Talvez o melhor disco da carreira dos Mutantes, A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado marca a ruptura do grupo com a Tropicália em busca de uma leitura mais rock. A banda atinge a maturidade artística em um ano trágico para o país, mesmo com a conquista do tricampeonato mundial, no México, em 1970. Além disso, o ano marca a estréia de Rita Lee, em carreira-solo, apesar do ciúme de alguns integrantes. E, apesar de tudo isso, os Mutantes produzem um disco absolutamente clássico, cheio de grandes canções.
A vida para os Mutantes estava muito estranha no final de 1969.
A ditadura militar, o conservadorismo e as poucas perspectivas para uma banda tão satírica e com uma proposta avançada para os padrões, deixava o grupo em uma sinuca de bico.
Por esse motivo, o grupo resolveu dar um tempo após entregar à gravadora um novo disco pronto. Arnaldo resolveu viajar de moto até os Estados Unidos – na volta ela foi embarcada em um navio, enquanto voltou de avião – Rita foi passear na Europa. Apenas Serginho ficou no Brasil tocando, compondo e pesquisando.
O grupo já era, efetivamente um quinteto, com Dinho Leme e Liminha, embora no encarte do disco o grupo ainda seja creditado apenas ao trio original. Mas o que A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado entregava ao público era algo ousado demais para o Brasil de Médici e da Jules Rimet.
“Ando meio desligado / Eu nem sinto meus pés no chão / Olho e não vejo nada / Eu só penso se você me quer….”
Assim começava o disco, com “Ando Meio Desligado”, um dos maiores clássicos do grupo e uma das grandes faixas psicodélicas da história. R
ita em uma voz baixa, sensual, um piano tocado por Arnaldo e um belíssimo solo de guitarra por Serginho. Sim, os Mutantes mostrava que estavam afiadíssimos!
O disco causou muita polêmica, a começar pelas fotos da capa e contra-capa. Na capa, reproduz uma ilustração do Inferno de Dante, de Dante Alighieri, uma montagem feita no jardim da casa dos Baptista.
E se a capa era ousada, o que dirá da contra-capa, onde a doce e – aparentemente frágil – Rita divide a cama com Arnaldo e Sérgio, tendo Dinho Leme, ao fundo, como se fosse um guarda-costas tomando café.
Editado em março de 1970, trazia as seguintes faixas:
Lado A
1. “Ando Meio Desligado” – (Arnaldo Baptista / Rita Lee / Sérgio Dias)
2. “Quem Tem Medo de Brincar de Amor” – (Arnaldo Baptista / Rita Lee)
3. “Ave, Lúcifer” – (Arnaldo Baptista / Rita Lee / Élcio Decário)
4. “Desculpe, Babe” – (Arnaldo Baptista / Rita Lee)
5. “Meu Refrigerador Não Funciona” – (Arnaldo Baptista / Rita Lee / Sérgio Dias)
Lado B
1. “Hey Boy” – (Arnaldo Baptista / Élcio Decário)
2. “Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo” – (Roberto Carlos / Erasmo Carlos)
3. “Chão de Estrelas” – (Orestes Barbosa / Sílvio Caldas)
4. “Jogo de Calçada” – (Arnaldo Baptista / Wandler Cunha / Ilton Oliveira)
5. “Haleluia” – (Arnaldo Baptista)
6. “Oh! Mulher Infiel” – (Arnaldo Baptista)
Em termos técnicos e musicais, era uma inegável evolução e a banda contou com a participação do percussionista nas faixas Naná Vasconcelos em “Ando Meio Desligado” e “Desculpe, Baby”.
Mas o álbum traz várias surpresas, como “Ave, Lúcifer”, a divertida e ácida “Hey Boy” e a hilariante regravação do clássico “Chão de Estrelas”, de Sílvio Caldas e Orestes Barbosa. Cantada por Arnaldo em uma voz derramada, a música traz efeitos-sonoros inusitados para cada verso.
