108 - U2 - 1982 e 1983

Quem estiver acompanhando a série do U2 estranhará que estou repetindo o ano de 1982. Mas é proposital e explico o motivo: foi ainda em 1982 que aconteceram as gravações de War, um disco que mudou radicalmente a sorte da banda, em termos de som, idéias e prestígio. E como o período entre 1982 e 1984 é extremamente rico, achei melhor dividi-lo para contar a história de uma maneira mais correta e detalhada. É nesse período que o grupo também começa a abordar temas políticos e ganhar dimensões surpreendentes até para os próprios integrantes. Culpa de “Sunday Bloody Sunday”, canção que virou hino em shows, sendo que nem era música de trabalho. War também trouxe alguns clássicos eternos do grupo como "New Year’s Day", "40", "Two Hearts Beart As One" e "Surrender" (minha velha favorita). Vamos aos melhores momentos de 1982 e 1983 então...


 

Aviso aos navegantes. Fernando P. Silva traduziu mais uma vez as letras do grupo. Se você quiser saber mais sobre o que fala o disco War, vá correndo ao link mais embaixo. Mas não antes de ler a matéria, ok pessoal?

1– "Essa não é uma canção de rebeldia..."

As gravações de War foram tremendamente agitadas e importantes para o grupo por vários motivos. Para começar, a banda estava, pela primeira vez, em paz interna. As diferenças entre os membros “católicos” (Bono, Larry e The Edge) e Adam Clayton cessaram por completo. O convite para ser padrinho de casamento de Bono, havia diminuído as rusgas e uma separação que sempre pairava sobre a vida de Clayton.

Se as tensões internas eram menores, as ambições eram muito maiores. O grupo resolveu que o próximo disco não poderia ter os erros dos dois primeiros. Se em Boy, a inexperiência natural (um dos grandes trunfos do U2) era perdoável, October foi prejudicado pelas letras perdidas por Bono e por não ter soado exatamente como o grupo desejava, embora o resultado tenha agradado a banda. Mas para o produtor Steve Lillywhite, eles não haviam mostrado todo seu potencial. E muito menos ele havia brilhado ainda como produtor. Para Lillywhite estava claro que era sua derradeira chance com o U2. A sua vantagem é que ele já conhecia bem o espírito gregário do grupo e desfrutava de excelente amizade com os quatro músicos.

E do que falariam as letras, qual seria o caminho? A religião ainda seria o carro-chefe? Quais os temas a serem abordados? As letras, embora fossem responsabilidade de Bono, sempre passavam uma preocupação ou falavam de dúvidas que afligiam os quatro. Em Boy, a morte fazia parte não só da vida do vocalista, como também de Larry, através de suas mães; as dúvidas e medos de Bono eram também os medos de Adam e as angústias e a reflexão poderiam ter sido escritas por The Edge. O mesmo acontecia em October. Portanto, não haveria como se construir uma letra em que todos os membros não estivessem direta ou indiretamente envolvidos.

E estava claro que as brigas entre católicos e protestantes na Irlanda tinham um outro campo tão fértil quanto a religião: a política. Mais importante do que qualquer partido político no país era o temido IRA, o Exército Republicano Irlandês, que lutava contra o domínio britânico, em uma Irlanda divida entre o Norte (de domínio inglês) e o Sul (também conhecido como Eire) e que não sofria intervenção britânica. Mais do que uma questão eterna, os atentados e mortes sempre foram uma realidade de qualquer irlandês desde seu nascimento.

Por isso quando o grupo começou a compor os primeiros esboços de “Sunday Bloody Sunday” era natural que as mortes causadas pela religião e pela incompreensão de um país fosse um tema a ser abordado.

Um dos passos do grupo em direção à política aconteceu em Londres. Bono encontrou Garret Fitzgerald, então candidato ao cargo de primeiro ministro pelo Fini Gael (partido de centro-direita e que tinha o apoio dos trabalhadores), em um vôo para Dublin e se apresentou ao candidato. Garret não conhecia Bono, mas já sabia da fama que o U2 possuía em seu país. Os dois começaram uma amizade frutífera e foram fotografados juntos no desembarque. As fotos saíram nas primeiras páginas de vários jornais. Para sedimentar ainda mais essa amizade, Garret compareceu aos estúdios Widmill Lane com sua esposa Joan, durante o período em que o grupo gravava o disco. Mais fotos foram tiradas do encontro, aumentando a popularidade do candidato entre os jovens irlandeses. O U2 acabou sendo um excelente aliado e um belo marketing para a vitória de Garret, meses depois.

