O movimento punk não foi só
feito de barulho e raiva. Algumas bandas souberam misturar todo
seu protesto contra o governo conservador com ritmos leves e dançantes.
E nem por isso eram menos contundentes do que Clash, Sex Pistols,
Buzzcocks ou The Jam. Duas bandas souberam casar à perfeição:
Madness e Specials. Essa última, um octeto formado por
seis garotos brancos e dois negros, foi um dos melhores porta-vozes
da nova onda inglesa, e ajudou a disseminar o reggae e o ska,
que estavam para o punk assim como o blues para o rock dos anos
60. O principal articulador era o tecladista Jerry Dammers, amigo
de Joe Strummer e simpatizante dos esquerdistas. Seu disco de
estréia de 1979, intitulado apenas Specials, já
nasceu clássico, mas para melhorar foi produzido por um
dos nomes mais importantes, inovadores, criativos, geniais e carismáticos
que apareceu no novo cenário: Elvis Costello.
Em 1977,
na cidade de Coventry, na Inglaterra, Jerry Dammers (teclados),
Horace Panter (baixo), Lynval Golding (guitarra), Silverton Hutchison
(bateria) e Tim Strickland (vocais) formaram o The Automatics.
O som era uma mistura ainda não muito conhecida entre o
punk com o reggae. O grupo logo mudou a formação,
pois Terry Hall entrou no lugar de Tim, e Roody Byers assumiu
a outra guitarra, ao lado de Lynval.
Animado
com o que haviam gravado, Jerry saiu atrás de uma gravadora.
Mas a tarefa mostrou-se inglória e não conseguiu
nenhum contato. A maior desculpa é que a mistura dos gêneros
soava muito agressiva para o consumidor médio inglês.
Jerry não se fez de rogado e continuou a fazer contatos,
entre eles o roadie do Clash, Steve Connoly. Através de
Connoly, conseguiu uma chance de conversar com o empresário
da banda, Bernie Rhodes. A fita acabou chamando a atenção
do saudoso Joe Strummer, que adorou o trabalho do grupo e acabaram
convidados para abrir dois shows do Clash na turnê de 1978,
intitulada “On Parole”. O Automatics acabou virando
uma sensação e fazendo todos os shows da mini-excursão,
que correu o país entre Junho e Julho daquele ano. Aliás,
a banda agora tinha mudado de nome: The Special AKA The Coventry
Automatics, até tornarem-se somente The Special AKA e ganha
mais um integrante: Neville Staple.
Apesar da boa estréia
em palco, Bernie achou que o Special AKA ainda estava muito cru
e resolveu ajudar a banda, deixando que ficassem seis meses ensaiando
em uma propriedade do empresário, em Londres. O lugar era
um buraco imenso, com ratos andando por todos os cômodos
e sete integrantes da grupo dividiam um minúsculo dormitório.
Após a experiência
com Rhodes, o grupo resolveu voltar correndo para Coventry e ficaram
mas um tempo ensaiando incessantemente. Foi nesse tempo, que a
banda resolveu a utlizar o ska em seu som. Mas nem tudo ia bem.
Silverton começou a falta dos ensaios, alegando que necessitava
de um emprego que desse algum dinheiro para poder sustentar sua
família. Alheio às dificuldades, Jerry resolve que
era necessário adotar um novo visual para o grupo. Conversando
com o amigo de velha data, Paul Simonon, baixista do Clash, começa
a idealizar o que seria o look do Specials.
“Eu queria algo diferente,
algo que parecesse meio mod e um pouco dos “rude boys”
que existia nas Índias Ocidentais. Ao mesmo tempo que conversava
com Paul sobre isso, eu e Horace começamos a bolar um logotipo
para o selo que eu queria montar, o 2 Tone. Quando
decidimos que a base seria uma capa de um antigo disco do Peter
Tosh e que iríamos colorir de preto e branco, nasceu o
personagem Walt Jabsco e todo o conceito ficou pronto”,
lembra Jerry.
Com um selo pronto, visual
definido e uma nova canção saindo do forno “Gangsters”,
o grupo saiu pedindo dinheiro para amigos, parentes, paróquia
da esquina com intenção de bancar a gravação.
Mas havia um outro problema: Silverton havia saído de vez
do grupo e a banda não tinha um baterista. A solução
veio através de um amigo de Jerry, John “Brad”
Bradbury, que foi escalado provisoriamente para o single e agradou
tanto que virou membro fixo.
