163 - Them - 1945 a 1964


Muitos não sabem, mas antes de Van Morrison fazer fama em uma maravilhosa e difícil carreira-solo, ele teve uma grande banda na Irlanda. E foi com essa banda que gravou aquela que é sua maior canção, "Gloria", que curiosamente era o lado B de um compacto e virou um hino dos anos 60 e que deu ao Them o rótulo de "proto punk" (alguém reparou como estou usando esse rótulo nas últimas colunas?). E o mais incrível é que o Them fazia um som totalmente diferente do que Van buscou em sua carreira. Se, depois de abandonar o grupo, foi se inspirar no folk, no blues, no soul e no jazz e com letras místicas e introspectivas, no Them o que contava era sua voz rouca (muito semelhante a de Mick Jagger nos primeiros anos do Rolling Stones) e a ferocidade do grupo. Considerada uma das maiores e mais importantes bandas de garagem dos anos 60, o Them pode não ter sido tão grande como os Stones, por exemplo (e certamente não foi), mas tem uma carreira extremamente interessante. E a vida do Van? Bem, ela virá em capítulos e não deve demorar muito. Mas por horas vamos aos seus primeiros passos, que abordará nesse capítulo até a fundação do grupo...


Van MorrisonSe esse irlandês baixinho virou uma unanimidade mundial, muito se deve ao seu mais importante grupo dos anos 60, o Them. E, muito também se deve a seu pai, George Morrison. Aliás, foi graças a ele, George pai, que o pequeno George Ivan Morrison começou a amar a música norte-americana. Mas vamos do começo, lá pelo meio da década de 40...

1 - Nasce George Ivan Morrison

George Ivan Morrison nasceu no dia 31 de agosto de 1945 (está perto de completar 60 anos, portanto) em Belfast e viveu boa parte de sua vida na casa de número 125 da Hyndford Street, que virou um museu em 1991, apesar da ira do próprio cantor contra esse fato.

Desde pequeno Van sempre foi um menino quieto, rebelde e de pouco papo. E seu temperamento arredio começou a ter uma válvula de escape: a música. Seus pais, George e Violet eram dois amantes de música, mas enquanto a mãe gostava de dançar e cantar pela casa, o pai preferia ficar quieto no seu canto ouvindo seus discos. E aí começa a ser registrada a importância paterna na vida do jovem Van: seu pai, George Senior, era um eletricista apaixonado pelo jazz e pelos discos que chegavam da América e que ancoravam no porto de Belfast.

Assim como Liverpool, a cidade tinha como grande força seu porto. E era dentro desses navios que chegavam os discos do Novo Mundo que tanto fizeram as cabeças dos Morrisons, filho e pai. Seu pai costumava freqüentar lojas como a Atlantic Records atrás de discos de big bands e também de músicos de blues, como Muddy Waters, Hank Williams e, principalmente de Leadbelly, que seria a grande paixão de Van ainda na adolescência.

George cogitou mudar-se para a América após uma visita a alguns parentes em Detroit quando Van contava com cinco anos e tinha ido unicamente para preparar a mudança de sua família. Porém, acabou desistindo do projeto e continuaram a viver em Belfast. Nessa mesma época, sua mãe Violet desistiu de ser protestante e tornou-se Testemunha de Jeová por se dizer irritada com a religião. George pai resolveu não entrar em conflito com sua esposa mesmo quando ela arrastou o filho algumas vezes com ela.

LeadbellyNessa época, Van tinha dois modelos como artistas: Leadbelly e Mahalia Jackson. Mas se a cantora era o exemplo de uma mulher religiosa, quase santa, Leadbelly tinha uma história marcada pela dureza das prisões, violência e dor. Pois esse homem, que passou boa parte da vida na prisão, foi o primeiro herói de Van e foi com grande alegria que descobriu que vários jovens também idolatravam seu mestre.

"Primeiro foi Rory McEwan um cantor folk escocês, que começou a fazer uma boa versão de Leadbelly. Depois surgiu Lonnie Donegan tocando skiffle e de repente parecia que todos tocavam apenas Leadbelly! Ele era meu guru e quando alguém me enviou um pôster gigante dele com um violão de 12 cordas, eu o coloquei na parede e em todas as paredes de todos os lugares que eu fosse viver. Eu também tive outras influências - Muddy Waters, Sonny Terry, Josh White, Hank Williams e Carter Family. Meu estilo vocal nasceu ouvindo Carter Family e Leadbelly", confessa Van.