Garret Fitzgerald e sua esposa Joan conversam com a banda nos estúdios Windmill Lane, em uma visita de cortesia ao U2Mas as letras causaram alguns problemas para o grupo. Especula-se até hoje que a letra de “Sunday Bloody Sunday” sofreu mudanças por pressões do IRA e que o grupo teria até sido ameaçado pelos militantes. A letra começava com o verso “Não me fale dos direitos do IRA”, mas teria sido alterada para “Não posso acreditar nas notícias de hoje”. Bono ressalta que isso nunca foi verdade e explica que a canção nunca foi contra o Exército Republicano Irlandês. “Ela fala de um dia que os irlandeses nunca deve sem esquecer (o massacre em 1972, na cidade de Derry, quando trezes pessoas foram mortas), mas que não deveria mais acontecer. É exatamente isso que quero expressar quando digo ‘até quando deveremos cantar essa canção’. Quando nós a tocamos, sempre faço questão de ressaltar que não é uma canção de rebeldia com o intuito de causar polêmica. Eu gostaria de não cantar mais canções como ela, mas não posso fechar meus olhos perante os problemas.”

Embora a canção nunca tenha sido planejada como single e nem conste na relação no site oficial do grupo, a verdade é que ela acabou sendo lançada nesse formato, e até teve uma edição no Brasil, em 1985 ou 1986.

Uma das maneiras encontradas pelo grupo de mostrar sua reprovação aos conflitos era hastear uma bandeira branca no palco. “Eu nunca fui uma pessoa ‘territorial’ no sentido que ‘ah, como sou irlandês vou levar a bandeira de minha pátria ao palco’. Nós somos apenas um grupo de irlandeses e pronto! A escolha dela (bandeira branca) é exatamente essa, a de universalizar o nosso ideal, além de pedir uma trégua aos conflitos pelo mundo.”

Para trabalhar a canção com uma letra tão pesada, o grupo resolveu “suavizar” a melodia. As gravações tiveram a participação do violinista Steve Winckham, então no grupo In Tua Nua e que faria parte dos Waterboys, meses depois. Steve forneceu um clima meio folk e mais ‘irlandês’ ao tema. Essa versão causou uma certa estranheza aos fãs que conheceram a canção em sua versão mais crua e cheia de energia, ao vivo (caso dos fãs brasileiros).


Em War, Bono parece sussurrar a letra, um contraste marcante perto do volume e dinamismo das apresentações.


2 – Polônia, Solidariedade e Ano Novo

O primeiro compacto, no entanto, foi New Year’s Day.


A grande inspiração para a canção vinha de muito longe, da Polônia. Eram os anos da cortina de ferro, do domínio soviético e nesse pequeno país, que tinha virado manchete quando Karol Wojtila virou o primeiro Papa não italiano em quase 500 anos de igreja católica (João Paulo II), virava novamente notícia graças a dois personagens: o operário Lech Walesa e seu partido, Solidariedade, que acabaram ganhando o Prêmio Nobel da Paz, no final de 1983. Esse pequeno partido e seu líder tinham a ousadia de desafiar o severo poder da extinta União Soviética e formavam uma imagem muito forte para o grupo. O U2 a tocou pela primeira em um show em Belfast, no dia 20 de dezembro. E a canção foi a primeira amostra do novo som do grupo.

Enquanto The Edge se reveza entre o piano e a guitarra, Adam e Larry constroem uma sólida parede. A bateria de Larry, aliás, sofreria profundas mudanças, soando mais alta, encorpada e, às vezes, até meio ríspida. Este foi também o primeiro compacto do grupo a chegar ao Top 10 no Reino Unido.

Na capa do compacto, um velho conhecido do grupo e dos fãs: Peter “Radar” Rowen. Aliás, ele também estaria presente na capa do próximo single do disco Two Hearts Beat As One e também na capa de War.

