Muitos não sabem, mas antes de Van
Morrison fazer fama em uma maravilhosa e difícil carreira-solo,
ele teve uma grande banda na Irlanda. E foi com essa banda que
gravou aquela que é sua maior canção, "Gloria",
que curiosamente era o lado B de um compacto e virou um hino dos
anos 60 e que deu ao Them o rótulo de "proto punk"
(alguém reparou como estou usando esse rótulo nas
últimas colunas?). E o mais incrível é que
o Them fazia um som totalmente diferente do que Van buscou em
sua carreira. Se, depois de abandonar o grupo, foi se inspirar
no folk, no blues, no soul e no jazz e com letras místicas
e introspectivas, no Them o que contava era sua voz rouca (muito
semelhante a de Mick Jagger nos primeiros anos do Rolling Stones)
e a ferocidade do grupo. Considerada uma das maiores e mais importantes
bandas de garagem dos anos 60, o Them pode não ter sido
tão grande como os Stones, por exemplo (e certamente não
foi), mas tem uma carreira extremamente interessante. E a vida
do Van? Bem, ela virá em capítulos e não
deve demorar muito. Mas por horas vamos aos seus primeiros passos,
que abordará nesse capítulo até a fundação
do grupo...
Se
esse irlandês baixinho virou uma unanimidade mundial, muito
se deve ao seu mais importante grupo dos anos 60, o Them. E, muito
também se deve a seu pai, George Morrison. Aliás,
foi graças a ele, George pai, que o pequeno George Ivan
Morrison começou a amar a música norte-americana.
Mas vamos do começo, lá pelo meio da década
de 40...
1 - Nasce George
Ivan Morrison
George Ivan Morrison nasceu
no dia 31 de agosto de 1945 (está perto de completar 60
anos, portanto) em Belfast e viveu boa parte de sua vida na casa
de número 125 da Hyndford Street, que virou um museu em
1991, apesar da ira do próprio cantor contra esse fato.
Desde pequeno Van sempre
foi um menino quieto, rebelde e de pouco papo. E seu temperamento
arredio começou a ter uma válvula de escape: a música.
Seus pais, George e Violet eram dois amantes de música,
mas enquanto a mãe gostava de dançar e cantar pela
casa, o pai preferia ficar quieto no seu canto ouvindo seus discos.
E aí começa a ser registrada a importância
paterna na vida do jovem Van: seu pai, George Senior, era um eletricista
apaixonado pelo jazz e pelos discos que chegavam da América
e que ancoravam no porto de Belfast.
Assim como Liverpool, a
cidade tinha como grande força seu porto. E era dentro
desses navios que chegavam os discos do Novo Mundo que tanto fizeram
as cabeças dos Morrisons, filho e pai. Seu pai costumava
freqüentar lojas como a Atlantic Records atrás de
discos de big bands e também de músicos
de blues, como Muddy Waters, Hank Williams e, principalmente de
Leadbelly, que seria a grande paixão de Van ainda na adolescência.
George cogitou mudar-se
para a América após uma visita a alguns parentes
em Detroit quando Van contava com cinco anos e tinha ido unicamente
para preparar a mudança de sua família. Porém,
acabou desistindo do projeto e continuaram a viver em Belfast.
Nessa mesma época, sua mãe Violet desistiu de ser
protestante e tornou-se Testemunha de Jeová por se dizer
irritada com a religião. George pai resolveu não
entrar em conflito com sua esposa mesmo quando ela arrastou o
filho algumas vezes com ela.
Nessa
época, Van tinha dois modelos como artistas: Leadbelly
e Mahalia Jackson. Mas se a cantora era o exemplo de uma mulher
religiosa, quase santa, Leadbelly tinha uma história marcada
pela dureza das prisões, violência e dor. Pois esse
homem, que passou boa parte da vida na prisão, foi o primeiro
herói de Van e foi com grande alegria que descobriu que
vários jovens também idolatravam seu mestre.
"Primeiro foi Rory
McEwan um cantor folk escocês, que começou a fazer
uma boa versão de Leadbelly. Depois surgiu Lonnie Donegan
tocando skiffle e de repente parecia que todos tocavam
apenas Leadbelly! Ele era meu guru e quando alguém me enviou
um pôster gigante dele com um violão de 12 cordas,
eu o coloquei na parede e em todas as paredes de todos os lugares
que eu fosse viver. Eu também tive outras influências
- Muddy Waters, Sonny Terry, Josh White, Hank Williams e Carter
Family. Meu estilo vocal nasceu ouvindo Carter Family e Leadbelly",
confessa Van.
