows Don't Argue

Why must you record my phone calls?
Are you planning a bootleg LP?
Said you've been threatened by gangsters
Now it's you, that's threatening me

Can't fight corruption with con tricks
They use the law to commit crime
And I dread, dread to think what the future will bring
When we're living in gangster time

Don't call me scar face

Can't interrupt while I'm talking
Or they'll confiscate all your guitars
and catch 22 says if I sing the truth
they won't make me an overnight star

Don't offer us legal protection
They use the law to commit crime
I dread to think what the future will bring
When we're living in gangster time

Bernie Rhodes knows Don't Argue

“Gangsters” chamou a atenção de vários selos grandes eles, entre eles, o Rolling Stone Records, do grupo de Mick Jagger, que foi assistir um show do grupo no Clube Moonlight em maio de 1979 louco para assinar com o grupo. Jerry, no entanto, queria continuar com a identidade do selo 2 Tone, e por fim, aceitaram um contrato com a Chrysalis Records, que se comprometeu a lançar 10 singles da 2 Tone por ano, enquanto o Specials assinou um contrato para cinco álbuns.

Dentro de uma grande gravadora, a canção acabou alcançando a sexta colocação na parada e a banda partiu para uma excursão de oito semanas pelo país, e de quebra, participaram do programa “Radio One” de John Peel e fizeram sua primeira aparição no programa de televisão, “Top Of The Pops”.

Enquanto isso, a 2 Tone assinava com a primeira banda para seu casting, The Selecter, que havia cedido a canção para o primeiro single do grupo e logo assinaria com outro grupo que acabaria fazendo até mais sucesso que o próprio Specials: Madness (mas isso é assunto para outra coluna).

Enquanto Elvis Costello era definido com o produtor do primeiro álbum do Specials (que já não era mais chamado de The Special AKA), a banda partiu em sua primeira excursão pela Europa em alguns festivais, viajando com o Police e o Cure e ofuscando as duas bandas. Costello, que era um fã incondicional do Specials, começou a trabalhar no novo single “A Message To You, Rudy”. Lançado em outubro de 1979 e tendo “Nite Klub” como lado B, a canção marca a entrada de dois membros honorários no grupo, os trumpetistas Rico Rodriguez e Dick Cuthell. Rico era uma figura lendária do movimento ska na Inglaterra, tendo tocado com Prince Buster, The Skatalites e Laurel Aitken.

 

capa do disco SpecialsUm mês depois, é lançado Specials, primeiro LP do grupo, que entrou direto nas paradas na sétima posição. Para celebrar o feito, a 2 Tone agendou 40 datas para shows no país com as três bandas do elenco, Specials, Selecter e Madness. Se os shows foram um sucesso absoluto de público, os conflitos raciais explodiram durante as apresentações, chamando mais atenção para os incidentes do que para as bandas. Para diminuir um pouco a tensão da excursão, o selo decidiu colocar a banda de Kevin Rowland, Dexys Midnight Runners no lugar do Madness. Alguns fãs chiaram, já que a banda de Kevin era um grupo de soul e nada havia com o ska, mas Jerry e o selo rebatiam dizendo que foi a forma encontrada para diminuir os confrontos cada vez mais violentos. Encerrando o ano, a banda foi convidada para fazer parte de um concerto da Unicef, intitulado “Concert for Kampuchea”, ao lado de nomes consagrados como The Who, Queen, Paul McCartney, The Clash, Elvis Costello, entre outros.

Sem parar, Jerry aproveitou o fato de estar em Birmingham, lar do Dexy’s e assinou com outra banda local, The Beat. Seu single de estréia, uma antiga canção do soulman Smokey Robinson “Tears of Clown” foi um sucesso, rendendo mais dinheiro para a 2 Tone, e fazendo com que o Beat montasse o seu próorio selo, “Go Feet”.

EP ao vivoEm janeiro de 1980, a banda estava sendo base de um documentário chamado 2 Tone e sendo o destaque do programa “Rock Goes to College Show”, e lançaram seu terceiro single, Too Much Too Young, que era na verdade um EP com cinco canções gravadas ao vivo: “Too Much Too Young”' e “Guns of Navarone' foram gravadas em Londres; “Skinhead Symphony”, que era um medley de “Long Shot Kick The Bucket”, “Liquidator” e 'Skinhead Moonstomp' foi gravada na terra-natal da banda, em Coventry, no Tiffany’s.