Apesar de ser um clássico, vale a pena deixar a letra para quem ainda não a conhece...

New Year’s Day

All is quiet on New Year's Day.
A world in white gets underway.
I want to be with you, be with you night and day.
Nothing changes on New Year's Day.
On New Year's Day.

I... will be with you again.
I... will be with you again.

Under a blood-red sky
A crowd has gathered in black and white
Arms entwined, the chosen few
The newspaper says, says
Say it's true, it's true...
And we can break through
Though torn in two
We can be one.

I... I will begin again
I... I will begin again.

Oh, oh. Oh, oh. Oh, oh.
Oh, maybe the time is right.
Oh, maybe tonight.
I will be with you again.
I will be with you again.

And so we are told this is the golden age
And gold is the reason for the wars we wage
Though I want to be with you
Be with you night and day
Nothing changes
On New Year's Day
On New Year's Day
On New Year's Day


“New Year’s Day” era um perfeito cartão de visitas da banda que lutava contra o que denominaram “música de papel de parede”, canções que tinham a função de apenas enfeitar o ambiente, com climas fúteis e estéreis. Aliás, uma das frases que Bono utilizava ao apresentar a música em shows era mais ou menos “eu gostaria de fazer uma previsão. Essa não é um canção papel de parede e acredito que nada mais está por fora do que estar na moda. Essa é ‘New Year’s Day’”.

Bono voltou a falar sobre a metáfora em uma entrevista: “Acredito que War é o disco mais certo para esse período. É um tapa na cara sobre tudo que é descartável, tolo e popular. Hoje tudo é extremamente orientado para entreter e acredito mais do que nunca que John Lennon estava certo quando ele chamou esse tipo de música, de ‘papel de parede’, por ser muito bonitinha, muito desenhada e apropriada para ouvir enquanto alguém toma café da manhã. Esse disco me mudou e abriu outras possibilidades, de comunicar com minha geração, de tentarmos não repetir alguns erros, porque cada vez mais concordo com o que Bob Geldof disse quando se refere à história como apenas ‘um erro sobre outro.’”

Lillywhite gosta de contar uma curiosidade sobre as gravações dela: “nós tínhamos que deixar o estúdio às sete da manhã para outra banda entrar. E quando o outro grupo chegou, Bono ainda estava colocando a voz em “40”. Com o outro grupo esperando do lado de fora, Bono começou a cantar a letra de “New Year’s Day” e nós íamos mixando. Saímos dos estúdios exatamente no horário e ela acabou mixada em incríveis 10 minutos!”

3 – Dois corações

Ir contra as tendências, contra a moda e não saber mais o que é certo ou errado. Todas essas angústias foram levadas por Bono para a canção que serviu como segundo compacto do disco “Two Hearts Beat As One”. “Não sei de que lado estou/ Não sei (distinguir) minha direita da esquerda, ou o certo e o errado/ Dizem que sou tolo, você diz que não sou para você/ mas se eu for tolo para você, ah, aí será algo”.

Com esses versos (e um lindo clip rodado em Paris, em que mostra a banda tocando em uma praça, enquanto um Peter Rowen segue um equilibrista que anda pelas ruas da cidade e até em uma corda bamba), ela tornou-se o segundo sucesso do disco.
A letra foi escrita por Bono durante sua lua-de-mel e curiosamente, foi pouco tocada em shows, apesar do ritmo contagiante.

Ali conta que quando ela e Bono partiram em lua-de-mel para a Jamaica, o cantor ficava repetindo “essa é minha última chance, essa é minha última chance”. A frase acabou inspirando e entrando em “Two Hearts Beat As One”. “Houve algumas noites em que quase o expulsei do quarto, por ficar compondo enquanto ele deveria dar mais atenção para mim. Mas como estávamos usando a casa de Chris Blackwell (presidente da Island Records), entendi um pouco a angústia dele. Mas em algumas noites...”

Two Hearts Beat As One

I don't know, I don't know which side I'm on.

I don't know my right from left or my right from wrong.
Say I'm a fool, you say I'm not for you
But if I'm a fool for you oh, that's something.
Two hearts beat as one.
Two hearts beat as one.
Two hearts.