2 - Os primeiros
passos na carreira
Desde menino, Van Morrison
mostrava uma introspectividade enorme e dificilmente conseguia
se relacionar com amigos. A única linha de comunicação
era a música. Percebendo isso, seu pai o presenteou com
um violão com pouco mais de 13 anos e, indiretamente selou
o destino de seu filho com os estudos. "Para pessoas como
eu, a escola é uma perda de tempo. Nada do que aprendi
lá teve muita utilidade em minha vida."
Assim, Van saía
pelas ruas de Belfast para se apresentar, particularmente em uma
rua atrás do cinema Ambassador, onde tocava na frente de
um pub e ganhava alguns trocados com isso. E se o mundo dançava
ao som de Elvis Presley, outra paixão tomou conta da vida
do jovem postulante a estrela: o skiffle.
O skiffle pode
ser definido como uma mistura de country e blues, tocando com
instrumentos simples - violões, banjos, baixo de pau e
uma tábua de lavar roupa funcionando como percussão
- e virou uma verdadeira febre nos anos 50 no Reino Unido com
a explosão de Lonnie Donegan e Chris Barber, dois músicos
com que Van gravaria um disco em homenagem ao estilo em 2000.
E,
apesar de sua timidez, Van começou a correr atrás
de músicos para montar um grupo. Os primeiros passos foram
no grupo Deannie Sands and the Javelins, The Thunderbirds, The
Four Jacks, entre outros nomes. Aliás, os nomes eram mudados
constantementes. "Mudávamos de nomes como trocávamos
de camisa. Se estivéssemos num clube e o dono dizia que
aquele nome atraía gente, o mantínhamos. Se ele
pedisse, mudávamos. Mas o nome que mais usamos foi mesmo
Thunderbirds."
Nesse período o
melhor amigo de Va era George Jones, dois anos mais velho e conta
que Van entrou para o Thunderbolts (e não Thunderbirds)
como convidado. "Ele chegou até nós em 1958
e nessa época tocávamos canções de
Cliff Richards and the Shadows, entre outros. E Van chegou com
toda sua bagagem de música norte-americana - Jerry Lee
Lewis, Elvis Presley, Ray Charles - e nos conquistou. Ele tinha
um conhecimento musical raro para um garoto daquela idade, mas
tinha uma grande timidez e seus únicos amigos eram os discos
de seus pais. O único denominador que nos aproximava era
a música."
Os Javelins, assim como
qualquer banda da época, possuía grande rotatividade
em sua formação, porém a mais estável
consistia em Billy McAllen, George Jones, Roy Kane e Van. Deannie
Sands era o nome artístico de Evelyn Boucher, uma menina
que havia tido pólio quando criança e que usava
um aparelho ortopédico.
Jones conta que Van era
uma pessoa altamente imprevisível e que tinha dias bons
e dias em que simplesmente sumia. "Você nunca sabia
o que Van iria aprontar. Um dia ele apareceu com um saxofone e
começou a tocar apenas uma nota. Tentamos adaptar então
nosso som ao sax e funcionou bem. Van começou a treinar
muito o instrumento já que nessa época ele quase
não cantava e dessa maneira nasceu o The Monarchs."
Na verdade, o nome do Monarchs
era The Monarchs Showband. O showband foi um fenômeno tipicamente
irlandês e englobava não apenas a música,
mas o entretenimento de todas as formas e o público-alvo
desses grupos eram as pessoas da áreas mais pobres, que
tinham nessas bandas sua única diversão. Esses grupos
eram obrigados a parar a música de vez em quando e conversar
com a platéia e contar piadas e fazer covers de canções
famosas. E, apesar desse tipo de coisa irritar Van, ele seguia
participando da banda.
"Van
era basicamente um rock-and-roller e se sentia entediado
com esse esquema, mas ele era muito profissional para desistir",
lembra George Jones.
Mas seus pais estavam preocupados
em dar ao filho uma profissão e sua mãe ainda tentou
colocá-los em vários cursos para que tivesse uma
profissão. Tudo em vão. Em poucos dias, Van sumia
das aulas. Mas ele precisava de dinheiro para poder continuar
a seguir a vida de músico e montou então o único
empreendimento quase sério que já teve: um pequeno
negócio como limpador de janelas!
Van sempre foi um cara
exagerado sobre suas memórias, mas ele jura que o negócio
lhe rendeu boas perspectivas: "eu cheguei a ter empregados
no meu negócio e era presidente da minha firma. Ela só
fechou porque quando eu viajava, deixava com meu primo e ele não
conseguiu tocar os negócios!"
Mas Van queria mesmo era
tocar e começou a tocar em todos os lugares de Belfast.