2 - Os primeiros passos na carreira

Desde menino, Van Morrison mostrava uma introspectividade enorme e dificilmente conseguia se relacionar com amigos. A única linha de comunicação era a música. Percebendo isso, seu pai o presenteou com um violão com pouco mais de 13 anos e, indiretamente selou o destino de seu filho com os estudos. "Para pessoas como eu, a escola é uma perda de tempo. Nada do que aprendi lá teve muita utilidade em minha vida."

Assim, Van saía pelas ruas de Belfast para se apresentar, particularmente em uma rua atrás do cinema Ambassador, onde tocava na frente de um pub e ganhava alguns trocados com isso. E se o mundo dançava ao som de Elvis Presley, outra paixão tomou conta da vida do jovem postulante a estrela: o skiffle.

O skiffle pode ser definido como uma mistura de country e blues, tocando com instrumentos simples - violões, banjos, baixo de pau e uma tábua de lavar roupa funcionando como percussão - e virou uma verdadeira febre nos anos 50 no Reino Unido com a explosão de Lonnie Donegan e Chris Barber, dois músicos com que Van gravaria um disco em homenagem ao estilo em 2000.

The Monarchs; Van é o segundo da esquerda para a direita, sentadoE, apesar de sua timidez, Van começou a correr atrás de músicos para montar um grupo. Os primeiros passos foram no grupo Deannie Sands and the Javelins, The Thunderbirds, The Four Jacks, entre outros nomes. Aliás, os nomes eram mudados constantementes. "Mudávamos de nomes como trocávamos de camisa. Se estivéssemos num clube e o dono dizia que aquele nome atraía gente, o mantínhamos. Se ele pedisse, mudávamos. Mas o nome que mais usamos foi mesmo Thunderbirds."

Nesse período o melhor amigo de Va era George Jones, dois anos mais velho e conta que Van entrou para o Thunderbolts (e não Thunderbirds) como convidado. "Ele chegou até nós em 1958 e nessa época tocávamos canções de Cliff Richards and the Shadows, entre outros. E Van chegou com toda sua bagagem de música norte-americana - Jerry Lee Lewis, Elvis Presley, Ray Charles - e nos conquistou. Ele tinha um conhecimento musical raro para um garoto daquela idade, mas tinha uma grande timidez e seus únicos amigos eram os discos de seus pais. O único denominador que nos aproximava era a música."

Os Javelins, assim como qualquer banda da época, possuía grande rotatividade em sua formação, porém a mais estável consistia em Billy McAllen, George Jones, Roy Kane e Van. Deannie Sands era o nome artístico de Evelyn Boucher, uma menina que havia tido pólio quando criança e que usava um aparelho ortopédico.

Jones conta que Van era uma pessoa altamente imprevisível e que tinha dias bons e dias em que simplesmente sumia. "Você nunca sabia o que Van iria aprontar. Um dia ele apareceu com um saxofone e começou a tocar apenas uma nota. Tentamos adaptar então nosso som ao sax e funcionou bem. Van começou a treinar muito o instrumento já que nessa época ele quase não cantava e dessa maneira nasceu o The Monarchs."

Na verdade, o nome do Monarchs era The Monarchs Showband. O showband foi um fenômeno tipicamente irlandês e englobava não apenas a música, mas o entretenimento de todas as formas e o público-alvo desses grupos eram as pessoas da áreas mais pobres, que tinham nessas bandas sua única diversão. Esses grupos eram obrigados a parar a música de vez em quando e conversar com a platéia e contar piadas e fazer covers de canções famosas. E, apesar desse tipo de coisa irritar Van, ele seguia participando da banda.

uma das primeiras formações do Them"Van era basicamente um rock-and-roller e se sentia entediado com esse esquema, mas ele era muito profissional para desistir", lembra George Jones.

Mas seus pais estavam preocupados em dar ao filho uma profissão e sua mãe ainda tentou colocá-los em vários cursos para que tivesse uma profissão. Tudo em vão. Em poucos dias, Van sumia das aulas. Mas ele precisava de dinheiro para poder continuar a seguir a vida de músico e montou então o único empreendimento quase sério que já teve: um pequeno negócio como limpador de janelas!

Van sempre foi um cara exagerado sobre suas memórias, mas ele jura que o negócio lhe rendeu boas perspectivas: "eu cheguei a ter empregados no meu negócio e era presidente da minha firma. Ela só fechou porque quando eu viajava, deixava com meu primo e ele não conseguiu tocar os negócios!"