I can't stop to dance
Honey, this is my last chance
I said, can't stop to dance
Maybe this is my last chance.
Two hearts beat as one.
Two hearts beat as one.
Two hearts.

Beat on black, beat on white
Beat on anything, don't get it right.
Beat on you, beat on me, beat on love.

I don't know
How to say what's got to be said
I don't know if it's black or white
There's others see it red
I don't get the answers right
I'll leave that to you
Is this love out of fashion
Or is it the time of year?
Are these words distraction
To the words you wanna hear?
Two hearts beat as one.
Two hearts beat as one.
Two hearts.

I try to spit it out
Try to explain.
The way I wanna feel
Oh, yeah, two hearts.

Well I can't stop to dance.
Maybe this is my last chance.
And I said, I can't stop to dance.
Maybe this is my last chance.
I said don't stop to dance
Maybe this is my last chance.
I said I can't stop to dance.
Maybe this is our last chance.
I said don't stop to dance.
Maybe this is our last chance.
Oh, oh!

Mundialmente aclamado, War foi direto para o primeiro lugar na parada de LPs na Inglaterra e freqüentou o Top 20 na América, atingindo o 12º posto. O disco ainda trazia algumas surpresas. A primeira delas era a presença do trio de garotas do Kid Creole and the Coconuts em duas canções, “Surrender” e “Red Light”, que também teve a participação do trompetista Kenny Fradley. Na capa uma foto do mesmo “Radar”, mas desta vez com um olhar enfezado, sobrancelhas franzidas e um corte em seu lábio.

Outras surpresas foram alguns produtores que passaram pelo disco. A canção “The Refugee”, foi produzida por Bill Whelan, mas mixada por Lillywhite.

as garotas do Kid Creole and the Coconuts com o grupo durante as gravações“The Refugee”, com seu ritmo tribal, falava dos refugiados que tentavam escapar em busca de uma vida melhor e também fugir das torturas. Canções como “Seconds” tentava exorcizar o fantasma de uma Terceira Guerra Mundial e “Surrender” abordava as angústias das pessoas face à vida moderna. A rendição se dava em um nível espiritual, perguntando se você deveria se render perante a Deus e ao mundo moderno.

O disco fechava com “40”, inspirada no Salmo de mesmo número, da Bíblia. Novamente aparecia o verso “por quanto tempo cantarei essa canção”, usado em Sunday Bloody Sunday. E “40” acabaria sendo uma canção especial para o grupo, que durante muitos anos a usaria como canção de encerramento dos shows, com Edge e Adam trocando de instrumentos em vários shows e com um inconfundível solo de bateria de alguns segundos de Larry Mullen.
Como parte do folclore, Bono dizia que “40” levou esse nome por um motivo estúpido e que gostava de citar durante os shows. Segundo o vocalista eles a haviam escrito fora do estúdio durante 10 minutos. Gastaram mais 10 gravado-a, 10 minutos mixando e 10 minutos ouvindo o resultado. O tempo total para fazê-la foi de 40 minutos, dando a origem do título.
Obviamente, o vocalista estava brincando com o público.

4 - A orquestra de The Edge

Se o U2 esperava um grande sucesso, ele veio plenamente com War. O novo trabalho rendeu rasgados elogios de todas as partes. Um Bill Graham empolgado chegou a dizer que a banda não tinha apenas um coração, mas quatro e que The Edge havia feito do disco um projeto tão peculiar seu que não era apenas um novo disco do U2. “Esse é um disco que captura toda a essência e a habilidade de The Edge. Eu não tenho dúvida em chamar War de a orquestra de The Edge.”

The Edge sempre refutou o elogio, mas disse que finalmente descobrira algumas utilidades nas lições de piano que teve quando criança, em parte por exigência de sua mãe.

“Eu sempre fui um pianista horrível, mas parece que soube encontrar algumas melodias compatíveis com a minha habilidade. Até minha mãe me elogiou, um fato raro. Mas acho que meu talento como guitarrista supera, de longe, o meu como tecladista. Para tristeza de minha mãe...”