“Gangstes” foi inspirada na canção de
Prince Buster “Al Capone”, de 1964. O grupo mudou
a primeira frase da canção de Prince que era “Al
Capones Guns Dont Argue” para “Bernie Rhodes Guns
Dont Argue”, numa clara crítica ao empresário
do Clash e que segundo o pessoal do Specials era uma figura tão
nefasta quanto o mítico fora-da-lei de Chicago. Como não
houve dinheiro para gravar sequer o lado B do primeiro single,
aproveitaram uma canção chamada “The Selecter”
do grupo do mesmo nome e no qual Brad havia participado. Nascia
assim o primeiro compacto do novo selo, o 2 Tone.
Produzido ao custo de 700 libras e sendo distribuído pela
independente Rough Trade, uma primeira tiragem de 5000 cópia
de “Gangsters” foi logo esgotada, e o single começou
uma escalada pela parada de sucessos, sendo que em seis meses
atingiu o sexto lugar das mais tocadas na Inglaterra.
Aproveitando o bom momento,
Jerry mostrou-se novamente um habilidoso articulador, conseguindo
um contrato com o empresário do The Damned, Rick Rogers,
para abrir as apresentações da banda, e roubando
a cena.
Aliás, a história
de como nasceu “Gangsters” é bastante curiosa
e vale conhecer. Com a palavra, Lynval: “Depois que participamos
da “On Parole Tour” com o Clash, perguntamos ao Bernie
Rhodes se ele podia nos ajudar. Ele disse que topava e nos mandou
para Paris, para que ganhássemos um pouco mais de experiência
já que considerava a banda muito crua. Ele alugou uma van,
colocou nosso equipamento e nos mandou para Dover. Nós
achávamos que ele ia conosco, mas de repente ele trouxe
Mickey Foot, seu braço direito. Quando chegamos em Dover,
mandou descarregarmos a van, deu uma grana para Mickey, nos abandonou
e voltou para Londres. Tivemos que carregar tudo até a
barca que faríamos a viagem até a França
até aparecer um outro problema em Calais: quando mostramos
nossos passaportes, os franceses cismaram com Silverton porque
ele era de Barbados e não o deixaram entrar! Como ele não
tinha permissão para trabalhar o despacharam para Londres
novamente. Ele teve que retornar, conseguir o visto de trabalho
enquanto nós fomos encontrar o cara que o Bernie tinha
contratado para nos buscar e carregar nosso equipamento. Era uma
daquelas peruas mínimas e não havia como entrar
sete homens e mais os instrumentos e resolvemos que algum de nós
faríamos o percurso Calais-Paris pedindo carona. Eu pensei
em sair, mas quando percebi que era a primeira vez em uma terra
estranha, que eu era negro em um país com sérios
problemas raciais, disse para Neville que nem matando sairia da
perua. Nos encolhemos entre os instrumentos e fomos até
Paris parecendo sardinhas. Terry, Roddy, Jerry e Horace acabaram
tendo que pedir carona e o Jerry deu uma puta sorte conseguindo
ir até Paris em um Rolls Royce! Enfim, acabamos nos encontrando
em Paris e fomos para o hotel. Era uma residência perto
do local que faríamos nosso show e minutos depois que nos
instalamos, veio uma mulher batendo em nossa porta e perguntando
se éramos ingleses. Disse que sim e ela começou
a reclamar que uma banda da Inglaterra havia destruído
o hotel quando ficaram lá (foram os Damned). Do nada apareceram
dois caras, pegaram minha guitarra novinha junto com a do Roddy
e disseram que só nos devolveriam quando pagássemos
os prejuízo que eles tinham deixado no hotel. A mulher
berrava “ou pagam ou ficarão sem as guitarras”,
e achamos que era alguma brincadeira, mas vimos que era sério.
Comecei a conversar com ela até perder a paciência
e disse que se estragasse minha Telecaster creme novinha, que
era tudo para mim, eu ia ficar puto e não ia aceitar ser
roubado. Ela acabou nos expulsando do hotel e chamou a polícia,
que chegaram aos montes e berravam “vocês aí,
ingleses e jamaicanos!” e nos prenderam. Eu ficava berrando
“quero minha guitarra” e o responsável pelo
clube que íamos tocar apareceu para nos socorrer. Ele demorou
uns 10 minutos para chegar até lá e eu berrando
“quero minha guitarra!”. Depois que saímos
da delegacia fomos para o clube e todo nosso equipamento estava
lá, inclusive minha amada guitarra. Eu perguntei como eles
tinham conseguido e me explicaram que apontaram uns revólveres
na cara dos policiais e exigiram tudo de volta. “Caralho,
vocês são gangsters”, disse! E aí nasceu
a canção e colocamos o Bernie porque ele foi o culpado
de tudo. E a canção acabou falando dessa viagem.
