Mito.
Gênio. Irascível. Tímido. Maior cantor do mundo. Não foram
poucos os adjetivos que o irlandês Van Morrison, que completou
54 anos hoje, recebeu em sua longa carreira. Desde sua aparição
com o grupo Them, Morrison é considerado uma pessoa difícil.
Escorado
em seu maior hit, ''Gloria'', de 1965, e que seria posteriormente
regravado por Patti Smith e pelos Doors de outro mítico Morrison,
Jim, preferiu abandonar o grupo em 66, após dois anos de brigas
e turras infindáveis com os outros integrantes.
''Prefiro
fazer as coisas do meu jeito. É muito complicado e frustrante
você ficar explicando como gostaria que saísse tal música
e levar depois uma resposta negativa em tom de deboche ou
de desprezo. É melhor fazer tudo sozinho.''
Em
67, mudou para a América atrás de um sucesso. Conseguiu, graças
ao compacto ''Brown Eyed Girl''. Sua gravadora, Bang, propôs
então um LP ao cantor. Depois de realizado, insatisfeito com
o resultado, pediu para que não fosse lançado. Não foi atendido.
O LP, mal distribuído, tornou-se uma sombra na carreira. No
ano seguinte, já em nova casa, preparou seu mais delicado
e intimista trabalho: Astral Weeks. Com uma banda de músicos
de jazz, sem qualquer instrumento elétrico, Van Morrison realizou
um álbum dividido em duas suítes. O LP, apesar do pouco sucesso
comercial, foi aclamado em todo mundo e considerado por Bob
Dylan como um dos 10 maiores discos da história, mesmo conceito
dado pela crítica mundial.
Vieram
depois outros trabalhos ímpares como Moondance, Saint Dominic’s
Preview, ou o duplo ao vivo It’s Too Late to Stop Now, onde
mostrava sua forte ligação com o jazz e soul, música que aprendeu
a ouvir ainda garoto em Belfast, recebendo influências do
marinheiros norte-americanos que ali desembarcavam.
''Eles
chegavam com vários discos da América que não tínhamos na
Irlanda. Era excitante ouvir aquela música negra. Muitas vezes
trocávamos discos. Meu pai era um grande colecionador e aprendi
a ouvir em casa. ''
Durante
20 minutos ''e não mais do que isso, pois tenho um show para
ensaiar'' Morrison, contrariando sua fama de inacessível,
falou de sua carreira, de seu futuro e desdenhou o rótulo
de mito.
''Sou
apenas um cantor, nada mais''.
Pergunta
- O senhor está na ativa há 30 anos, fazendo discos com grande
regularidade e sempre com boas críticas. Qual o segredo?
Van Morrison - Segredo?
Deixe eu te contar uma coisa. Não há segredos, apenas trabalho.
Não gravo com preocupações comercias. Quando faço uma música,
ouço e vejo se me agrada. Se a resposta for positiva, eu lanço.
Entendeu?
Pergunta
- Mas o senhor nunca foi pressionado a ponto de ter que fazer
sucesso, superar um hit sobre o outro?
Van Morrison
- Não, porque eu tive poucos hits, na verdade, acho que só
um (“Gloria”). Nunca fui um artista como Bruce Springsteen
ou Michael Jackson, que vendem milhões.
Pergunta
- Por falar em Bruce, ele disse uma vez à Newsweek que não
sabia como um cantor como o senhor, que conseguia se superar
ano a ano, não fosse um fenômeno de venda, que fosse pouco
divulgado seu trabalho. O senhor concorda com ele?
Van Morrison -
Ele já havia me dito isso uma vez. Não concordo com ele, pois
tenho um público fiel. Não sou um perfil de pop star, não
sou bonito e nem tenho muito talento para ficar rebolando
em um palco como Mick Jagger. Estou bem feliz como sou hoje.
Pergunta
- Qual sua opinião sobre contemporâneos seus, como David Bowie,
Bob Dylan ou mesmo Mick Jagger?
Van Morriosn
- Bowie parece um ET, tenho sérias dúvidas que seja um ser
humano como nós (risos). Eu o vi naquela festa que ele fez
em Nova York, comemorando seus 50 anos (em 1997). Era uma
música alta, distorcida, com roupas estranhas. Comecei a rir
quando me imaginei na pele dele. Jagger é um performer extraordinário,
talvez o maior de todos os tempos. Ele é insuperável no palco.
Dylan é um grande amigo meu e talvez o maior letrista que
conheci Excursionamos juntos nos anos 70 e 80. Eu o comparo
seus escritos com os de Yeats (William Butler Yeats, poeta
irlandês) e Dylan Thomas.
Pergunta
- O senhor é considerado um mito para muitos irlandeses. Bono,
do U2, por exemplo, ficou muito triste quando foi descartado
pelo senhor e substituído por Cliff Richard no disco Avalon
Sunset. O que realmente aconteceu?
Van Morrison
- Foi pura e simplesmente um problema de datas. Inicialmente
ele cantaria comigo, mas como o U2 estava em uma excursão
e não havia datas disponíveis, chamei Cliff. Mas gosto desse
menino como também gosto do pessoal do Pogues, da Sinéad O’Connor,
são garotos muito íntegros.