 

 

5 – Conquistando o mundo mais uma vez

Quando foi lançado em fevereiro de 1983, o grupo já estava na estrada. Com as boas vendagens e críticas aos seus pés, a banda resolveu colocar o novo repertório em teste. Os shows eram um sucesso, em parte pela postura totalmente diferente das bandas da época. Enquanto vários grupos investiam pesado em vídeos, imagens, o U2 saía pelo mundo, com o visual mais despojado possível, sem sintetizadores e dispostos a darem o maior show de rock que os fãs poderiam ter. Mas o dinheiro demorou muito para vir, em parte porque os lucros com as vendagens eram usados para pagar o que já haviam recebido adiantado para gravarem e promoverem os discos anteriores. Se o grupo queria dinheiro, precisaria trabalhar duro, porque os shows também eram financiados pela Island e pela agência Premier Talent, de Frank Barsalona.

Paul McGuinness percebeu que esta era a hora exata para o grupo se consolidar. A infra-estrutura começava a aumentar. Além de Joe O’Herlily e Dennis Sheehan, havia agora Steve Iredale, responsável por toda parte técnica de palco. E mais gente ainda seria contratada para dar todo o suporte para que o U2 crescesse.

Com Dennis sendo o chefe da turnê, Paul começou a pensar no próximo passo do grupo e em um novo disco. Paul acalentava um antigo sonho que era capturar o U2 ao vivo, em um vídeo, algo que mostrasse todo o potencial da banda, ao vivo. A outra preocupação era tentar renegociar o antigo contrato com a Island. Ele achava, e com razão, que as 50 mil libras de royalties que recebiam adiantados para produzirem um novo disco, era um orçamento bastante limitado. O problema é que ainda não sabia como poderia negociar um aumento.

Alguns shows marcaram o grupo, como o realizado em Dundee, no dia 26 de fevereiro, no Caird Hall para mais de 2500 pessoas. O concerto marca o fim de “Fire” no repertório do grupo. Os teatros de médio porte na América conseguiam lotação completa, rapidamente. O U2 começava a acontecer de verdade. Agora eles eram uma banda de primeiro porte e faziam parte da primeira divisão do rock.

6 - Bono tenta agredir Larry no palco

Se o grupo promovia um dos melhores shows do planeta e a amizade entre os membros era sólida, alguns deslizes aconteciam. E o maior deles foi em New Haven. Apesar dos inúmeros shows e casa esgotada, não havia ainda um dinheiro consistente para os membros. Isso causou uma grande tensão entre todos, porque o medo era não ter outra chance de conseguir o sucesso. E, de todos, o que mais expunha sua frustração era Bono, dia após dia. Foi dessa maneira que entraram no palco e começaram a tocar. Quase no final da apresentação, Larry fez uma pausa em uma canção. E Bono percebeu. E ficou furioso. O cantor, esquecendo que estava em uma apresentação, encarou Larry com ódio. Larry, rangeu os dentes, calmamente desviou o olhar do cantor e saiu correndo do palco. Bono começou então a chutar o kit de bateria. Enquanto todo o público achava que a cena fazia parte do espetáculo, Bono partiu para cima do baterista, mas foi contido por um The Edge irritado com o espetáculo bisonho promovido. The Edge agarrou o vocalista pelos cabelos e o conduziu para fora do palco. Como punição, o grupo e Dennis resolveram que seria um bom castigo para Bono passar a noite na rua, fora do hotel em que estavam hospedados até que se acalmasse. No dia seguinte, ele voltou na hora do café e pediu desculpas. Todos riram e a paz voltou ao grupo.

“Bono sempre odiou essa coisa de ouvir o U2 ser chamado de ‘a banda de Bono’. Ele nunca aceitou esse rótulo. Ele sempre fala que a banda é formada por quatro pessoas. Mas ninguém se importou com essa definição porque sabemos que dizem isso pela forma apaixonada com que ele se doa nos shows. Nós fazemos nossa parte, mas é ele o coração que fica exposto, que encara o público, que conversa, que canta e que fala. No final, acho que quem se incomoda com o rótulo é ele mesmo. Por isso, alguns momentos de fúria são compreensíveis, o que não significa que não devam ser criticados quando ele exagerar.” A definição de Adam Clayton sobre a pressão que cai nos ombros do vocalista até hoje é perfeita.