Mas na verdade ela não seria o nosso primeiro single. “Nite
Klub” era a nossa primeira canção, mas quando
fomos gravar não conseguimos faze-la e acabamos compondo
“Gangsters”. Silverton tinha saído do grupo
e Jerry chamou Brad no dia da gravação! Foi tudo
muito esquisito!”
A letra da canção
é esta:
Gangsters
Bernie Rhodes knows Don't Argue
Why must you record
my phone calls?
Are you planning a bootleg LP?
Said you've been threatened by gangsters
Now it's you, that's threatening me
Can't fight corruption
with con tricks
They use the law to commit crime
And I dread, dread to think what the future will bring
When we're living in gangster time
Don't call me scar
face
Can't interrupt
while I'm talking
Or they'll confiscate all your guitars
and catch 22 says if I sing the truth
they won't make me an overnight star
Don't offer us
legal protection
They use the law to commit crime
I dread to think what the future will bring
When we're living in gangster time
Bernie Rhodes knows
Don't Argue
“Gangsters”
chamou a atenção de vários selos grandes
eles, entre eles, o Rolling Stone Records, do grupo de Mick Jagger,
que foi assistir um show do grupo no Clube Moonlight em maio de
1979 louco para assinar com o grupo. Jerry, no entanto, queria
continuar com a identidade do selo 2 Tone, e
por fim, aceitaram um contrato com a Chrysalis Records, que se
comprometeu a lançar 10 singles da 2 Tone
por ano, enquanto o Specials assinou um contrato para cinco álbuns.
Dentro de uma grande gravadora,
a canção acabou alcançando a sexta colocação
na parada e a banda partiu para uma excursão de oito semanas
pelo país, e de quebra, participaram do programa “Radio
One” de John Peel e fizeram sua primeira aparição
no programa de televisão, “Top Of The Pops”.
Enquanto isso, a 2 Tone
assinava com a primeira banda para seu casting, The Selecter,
que havia cedido a canção para o primeiro single
do grupo e logo assinaria com outro grupo que acabaria fazendo
até mais sucesso que o próprio Specials: Madness
(mas isso é assunto para outra coluna).
Enquanto Elvis Costello
era definido com o produtor do primeiro álbum do Specials
(que já não era mais chamado de The Special AKA),
a banda partiu em sua primeira excursão pela Europa em
alguns festivais, viajando com o Police e o Cure e ofuscando as
duas bandas. Costello, que era um fã incondicional do Specials,
começou a trabalhar no novo single “A Message To
You, Rudy”. Lançado em outubro de 1979 e tendo “Nite
Klub” como lado B, a canção marca a entrada
de dois membros honorários no grupo, os trumpetistas Rico
Rodriguez e Dick Cuthell. Rico era uma figura lendária
do movimento ska na Inglaterra, tendo tocado com Prince Buster,
The Skatalites e Laurel Aitken.
Um
mês depois, é lançado Specials,
primeiro LP do grupo, que entrou direto nas paradas na sétima
posição. Para celebrar o feito, a 2 Tone
agendou 40 datas para shows no país com as três bandas
do elenco, Specials, Selecter e Madness. Se os shows foram um
sucesso absoluto de público, os conflitos raciais explodiram
durante as apresentações, chamando mais atenção
para os incidentes do que para as bandas. Para diminuir um pouco
a tensão da excursão, o selo decidiu colocar a banda
de Kevin Rowland, Dexys Midnight Runners no lugar do Madness.
Alguns fãs chiaram, já que a banda de Kevin era
um grupo de soul e nada havia com o ska, mas Jerry e o selo rebatiam
dizendo que foi a forma encontrada para diminuir os confrontos
cada vez mais violentos. Encerrando o ano, a banda foi convidada
para fazer parte de um concerto da Unicef, intitulado “Concert
for Kampuchea”, ao lado de nomes consagrados como The Who,
Queen, Paul McCartney, The Clash, Elvis Costello, entre outros.
Sem parar, Jerry aproveitou o fato de estar em Birmingham, lar
do Dexy’s e assinou com outra banda local, The Beat. Seu
single de estréia, uma antiga canção do soulman
Smokey Robinson “Tears of Clown” foi um sucesso, rendendo
mais dinheiro para a 2 Tone, e fazendo com que o Beat montasse
o seu próorio selo, “Go Feet”.