Vale ressaltar a belíssima interpretação de “Desculpe, Baby,” e o experimentalismo de “Meu Refrigerador Não Funciona”.
Os Mutantes também começavam a dar sinais de desgastes internos e essas tensões aumentaram quando a gravadora começou a pressionar Rita Lee para fazer uma carreira paralela à banda.
Rita já era uma figura cultural importante e participava de desfiles de modas, etc. André Midani, presidente do selo, a seduziu com a idéia e, dessa maneira, ela entrou em estúdio com o marido Arnaldo na direção musical e com produção de Manuel Barenbein. Todos os Mutantes estavam presentes, exceção de Serginho, substituído por Lanny Gordin na guitarra.
Desejado criar uma imagem totalmente diferente do grupo, Rita gravou um repertório diferente, misturando composições próprias, parcerias com Arnaldo, Élcio Décario e regravações de Beatles – “And I Love Her” virou “And I Love Him” por razões óbvias – e a versão de Joseph, original em francês de “Joseph”, de Georges Moustaki, feita por Nara Leão, que virou “José”.
E foi justamente “José”, o primeiro grande sucesso solo de Rita, Build Up.
O LP trazia as seguintes faixas:
Lado A
01. Sucesso, aqui vou eu (Build Up) (Rita Lee / Arnaldo Baptista)
02. Calma (Arnaldo Baptista)
03. Viagem ao fundo de mim (Rita Lee)
04. Precisamos de irmãos (Élcio Decário)
05. Macarrão com linguiça e pimentão (Rita Lee / Arnaldo Baptista)
Lado B
01. José (Joseph) (Georges Moustaki / Versão: Nara Leão)
02. Hulla-Hulla (Rita Lee / Élcio Decário)
03. And I love her (Lennon / McCartney)
04. Tempo nublado (Rita Lee / Élcio Decário)
05. Prisioneira do amor (Élcio Decário)
06. Eu vou me salvar (Rita Lee / Élcio Decário)
O sucesso de Rita causou certo ciúme nos integrantes, mas logo a banda estaria de volta em Paris, onde gravariam um disco arquivado por quase 30 anos – Tecnicolor – e novos vôos.
Mas isso é papo para outro dia. Um abraço e até a próxima coluna.
Discografia
Compactos
Suicida/Apocalipse (1966)
É Proibido Proibir/Ambiente de Festival (com Caetano Veloso) (1968)
A Minha Menina/Adeus Maria Fulô (1968)
Dois Mil e Um/Dom Quixote (1969)
Ando Meio Desligado/Não Vá Se Perder Por Aí (1969)
Top Top/It’s Very Nice Pra Xuxu (1971)
Mande Um Abraço Pra Velha (1972)
EPs
A Voz do Morto/Baby/Marcianita/Saudosismo (com Caetano Veloso) (1968)
Fuga nº II/Adeus, Maria Fulô/Dois Mil e Um/Bat Macumba (1969)
Hey Boy/Desculpe Babe/Ando Meio Desligado/Preciso Urgentemente Encontrar Um Amigo (1970)
Cavaleiros Negros/Tudo Bem/Balada do Amigo (1976)
Discos e CDs
Os Mutantes (1968)
Mutantes (1969)
A Divina Comédia ou Ando Meio Desligado (1970)
Jardim Elétrico (1971)
Mutantes e Seus Cometas no País do Baurets (1972)
Tudo Foi Feito Pelo Sol (1974)
Mutantes Ao Vivo (1976)
Algo Mais (1986)
O A e o Z (1992)
Personalidade: Mutantes (1994)
Millenium: Os Mutantes (1999)
Everything is Possible: The Best of Os Mutantes (1999)
Tecnicolor (2000)
A arte de Os Mutantes (2006)
Mutantes Ao Vivo – Barbican Theatre, Londres 2006 (2006)
De Volta Ao Planeta Dos Mutantes (2006)