Adam nunca se preocupou em ser a estrela do grupo, até preferia poder desfrutar de uma liberdade que Bono e The Edge não tinham. Mas ele sempre foi uma pessoa ponderada e, embora, não concordasse com muitas coisas, entendia as razões. Por esse motivo, era sempre o escolhido para conversar com a parte técnica após as apresentações, quando analisavam os acertos e o que precisava ser melhorado. Essa conversa, originalmente, ficava sempre a cargo do vocalista, mas pelo seu jeito duro de falar e pela forma veemente como criticava, acabou causando várias rusgas. Adam era igualmente perfeccionista, mas muito mais calmo e um ouvinte mais atento. No final, o arranjo se mostrou ótimo para Bono, com uma função a menos e um verdadeiro alívio para Joe e Steve Iredale.

A rotina de shows era bastante pesada. Logo após o almoço, o grupo checava o som antes das apresentações. Joe começava então a arrumar os equipamentos, e testar a acústica de cada teatro. Bono subia ao palco e ficava “medindo” o local, olhando para todos os locais. Sua preocupação era saber se todos poderiam vê-lo e como chegar aos pontos mais remotos para dar um pouco de atenção aos espectadores menos privilegiados. Ele então pedia para que mudassem um monitor ou um amplificador de lugar, para que todos pudessem ouvir melhor. Nessa tarefa, tinha a companhia de Larry. Enquanto isso Edge e Adam ficavam afinando seus instrumentos.

Mas não era só. Bono havia pensado em usar uma bandeira branca durante “Sunday Bloody Sunday”. A bandeira era pesada e necessitava de um suporte no meio do palco. Durante “The Electric Co.”, tinha a mania de “passear” por todos os cantos e cantando ao mesmo tempo, o que obrigava a ter um microfone com um fio longo e sempre alguém tentando acompanhá-lo. E o pior é que ninguém sabia o que Bono faria, porque, nem o cantor sabia. Essa expectativa causava um estresse em todos. E discutir isso com o cantor era algo que deveria se evitar, por causa de seu gênio.

O que mais causava medo era a histeria que o grupo causava entre os fãs. E um show causa arrepios até hoje quando é citado para Dennis Sheehan: a segunda noite do festival de San Bernadino. Em um festival que durou três noites, o grupo ficou responsável por encerrar o segundo dia. A primeira noite teria como atração final o Clash e a última, David Bowie. Um total de 250 mil pessoas era esperado para as três noites e Dennis tremia de medo só em pensar na confusão que Bono poderia causar com sua mania de agarrar pessoas da platéia, cantar junto e sair correndo. Ao verificar as condições, tremeu. Havia vários locais em que o vocalista poderia exercer seu “esporte” favorito, que era subir e escalar qualquer espaço possível do palco no meio do show. A organização havia deixado bem claro que esse procedimento estava proibido e que se alguém o fizesse e se ferisse, não seriam responsáveis. Dennis concordou e avisou Bono, que também concordou. Mas...

Bono não deu bola e começou a subir e subir. No final, resolveu descer por uma lona branca na tentativa de cruzar uma ponta do palco até a outra. Só que lona começou a rasgar com o peso do cantor, que caiu no meio do palco. Dennis tremeu quando não viu o cantor, e tremia só na possibilidade de um ferimento grave ou que pudesse ter ferido algum espectador. Felizmente, Bono foi conduzido até o palco. Mas quando o show acabou, um Dennis irado o abordou nos camarins e deu um ultimato. Ou ele começava a respeitar as diretrizes que ele, Dennis, havia estabelecido para o grupo ou falaria com Paul e pediria demissão. Já era muito trabalho coordenar uma apresentação e novos riscos eram desnecessários. Bono calou-se e obedeceu.

