A renda, ou o “ponto aéreo”
O manuseio de fios ou fibras se apresenta como uma constante na história da humanidade. A transformação de ‘linhas’, ou fibras, em superfícies planas ou com volume, de acordo com uma técnica específica, teria se iniciado com a cestaria e se desenvolvido por meio da tecelagem. Posteriormente surgiram os bordados, que utilizavam o tecido pronto como base para uma série de adornos elaborados com diferentes tipos de técnicas e linhas. Relatos e registros dos trabalhos de agulha (bordados e retículas) remontam a um passado remoto. De acordo com Ramos, “o tricot já era conhecido da mulher do Neolítico lacustre, dos antigos hebreus, dos indús, dos chineses” (1948:9). No entanto, na forma como as encontramos atualmente, as rendas surgiram na Europa em algum momento entre os séculos XV e XVI.
Com o passar do tempo, os bordados se aperfeiçoaram e se sofisticaram. De maneira gradual, o fundo (tecido) que servia de base ao trabalho foi retirado. As rendas surgiram como resultado do desejo “de quebrar a monotonia do bordado fechado sôbre um fundo compacto de tecido pré-existente” (Ramos,1948:13). Os bordados sobre fundos claros, em tecidos como tule ou musselina, constituem a primeira tentativa de dar maior leveza e transparência aos trabalhos de agulha. Em seguida, passou-se a cortar pedaços do fundo (tecido), entre os motivos bordados, constituindo os pontos denominados point coupé, punto tagliato ou o ‘ponto cortado’ característicos do bordado aberto. A partir desse processo, de recortar o tecido que serve de base para o bordado, desenvolveu-se a técnica do desfiado. Nela, ao invés de se cortar o tecido, retiravam-se dele determinados fios, conservando apenas aqueles necessários à sustentação do bordado. Desde então, surgiram diversas modalidades de retirada de fios, dentre as quais, as mais conhecidas no Brasil são: o labirinto e o crivo.
Pouco-a-pouco, os bordados foram se ‘expandindo’ para além do limite do tecido e surgiram as beiras serrilhadas. Essas eram ‘construídas’ sem necessidade de um fundo prévio de tecido (suporte), ou seja, eram feitas ‘no ar’. Dessa maneira, nasceu a renda como a conhecemos hoje. Ramos (1948) cita um livro italiano, cuja publicação é de 1528, no qual Antonio Tagliente faz uma relação dos pontos até então conhecidos. Entre eles encontra-se o “punto in aere”, ou ‘ponto no ar’. Acerca desse ponto, vejamos a afirmação de Ramos:
O punto in aere era realmente uma coisa inteiramente nova, pois enquanto que os vários pontos do bordado a jour ainda reconheciam um tecido prévio, mesmo que êste pràticamente desaparecesse depois de trabalhado nos pontos cortados e fios, tirados, o punto in aere trabalhava sem nenhum tecido préexistente; era feito, como dizia a expressão, “no ar”, e daí em diante a renda logrou uma autonomia completa do bordado. (1948:14)
A classificação de Nair Maria Becker (apud Fleury, 2002) distingue rendas de agulha, rendas especiais, rendas de bilro e rendas diversas. A articulação e o trançado de fios soltos, característica da renda de bilro também vem da antiguidade, conforme atesta a imagem de vaso grego – de uma mulher cruzando fios esticados por pesos de chumbo presos à sua extremidade (Ramos,1948). Em sua caracterização atual, a renda de bilro surgiu juntamente com a renda de agulha.