E, apesar de alguns clubes permitirem tocar rock and roll, os
donos não gostavam muito de blues. "Blues era uma
coisa exótica nessa época", lembra Van.
3 - Vivendo de
música
Essa experiência
começou a causar uma certa mudança na postura de
Van. Embora continuasse quieto, tímido e arredio, em cima
de um palco, ele mostrava uma energia nervosa, intensa e se sentia
realmente em casa. Com isso, foi se tornando a grande estrela
dos Monarchs, aumentando a atenção para a banda.
A primeira grande aventura
dos Monarchs, no entanto, foi um grande fiasco. A banda havia
sido convidada para uma excursão de seis semanas pela Escócia,
mas ela acabou virando apenas um pesadelo.
"Tínhamos brigado
com nossos pais, pedido demissão de nossos empregos e quando
chegamos lá não havia nada. Só que tínhamos
viajado sem dinheiro, estávamos famintos e tínhamos
que bater de porta em porta para conseguirmos tocar para comer.
Em uma certa noite, tínhamos apenas quatro ovos para seis
pessoas comerem e pedimos para duas amigas fazerem uma sopa com
isso", lembra Jones.
A situação
ficou tão desesperadora que o grupo resolveu tentar a sorte
em Londres. Os seis tinham que se revezar dentro da van para dormir
e se alimentavam, quando muito, com achocolatados.
A sorte começou
a mudar quando foram para Londres e foram apadrinhados pelo cantor
escocês Don Charles, que tinha conseguido um razoável
sucesso com algumas canções. Ele levou a banda para
o Wimpy Bar, pagou uma refeição para os meninos,
mandou lavar seus ternos e os apresentou ao empresário
Ruby Bard, que procurava novos talentos. E através de Bard,
os Monarchs fizeram os passos que os Beatles também fariam:
tocar na Alemanha.
Os shows na Alemanha foram
exaustivos, mas como o próprio Van contou anos depois,
deu toda a cancha indispensável para sua vida profissional.
"Em Hamburgo, eram sete entradas por noite, sete dias por
semana. Você tocava uma hora, tinha um intervalo quando
entravam as dançarinas, tocávamos mais uma hora,
outro intervalo, etc. Fizeram uma festa-surpresa para meu aniversário
e era um ambiente excitante e violento ao mesmo tempo, com bebidas,
fumo, marinheiros americanos, mulheres. A gente recebia a cada
noite e foi um tremendo aprendizado, apesar de quase morrermos
de tanto trabalhar."
Quando foram para Frankfurt
foram obrigados a tocar canções que os Beatles faziam,
mas na versão idêntica ao grupo de Liverpool. "Era
gozado, porque tínhamos muitas canções no
nosso repertório que os Beatles também tocavam,
mas como as pessoas de lá gostavam das versões deles,
tivemos que imitá-los", lembra George Jones.
Em Frankfurt conheceram
um empresário alemão chamado Ronald Kovacs que ofereceu
50 dólares para que eles gravassem uma versão de
"Boozoo Hully Gully". Van lembra bem do dia: "foi
a primeira vez que gravei um disco, mas nesse eu só toquei
sax."
Apesar dos bons dias na
Alemanha, a banda começou a se sentir incomodada com sua
situação amadora e com o fato de terem pouco dinheiro.
Para sair dessa situação, Van voltou para Londres,
enquanto Jones começou a ganhar um excelente salário
- 30 libras semanais - como baixista e voltaram para Belfast com
um novo pianista, o norte-americano Jimmy Storey que sonhava conhecer
Belfast.
Mas os Monarchs não
resistiram aos dias duros e acabaram se dissolvendo. Van acabou
ficando em Londres depois do final da banda, mas foi convencido
pelos colegas Billy McAllen, Geordie Sproule e Herbie Armstrong
a voltar para Belfast e montarem um novo grupo.
Van
aceitou o convite, mas não queria mais saber de showbands,
pois estava absolutamente seduzido pelas novas bandas inglesas,
especialmente pelos Rolling Stones, que tocavam tudo aquilo que
ele sonhava, r&b com influências de rock e blues. Mas
quando Van voltou para Belfast ele encontrou uma certa resistência
dos colegas.
"Usando cabelo comprido,
ficava enaltecendo os Rolling Stones e dizia que só faríamos
sucesso se fôssemos com ele para Londres. Nós já
tínhamos começado nossas vidas adultas; alguns casando,
comprando casas e não aceitamos a proposta. Mas ele conseguiu
reunir uma banda chamada The Gamblers e os convenceu", conta
George Jones.