7 – Red Rocks

Quatro dias depois após a apresentação em New Haven, o grupo chegou em um teatro fora de Denver e com um belo visual: Red Rocks. O teatro fora construído dentro de uma formação rochosa. O Red Rocks era utilizado para vários concertos no verão americano. Paul McGuinness já havia pensando há muito tempo em fazer o tal vídeo ao vivo do U2 em tal lugar. O problema é que o local possuía muitas limitações técnicas e seria muito dispendioso em filmar. Para piorar, o grupo tinha menos de 30 mil libras disponíveis. A solução encontrada foi oferecer a Island e aos promotores do local, Feyline Presents, 24% dos lucros, em troca de 50 mil libras. Acordo selado, convidou Steve Lillywhite para produzir um disco ao vivo que teria o título de Under a Blood Red Sky. O vídeo seria dirigido por Gavin Taylor.

Paul McGuinness havia sido até agora um empresário prudente e que controlava ao máximo os gastos. Mas ele achava que era hora do grupo tentar dar uma virada na sorte e arriscar um pouco. O investimento para a produção era pesado, quase 250 mil libras, dinheiro que o U2 não tinha. Se o projeto desse errado, a situação ficaria ainda mais caótica. Para começar, seria necessário um grande investimento em cartazes e anúncios para a apresentação. Boa parte do dinheiro seria gasto em tentar solucionar problemas técnicos para a filmagem. Se todos esses problemas já atormentavam o empresário, ele ainda ganhou mais um, inesperado e que daria ainda mais dor de cabeça: a chuva.

Durante três dias seguidos, não parou de chover um minuto. Junto com chuva, começou a aparecer um vento gelado e neblina, sem falar do furacão que resolveu devastar Denver no dia anterior. Não fossem suficientes os problemas, agora toda a produção enfrentava a lama, a chuva e a neve na pior tempestade que Denver sofria em quase 100 anos.

Joe O’Herlily e Steve Lillywhite estavam desesperados. A cada teste do equipamento que seria utilizado, algo pifava. Para piorar, a umidade e o frio provocavam curtos em alguns deles e havia até risco de vida. Na véspera do concerto Paul organizou uma reunião com Lillywhite, Iredale, Joe, Dennis e o promotor Barry Fey. Queria saber como andava a situação. Ao saber que as condições eram críticas resolveu cancelar. “Vamos filmar o vídeo em algum teatro”, disse. Mas Dennis não aceitou a proposta. O investimento havia sido pesado e mesmo com todas as condições, ele garantia que daria certo. Afirmou que junto com Iredale e Joe, checaria todas as condições técnicas antes e durante a apresentação. O risco era grande, mas o prejuízo seria imenso se não fosse realizado. O empresário resolveu então correr o risco, mas não quis comparecer ao show no dia marcado, preferindo ficar no hotel. E para tentar diminuir o prejuízo para os fãs, colocou anúncios nas rádios da cidade, avisando que o U2 faria um concerto grátis na universidade de Colorado para quem não pudesse ir à apresentação em Red Rocks.

8 – A apresentação

Enquanto Paul ficava no hotel, o grupo se encaminhou até o local. Mesmo com todas as condições climáticas ruins, Bono, Adam, Edge e Larry conversavam com a produção para saberem todos os detalhes. Oito mil pessoas começavam a lotar o teatro. A chuva não cessava e tão pouco o frio. Mas o espetáculo ia começar. E o grupo entrou no palco vestidos apenas com calças e camisetas. O set list estava mais do que ensaiado. O grupo abriria com “Surrender” e fecharia com “40”.

O espetáculo, para surpresa geral, ocorreu da maneira mais normal possível. Nem um problema sério, apenas a banda mostrando todo seu potencial em cima de um palco. Momentos mágicos como quando Bono puxa uma garota para dançar com ele em “11 O’ Clock Tick Tock”. O grupo se mostrava perfeitamente entrosado e tocando com a habitual competência. O saldo havia sido altamente positivo e a cumplicidade da banda com seu público estava mais do que provada. Além disso, o grupo havia mostrado que tinha munição suficiente para fazer uma apresentação excelente sob quaisquer circunstâncias. Um ponto positivo que McGuinness exploraria com sabedoria ao longo dos anos.

O set programado para entrar no vídeo tinha as seguintes músicas: “Surrender/ Seconds/ Sunday Bloody Sunday/ October/ New Year's Day/ I Threw A Brick Through A Window / A Day Without Me/ Gloria/ Party Girl/ 11 O'Clock Tick Tock/ I Will Follow/ 40”.