Mas Van queria mesmo era tocar e começou a tocar em todos os lugares de Belfast. E, apesar de alguns clubes permitirem tocar rock and roll, os donos não gostavam muito de blues. "Blues era uma coisa exótica nessa época", lembra Van.

3 - Vivendo de música

Essa experiência começou a causar uma certa mudança na postura de Van. Embora continuasse quieto, tímido e arredio, em cima de um palco, ele mostrava uma energia nervosa, intensa e se sentia realmente em casa. Com isso, foi se tornando a grande estrela dos Monarchs, aumentando a atenção para a banda.

A primeira grande aventura dos Monarchs, no entanto, foi um grande fiasco. A banda havia sido convidada para uma excursão de seis semanas pela Escócia, mas ela acabou virando apenas um pesadelo.

"Tínhamos brigado com nossos pais, pedido demissão de nossos empregos e quando chegamos lá não havia nada. Só que tínhamos viajado sem dinheiro, estávamos famintos e tínhamos que bater de porta em porta para conseguirmos tocar para comer. Em uma certa noite, tínhamos apenas quatro ovos para seis pessoas comerem e pedimos para duas amigas fazerem uma sopa com isso", lembra Jones.

A situação ficou tão desesperadora que o grupo resolveu tentar a sorte em Londres. Os seis tinham que se revezar dentro da van para dormir e se alimentavam, quando muito, com achocolatados.

A sorte começou a mudar quando foram para Londres e foram apadrinhados pelo cantor escocês Don Charles, que tinha conseguido um razoável sucesso com algumas canções. Ele levou a banda para o Wimpy Bar, pagou uma refeição para os meninos, mandou lavar seus ternos e os apresentou ao empresário Ruby Bard, que procurava novos talentos. E através de Bard, os Monarchs fizeram os passos que os Beatles também fariam: tocar na Alemanha.

Os shows na Alemanha foram exaustivos, mas como o próprio Van contou anos depois, deu toda a cancha indispensável para sua vida profissional. "Em Hamburgo, eram sete entradas por noite, sete dias por semana. Você tocava uma hora, tinha um intervalo quando entravam as dançarinas, tocávamos mais uma hora, outro intervalo, etc. Fizeram uma festa-surpresa para meu aniversário e era um ambiente excitante e violento ao mesmo tempo, com bebidas, fumo, marinheiros americanos, mulheres. A gente recebia a cada noite e foi um tremendo aprendizado, apesar de quase morrermos de tanto trabalhar."

Quando foram para Frankfurt foram obrigados a tocar canções que os Beatles faziam, mas na versão idêntica ao grupo de Liverpool. "Era gozado, porque tínhamos muitas canções no nosso repertório que os Beatles também tocavam, mas como as pessoas de lá gostavam das versões deles, tivemos que imitá-los", lembra George Jones.

Em Frankfurt conheceram um empresário alemão chamado Ronald Kovacs que ofereceu 50 dólares para que eles gravassem uma versão de "Boozoo Hully Gully". Van lembra bem do dia: "foi a primeira vez que gravei um disco, mas nesse eu só toquei sax."

Apesar dos bons dias na Alemanha, a banda começou a se sentir incomodada com sua situação amadora e com o fato de terem pouco dinheiro. Para sair dessa situação, Van voltou para Londres, enquanto Jones começou a ganhar um excelente salário - 30 libras semanais - como baixista e voltaram para Belfast com um novo pianista, o norte-americano Jimmy Storey que sonhava conhecer Belfast.

Mas os Monarchs não resistiram aos dias duros e acabaram se dissolvendo. Van acabou ficando em Londres depois do final da banda, mas foi convencido pelos colegas Billy McAllen, Geordie Sproule e Herbie Armstrong a voltar para Belfast e montarem um novo grupo.

Van aceitou o convite, mas não queria mais saber de showbands, pois estava absolutamente seduzido pelas novas bandas inglesas, especialmente pelos Rolling Stones, que tocavam tudo aquilo que ele sonhava, r&b com influências de rock e blues. Mas quando Van voltou para Belfast ele encontrou uma certa resistência dos colegas.

"Usando cabelo comprido, ficava enaltecendo os Rolling Stones e dizia que só faríamos sucesso se fôssemos com ele para Londres. Nós já tínhamos começado nossas vidas adultas; alguns casando, comprando casas e não aceitamos a proposta. Mas ele conseguiu reunir uma banda chamada The Gamblers e os convenceu", conta George Jones.