Em
janeiro de 1980, a banda estava sendo base de um documentário
chamado 2 Tone e sendo o destaque do programa “Rock Goes
to College Show”, e lançaram seu terceiro single,
Too Much Too Young, que era na verdade um EP
com cinco canções gravadas ao vivo: “Too Much
Too Young”' e “Guns of Navarone' foram gravadas em
Londres; “Skinhead Symphony”, que era um medley de
“Long Shot Kick The Bucket”, “Liquidator”
e 'Skinhead Moonstomp' foi gravada na terra-natal da banda, em
Coventry, no Tiffany’s.
Finalmente, depois de muito sucesso na Inglaterra e na Europa,
o grupo partiu para sua primeira viagem pela América, de
três semanas. Apesar de ser o grupo de ska mais importante
da Europa, acabaram servindo de banda suporte do Police, que era
uma coqueluche na América. Apesar de não querer
posar como uma banda de rock, Jerry pediu para que os empresários
checassem os locais que o grupo ficaria hospedados e se irritou
ao descobrir que muitos eram verdadeiros pardieiros. Outro incidente
que aborreceu ainda mais o tecladista aconteceu no famoso clube
de Los Angeles, Whiskey A Go Go, que fora pintado em seu lado
externo de preto e branco. Apesar de ser uma boa publicidade para
o selo, Jerry temeu que isso acabasse marcando a banda, criando
uma imagem negativa. Jerry não conseguia esquecer os incidentes
da Inglaterra. O Specials acabou tendo vários problemas
com a mídia norte-americana. O único consolo é
que o prestígio continuava intacto na Inglaterra, a ponto
de “Too Much Too Young” ocupar o topo das paradas.
Em Maio, o grupo lança
o quarto single “Rat Race”, tendo “Rude Buoys
Outa Jail”, no lado B. Em Junho, a banda parte uma série
de 12 apresentações batizadas de 'Seaside Specials'
com os novos contratados da 2 Tone, The Bodysnatchers, abrindo.
Começa uma briga interna entre Jerry e Roddy, que havia
escrito “Rat Race”. Mesmo assim, o grupo encerrou
a mini-excursão de forma vitoriosa e voltaram para os Estados
Unidos como convidados do programa humorístico “Saturday
Night Live”. Em Julho, viajaram para o Japão, e enfrentaram
sérios problemas com a polícia em Osaka. O motivo
foi um show considerado ilegal pelas autoridades locais e que
acabou resultando numa séria batalha campal entre policiais
e espectadores. Rick Rogers acabou preso e a banda ficou detida
no hotel. Como represália, tiveram o segundo show na cidade
cancelado, o mesmo acontecendo com o resto da turnê.
O diabo estava solto e
quanto retornaram para o Reino Unido, Lynval foi covardemente
agredido por manifestantes racistas, após assistir um show
em Londres. Lynval acabou contando seu pavor e medo na canção
“Why?”. O grupo voltou para Convetry para trabalhar
no segundo disco. Foi quando as discussões entre Jerry
e os demais integrantes do Specials atingiram níveis insuportáveis.
Jerry queria que o grupo continuasse a produzir, enquanto os outros
reclamavam da extenuante vida na estrada promovendo o álbum
de estréia.
Em setembro, lançam
um novo single, “Stereotype”. Além de um novo
rumo musical, a letra, assinada por Jerry, que criticava de forma
dura os adolescentes britânicos. O lado B tinha “International
Jet Set”, e mesmo alcançando a sexta posição
nas paradas foi banida das rádios por usar a expressão
“mijo”. Um semana depois, “More Specials”
foi lançado e não teve a mesma acolhida da crítica
e dos fãs.
O grupo continuaria com
alguns problemas com a lei, briga de Jerry com os demais integrantes
e algumas perseguições de cunho racista. No entanto,
a banda já tinha cravado seu nome na música, não
só por popularizarem e lançarem um selo especializado
em ska, mas também pelo mérito de suas composições.
Alguns lançamentos póstumos mostram a importância
do grupo. Para terminar, deixo vocês com a letra de “A
Message To You, Rudy”. Até a próxima coluna!
A Message To You, Rudy
Stop your messing around
Better think of your future
Time you straightened right out
Creating problems in town
Rudy, a message to you
Rudy, a message to you
Stop your fooling around
Time you straightened right out
Better think of your future
Else you'll wind up in jail
Rudy, a message to you
Rudy, a message to you
Stop your messing around
Better think of your future
Time you straightened right out
Creating problems in town
Rudy, a message to you
Rudy, a message to you
Rudy, a message to you
Rudy, a message to you
Discografia
Specials (1979)
More Specials (1980)
In the Studio (como Special AKA) (1984)
Singles (coletânea,1991)
The Selecter and The Specials: Live in Concert (1993)
King of Kings (com Desmond Dekker, 1993)
Today’s Specials (1995)
Too Much Too Young (1996)
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