Pergunta
- O U2 conseguiu alcançar um nível mundial inédito para a
Irlanda. Como o senhor analisa o sucesso deles?
Van Morrison
- Talvez o maior mérito da banda foi ter chegado ao ápice
sem mudar suas principais características. Eles sempre foram
selvagens, carismáticos, honestos e conseguiram passar isso
em suas composições e suas posturas. E fico muito orgulhoso
de que eles hoje se tornaram o maior grupo do mundo.
Pergunta
- Bono se transformou muito desde o início. No começo era
um pregador, que falava sem parar e encarava as pessoas no
olho. Hoje virou um performer, meio cínico. O senhor gostou
da mudança?
Van Morrison
- O importante é saber se ele mudou por dentro. Bono sofreu
muita cobrança pelas posturas meio messiânicas, como se ele
fosse o salvador do mundo. Ele me contou que depois de uma
crítica, ele resolveu mudar a postura, sem contudo, perder
a mensagem. ''Vou falar as mesmas coisas, mas todos verão
um novo Bono no palco e no disco''. E ele conseguiu.
Pergunta
- Depois de muito tempo na geladeira seus discos dos anos
70 saíram em CDs. Por que é tão difícil encontrar Van Morrison
nas lojas?
Van Morrison
- Essa é uma resposta longa e chata. Foi uma briga de direitos
autorais que venci apenas há dois anos atrás. E devem sair
mais.
Pergunta
- O senhor nunca gostou muito do seu primeiro lançamento Blowin'
Your Mind...
Van Morrison -
Você tem o disco? É extremamente irregular, com algumas boas
canções, mas sem nenhum sentido. Por isso preferia que nunca
tivesse saído.
Pergunta
- Mas depois o senhor gravou Astral Weeks, Moondance...
Resposta -
Astral Weeks é meu melhor trabalho, meu disco favorito.
E também adoro Moondance, acho um LP bem equilibrado
e muito bonito. Em geral, gosto dos meus trabalhos.
Pergunta - Conte a história de Irish Hearbeat que o senhor
fez com os Chieftains.
Van Morrison
- Esse disco é a prova que você pode ser punk também aos 40
anos (risos). Os Chieftains são a banda mais importante de
música celta da Irlanda. Durante anos eu tive vontade de fazer
um disco com músicas antigas e do folclore irlandês e provar
que venderia bem, que há espaço para esse tipo de som, inclusive
entre os jovens. Batemos o pé e convencemos a gravadora a
bancar o projeto. Foi um sucesso. Todo mundo falou no disco
e várias bandas adolescentes procuraram os Chieftains para
gravarem juntos. Hoje a gravadora implora para que façamos
um segundo trabalho. Só que para contrariar, digo não (risos).
Pergunta
- Para manter a atitude punk?
VanMorrison - Pode ser, embora eu nunca tenha
sido punk (risos).
Pergunta
- O senhor lançou dois discos em 97 e dois em 98 e um esse
ano. O seu ritmo de trabalho lembra muito o do falecido Frank
Zappa.
Van Morrison
- Zappa? Bem eu gosto de gravar, para mim é algo natural,
mas sou totalmente diferente dele, que era muito mais técnico
e inovador do que eu. Apenas acho natural compor. Sou compositor
e acho natural fazer álbuns. É minha profissão.
Pergunta
- É verdade que a casa que o senhor nasceu em Belfast virou
museu?
Van Morrison -
É sim, para minha vergonha. O pessoal da Sociedade Apreciadora
de Blues de Belfast inventou isto e ficou um tempão no meu
pé, até que eu concordasse. Concordei, porque achei uma homenagem
bonita e sincera, mas me sinto desconfortável com homenagens.
Pergunta
- John Lee Hooker lançou um CD, em 97, produzido pelo senhor.
Foi uma retribuição pela participação dele em Too Long in
Exile, de 93?
Van Morrison
- John é um grande homem, um cara extraordinário. Ele apareceu
um dia no estúdio, e disse que gostaria de regravar ''Gloria''
comigo. Aceitei de imediato o convite. Até hoje fico arrepiado
quando ouço a voz dele na gravação.
Pergunta
- Mas o solo de guitarra é seu. Inclusive ele diz ''play guitar
George, play guitar''...
Van Morrison -
Ele sempre me chamou pelo meu nome de batismo (seu nome
completo é George Ivan Morrison), nunca de outro jeito.
E o solo, bem, é apenas um solinho qualquer.
Pergunta
- Você continua sendo o maior cantor do mundo como John Lee
o definiu, em 72?
Van Morrison - Eu nunca fui o maior cantor do
mundo. John sempre gostou da minha voz, é verdade, mas há
muito exagero nisto. Foi apenas generosidade da parte dele.
Pergunta
- Qual o futuro da música?
Van Morrison
- Não há como prever. Todo mundo se preocupa em adivinhar
como será a música no futuro, com montes de computadores e
novas modas. Particularmente, acho que pessoas como eu, Dylan,
e até mesmo Frank Sinatra sempre terão seu público, ainda
que sejamos considerados ultrapassados ou fora de moda. A
boa música será sempre atemporal. O rock, assim como o jazz
ou o blues, já virou uma instituição e não morrerá jamais.