Com Van, começou uma divisão em Belfast entre as showbands e os novos grupos. As showbands eram consideradas bandas de elite, faziam shows em lugares melhores, com equipamentos superiores e com melhores roupas. Já as menores tinham que se virar para poderem viver.

E Van já começava a mostrar seu lado muito particular. Harry Bird, um de seus colegas, lembra de uma passagem bem curiosa de um grupo no qual tocaram juntos: "nós tínhamos uma apresentação agendada em Donegal e precisávamos sair para a viagem rapidamente porque as estradas eram terríveis. Então marcamos de viajarmos ao meio-dia e passamos na casa de Van para buscá-lo. Quando chegamos lá, sua mãe veio nos atender e disse que ele não sairia de casa naquele dia. Perguntei se ele estava doente e ela disse que não estava, mas que ele não queria sair porque estava escrevendo poesia. Poesia! Tínhamos um show e nosso saxofonista queria ficar trancando escrevendo! Subi as escadas junto com o nosso cantor, arrombamos sua porta, o obrigamos a se vestir, demos o show e quando o deixamos em casa, às cinco da manhã, o demitimos."

E quem acabou ajudando Van foi seu primeiro herói local, Brian Rossi, considerado por Morrison como o "grande roqueiro de Belfast". Rossi tinha montado uma banda de 11 pessoas, chamada Golden Eagle e contratou Van para tocar sax e gaita. E foi ali que começou a nascer o Them...

4- Nasce o Them

Mas Van não queria apenas tocar com o Golden Eagle e seguiu tocando para o The Gamblers que já tinha como membros o guitarrista Billy Harrison, o baixista Alan Henderson, Ronnie Millings na bateria e depois com Eric Wrixon no piano.

Mas as showbands monopolizavam todos os locais para apresentações e era muito difícil para os grupos menores arranjarem um espaço. Van havia sido introduzido no grupo por haver tocado com Billy McAllen nos Monarchs, primo de Eric Wrixon. Não foi Van o fundador da banda, fato que irrita até hoje Eric quando ouve a história. "A banda já existia quando ele entrou e fico puto quando ouço que ele foi o fundador."

Os Gamblers, no entanto, conseguiram um bom aliado: Doug Knight, dono de uma antiga loja de discos e que tinha alguns cômodos reservados aos artistas locais, para ensaios. Doug gostou muito do que ouviu e os recomendou a uma pessoa da gravadora Phillips.

Nessa época, Van já era cantor e já mostrava um estilo novo, escrevendo suas letras e levando o grupo para a direção que tanto queria. E a primeira decisão dos Gamblers foi a mudança de nome.

"Van começou a trazer sua canções, voltadas para o r&b, além de coisas de Ray Charles e Bobby Bland. Eu não me lembro exatamente de onde veio o nome 'Them'. Tinha algo a ver com o filme de terror dos anos 50, mas tinha um som moderno e sem o prenome "The" das bandas americanas. Assim nasceu o Them", relembra Eric.

Mas o começo da carreira do Them, a criação de "Gloria" e as dezenas de confusões que gerou o grupo em sua curta carreira ficam para a segunda parte, em breve. Um abraço e até a próxima coluna...

Discografia

Don't Start Crying Now b/w One, Two Brown Eyes (1964)*
Them (EP, 1965)
Baby Please Don't Go b/w Gloria (1965)*
Here Comes The Night b/w All For Myself (1965)*
One More Time b/w How Long Baby (1965)*
It Won't Hurt Half As Much b/w I'm Gonna Dress In Black (1965)*
The "Angry" Young Them (1965)
Them (edição norte-americana, 1965)
Mystic Eyes b/w If You And I Could Be As Two (1966)*
Call My Name b/w Bring 'Em On In (1966)*
I Can Only Give You Everything b/w Don't Start Cryin' Now (1966)*
Richard Cory b/w Don't You Know (1966)*
People! Let's Freak Out b/w The Shadow Chasers (as Freaks Of Nature) (1966)*
Them Again (1966)
Gloria's Dream b/w Secret Police (as The Belfast Gypsies) (1967)*
Belfast Gypsies (1967)
Now And Them (edição norte-americana, 1967)
Time In! Time Out! For Them! (1968)
The World Of Them (1970)
In Reality (1971)
Them Featuring Van Morrison (edição norte-americana, 1972)
The Story Of Them (1977)
Shut Your Mouth! (Live) (1979)
The Story of Them featuring Van Morrison (1997)

* compactos




 


 

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