Com Van, começou
uma divisão em Belfast entre as showbands e os novos grupos.
As showbands eram consideradas bandas de elite, faziam shows em
lugares melhores, com equipamentos superiores e com melhores roupas.
Já as menores tinham que se virar para poderem viver.
E Van já começava
a mostrar seu lado muito particular. Harry Bird, um de seus colegas,
lembra de uma passagem bem curiosa de um grupo no qual tocaram
juntos: "nós tínhamos uma apresentação
agendada em Donegal e precisávamos sair para a viagem rapidamente
porque as estradas eram terríveis. Então marcamos
de viajarmos ao meio-dia e passamos na casa de Van para buscá-lo.
Quando chegamos lá, sua mãe veio nos atender e disse
que ele não sairia de casa naquele dia. Perguntei se ele
estava doente e ela disse que não estava, mas que ele não
queria sair porque estava escrevendo poesia. Poesia! Tínhamos
um show e nosso saxofonista queria ficar trancando escrevendo!
Subi as escadas junto com o nosso cantor, arrombamos sua porta,
o obrigamos a se vestir, demos o show e quando o deixamos em casa,
às cinco da manhã, o demitimos."
E quem acabou ajudando
Van foi seu primeiro herói local, Brian Rossi, considerado
por Morrison como o "grande roqueiro de Belfast". Rossi
tinha montado uma banda de 11 pessoas, chamada Golden Eagle e
contratou Van para tocar sax e gaita. E foi ali que começou
a nascer o Them...
4- Nasce o Them
Mas
Van não queria apenas tocar com o Golden Eagle e seguiu
tocando para o The Gamblers que já tinha como membros o
guitarrista Billy Harrison, o baixista Alan Henderson, Ronnie
Millings na bateria e depois com Eric Wrixon no piano.
Mas as showbands monopolizavam
todos os locais para apresentações e era muito difícil
para os grupos menores arranjarem um espaço. Van havia
sido introduzido no grupo por haver tocado com Billy McAllen nos
Monarchs, primo de Eric Wrixon. Não foi Van o fundador
da banda, fato que irrita até hoje Eric quando ouve a história.
"A banda já existia quando ele entrou e fico puto
quando ouço que ele foi o fundador."
Os Gamblers, no entanto,
conseguiram um bom aliado: Doug Knight, dono de uma antiga loja
de discos e que tinha alguns cômodos reservados aos artistas
locais, para ensaios. Doug gostou muito do que ouviu e os recomendou
a uma pessoa da gravadora Phillips.
Nessa época, Van
já era cantor e já mostrava um estilo novo, escrevendo
suas letras e levando o grupo para a direção que
tanto queria. E a primeira decisão dos Gamblers foi a mudança
de nome.
"Van começou
a trazer sua canções, voltadas para o r&b, além
de coisas de Ray Charles e Bobby Bland. Eu não me lembro
exatamente de onde veio o nome 'Them'. Tinha algo a ver com o
filme de terror dos anos 50, mas tinha um som moderno e sem o
prenome "The" das bandas americanas. Assim nasceu o
Them", relembra Eric.
Mas o começo da
carreira do Them, a criação de "Gloria"
e as dezenas de confusões que gerou o grupo em sua curta
carreira ficam para a segunda parte, em breve. Um abraço
e até a próxima coluna...
Discografia
Don't Start Crying Now b/w One, Two Brown Eyes (1964)*
Them (EP, 1965)
Baby Please Don't Go b/w Gloria (1965)*
Here Comes The Night b/w All For Myself (1965)*
One More Time b/w How Long Baby (1965)*
It Won't Hurt Half As Much b/w I'm Gonna Dress In Black (1965)*
The "Angry" Young Them (1965)
Them (edição norte-americana, 1965)
Mystic Eyes b/w If You And I Could Be As Two (1966)*
Call My Name b/w Bring 'Em On In (1966)*
I Can Only Give You Everything b/w Don't Start Cryin' Now (1966)*
Richard Cory b/w Don't You Know (1966)*
People! Let's Freak Out b/w The Shadow Chasers (as Freaks Of Nature)
(1966)*
Them Again (1966)
Gloria's Dream b/w Secret Police (as The Belfast Gypsies) (1967)*
Belfast Gypsies (1967)
Now And Them (edição norte-americana, 1967)
Time In! Time Out! For Them! (1968)
The World Of Them (1970)
In Reality (1971)
Them Featuring Van Morrison (edição norte-americana,
1972)
The Story Of Them (1977)
Shut Your Mouth! (Live) (1979)
The Story of Them featuring Van Morrison (1997)
* compactos
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