Veja o set list completo da apresentação: “Out Of Control/ Twilight/ An Cat Dubh/ Into The Heart/ Surrender/ Two Hearts Beat As One/ Seconds/ Sunday Bloody Sunday/ The Cry and The Electric Co/ I Fall Down/ October/ New Year's Day/ I Threw A Brick Through A Window/ A Day Without Me/ Gloria/ Party Girl/ 11 O'clock Tick Tock/ I Will Follow/ 40.”

The Edge e Annie Lennox antes de um show em DublinApós a parte americana da turnê, o grupo era a atração principal do concerto em Dublin, “A Day At the Races”, em Dublin, no dia 14 de agosto. Mais de 25 mil pessoas compareceram ao evento, cujo título havia sido tirado de um disco do Queen. Nesse dia, o U2 era a atração principal e teriam como companheiros de palco, o Simple Minds, o Big Country e Eurythimcs.

Aislinn, esposa de The EdgeAlém de comemorar a volta triunfal para casa, o grupo havia ganhado mais um motivo para celebrar. No dia 12 de julho, The Edge havia se casado com a namorada, Aislinn. O concerto teve uma aura emotiva, quando o cantor dedicou a apresentação para Thomas Reilly, que uma semana antes havia morrido em Belfast, vítima dos conflitos entre católicos e protestantes. O irmão de Thomas, Jim, era baterista do grupo irlandês Stiff Little Fingers. Em sua memória tocaram “I Fall Down”.

O U2 também começava a fazer contatos com várias bandas que lutavam pela mesma causa: primeiro com os também irlandeses do Alarm e, principalmente com o Simple Minds, de Jim Kerr, um membro ativíssimo da Anistia Internacional, organização que o grupo apoiaria anos depois.

9 – Primeiro projeto paralelo de The Edge e disco ao vivo

Em meio às apresentações, o grupo fez uma reunião para conferirem o material gravado em Red Rocks. A frustração tomou conta de todos. Embora o show tivesse sido um grande sucesso, o som não era exatamente um primor. Antevendo nisso, o grupo havia realizado duas apresentações com o mesmo set list de Red Rocks, por precaução: em Boston e outra no programa Rockpalast, gravado no dia 20 de agosto, no anfiteatro Loreley, em St. Goarshausen, na então Alemanha Ocidental.

E como resultado, apenas “Gloria” e “Party Girl” gravadas em Red Rocks, entrariam no novo disco do grupo, o mini LP (ou EP, se preferirem) Under a Blood Red Sky.

O formato escolhido foi o EP por uma razão simples: a idéia era comercializá-lo como um disco com preço bem menor do que um LP. Seriam oito canções e a produção ficou por conta de Jimmy Iovine, e não de Lillywhite, que havia cuidado do som do show de Red Rocks.

O disco chegou ao segundo lugar da parada inglesa. A versão de “The Electric Co.” gravada no Rockpalast precisou ser editada, já que a banda sofreu uma ameaça de processo pelo uso indevido de trechos de “Send In the Clows”, de Stephen Sondheim. O disco foi eleito como o álbum do ano pelos leitores da revista Hot Press.

Mas, um mês antes do lançamento de Under a Blood Red Sky, os fãs são pegos de surpresa: em parceria com Jah Wobble (ex-baixista do PiL) e com Holger Czukay (do grupo alemão Can), The Edge participa de um outro Mini LP, Snake Charmer. Totalmente longe da proposta roqueira do U2, o guitarrista dava vazão ao seu lado mais experimental trabalhando com dois músicos que o haviam influenciado enormemente. The Edge sempre foi fã ardoroso da banda alemã e também da banda em que John Lydon (ex-Johnny Rotten) havia formado depois que saiu dos Sex Pistols.

Com o sucesso conseguindo em 1983, com os dois discos obtendo boas vendagens e shows pelo mundo todo, a banda começava agora a preparar o próximo passo: um novo álbum de estúdio no ano de 1984. Para produzir seria convidado um famoso produtor e que havia feito grandes discos com David Bowie e Talking Heads, além de ter sido membro do Roxy Music: Brian Eno.

Para ler as letras traduzidas do disco War clique aqui

 

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