Finalmente, depois de muito sucesso na Inglaterra e na Europa, o grupo partiu para sua primeira viagem pela América, de três semanas. Apesar de ser o grupo de ska mais importante da Europa, acabaram servindo de banda suporte do Police, que era uma coqueluche na América. Apesar de não querer posar como uma banda de rock, Jerry pediu para que os empresários checassem os locais que o grupo ficaria hospedados e se irritou ao descobrir que muitos eram verdadeiros pardieiros. Outro incidente que aborreceu ainda mais o tecladista aconteceu no famoso clube de Los Angeles, Whiskey A Go Go, que fora pintado em seu lado externo de preto e branco. Apesar de ser uma boa publicidade para o selo, Jerry temeu que isso acabasse marcando a banda, criando uma imagem negativa. Jerry não conseguia esquecer os incidentes da Inglaterra. O Specials acabou tendo vários problemas com a mídia norte-americana. O único consolo é que o prestígio continuava intacto na Inglaterra, a ponto de “Too Much Too Young” ocupar o topo das paradas.

Em Maio, o grupo lança o quarto single “Rat Race”, tendo “Rude Buoys Outa Jail”, no lado B. Em Junho, a banda parte uma série de 12 apresentações batizadas de 'Seaside Specials' com os novos contratados da 2 Tone, The Bodysnatchers, abrindo. Começa uma briga interna entre Jerry e Roddy, que havia escrito “Rat Race”. Mesmo assim, o grupo encerrou a mini-excursão de forma vitoriosa e voltaram para os Estados Unidos como convidados do programa humorístico “Saturday Night Live”. Em Julho, viajaram para o Japão, e enfrentaram sérios problemas com a polícia em Osaka. O motivo foi um show considerado ilegal pelas autoridades locais e que acabou resultando numa séria batalha campal entre policiais e espectadores. Rick Rogers acabou preso e a banda ficou detida no hotel. Como represália, tiveram o segundo show na cidade cancelado, o mesmo acontecendo com o resto da turnê.

O diabo estava solto e quanto retornaram para o Reino Unido, Lynval foi covardemente agredido por manifestantes racistas, após assistir um show em Londres. Lynval acabou contando seu pavor e medo na canção “Why?”. O grupo voltou para Convetry para trabalhar no segundo disco. Foi quando as discussões entre Jerry e os demais integrantes do Specials atingiram níveis insuportáveis.
Jerry queria que o grupo continuasse a produzir, enquanto os outros reclamavam da extenuante vida na estrada promovendo o álbum de estréia.

Em setembro, lançam um novo single, “Stereotype”. Além de um novo rumo musical, a letra, assinada por Jerry, que criticava de forma dura os adolescentes britânicos. O lado B tinha “International Jet Set”, e mesmo alcançando a sexta posição nas paradas foi banida das rádios por usar a expressão “mijo”. Um semana depois, “More Specials” foi lançado e não teve a mesma acolhida da crítica e dos fãs.

O grupo continuaria com alguns problemas com a lei, briga de Jerry com os demais integrantes e algumas perseguições de cunho racista. No entanto, a banda já tinha cravado seu nome na música, não só por popularizarem e lançarem um selo especializado em ska, mas também pelo mérito de suas composições. Alguns lançamentos póstumos mostram a importância do grupo. Para terminar, deixo vocês com a letra de “A Message To You, Rudy”. Até a próxima coluna!

A Message To You, Rudy
Stop your messing around
Better think of your future
Time you straightened right out
Creating problems in town

Rudy, a message to you
Rudy, a message to you

Stop your fooling around
Time you straightened right out
Better think of your future
Else you'll wind up in jail

Rudy, a message to you
Rudy, a message to you

Stop your messing around
Better think of your future
Time you straightened right out
Creating problems in town

Rudy, a message to you
Rudy, a message to you
Rudy, a message to you
Rudy, a message to you

Discografia

Specials (1979)
More Specials (1980)
In the Studio (como Special AKA) (1984)
Singles (coletânea,1991)
The Selecter and The Specials: Live in Concert (1993)
King of Kings (com Desmond Dekker, 1993)
Today’s Specials (1995)
Too Much Too Young (1996)

 

Colunas