A origem da renda, tanto a “de agulha” como a “de bilros”, tem sido motivo de disputa entre artistas e autores de diferentes nacionalidades. Há alusões a focos de criação da renda por toda a Europa e para além dela. Alguns autores afirmam que foi a chegada dos mouros à Península Ibérica que introduziu a renda no continente europeu, enquanto outros apontam para a influência do macramé oriental no desenvolvimento da técnica. No entanto, os indícios históricos acirram a rivalidade entre italianos e belgas. Embora não haja concordância acerca do tema, a maior parte dos estudiosos defende que Veneza foi o berço da renda de agulha. Em relação à renda de bilro, também há discordâncias. Autores belgas afirmam que sua criação ocorreu em Flandres e apresentam como “prova” um quadro de Quentin Mesisys, de 1495, que retrata uma jovem fazendo rendas em uma almofada semelhante àquelas utilizadas na Bélgica. Outros autores, porém, se baseiam em análises de especialistas que atestam a autoria real do referido quadro como sendo de Quentin Metsys, filho do precedente, cuja obra teria sido criada em data posterior ao surgimento do bilro na Itália, país considerado, por esses autores, como o berço das renda de bilro; embora discordem acerca da cidade de origem: Milão e Gênova são as mais cotadas. Transcrevemos, a seguir, a citação que Ramos faz de Lefébure (1887:25), acerca dessa questão:
A referência histórica mais antiga que se conhece, às rendas de bilros, está num documento de partilha, feita em Milão, de duas irmãs, em 1493, onde se fala no italiano da época, em uma binda lavorata a poncto de doii fuxi per uno lenzolo, “uma faixa trabalhada a ponto de doze bilros para bordar um lencol” (1948:20).
É interessante destacar que a disputa pela origem da renda de bilro, entre Itália e Bélgica, também pode ser verificada por meio de dois mitos de origem distintos, um italiano e outro belga. A versão veneziana conta que um marinheiro ofereceu à sua noiva um ramo de coral denominado Mermaid’s lace, ou “renda da sereia”. A moça ficou encantada com a delicadeza da planta e, com receio que se desintegrasse com o tempo, tentou imitar seus lindos nós com a agulha. Sua tentativa teria resultado na criação da renda. A lenda de Flandres, por sua vez, é uma narrativa sobre a promessa de uma moça pobre que estava noiva. Ela renunciaria ao casamento se a Virgem Maria lhe apresentasse uma solução para a pobreza em que vivia sua família. Um dia, enquanto andava pelo campo, sua vista escureceu e ela viu fios trançados em seu avental. Ao retornar para casa, tentou reproduzir o desenho, criou a renda e assim, resolveu os problemas financeiros dos seus pais. Manteve-se fiel ao seu voto, até que um dia seu avental cobriu-se novamente com os fios da Virgem, trazendo a seguinte mensagem: “Desligo-te do teu voto” (Ramos,1948).
A renda não demorou a se difundir por toda Europa. No início do século XVI, o contexto italiano de centro comercial e cultural, favoreceu para que essa nova técnica se propagasse para além do continente europeu. Ramos ressalta que além dos negociantes e comerciantes, muitos artistas belgas iam à Itália estudar pintura e dessa maneira, a renda teria chegado rapidamente à Bélgica. Em 1533 Catarina de Médicis, filha do duque de Florença, casou-se com Henrique II, levou consigo para a França um artista já célebre na Itália, Vinciolo, por desenhar os motivos utilizados pelas bordadeiras e rendeiras. Na França, ele passou a criar modelos de rendas destinadas a enfeitar grandes golas, perneiras e bustos. Henrique II fez uso das golas para ocultar uma cicatriz que tinha no pescoço (Ramos,1948:15). Fleury destaca que, num primeiro período, o uso da renda era predominantemente masculino.
A renda foi incorporada como item de diferenciação social e seu uso tornou-se indicativo de status, distinção e poder. A renda “virou moda” em toda Europa e além da qualidade, a quantidade de rendas que ornava uma vestimenta estava diretamente relacionada à posição social de quem a trajava. A gola é um bom exemplo, uma vez que ganhou grandes proporções que, associado ao seu formado cilíndrico, “praticamente afogavam o pêscoço, mal deixando virar a cabeça” (Ramos,1948:16). O exagero e a ostentatividade no uso da renda fizeram com que a Igreja lançasse éditos suntuários, visando coibir tal “abuso”. Durante a Revolução Francesa, o uso da renda sofreu um declínio por ser associada àquilo que então se combatia: o luxo e a ostentação. No entanto, passado esse período voltou a ocupar função de distinção social, conforme ressalta a seguinte passagem:
Reis e nobres, rainhas e damas, sacerdotes e neófitos, todos utilizaram grandemente a renda no seu vestuário, quer exterior quer de uso interno, e o produto encareceu, tornando-se objeto de luxo para os que podiam utilizá-lo. A Revolução Francesa arrefeceu o ardor da moda, mas depois recrusdesceu seu uso tão forte quanto antes. Todos se sentiam embelezados com as rendas: punhos, golas, “colerettes”, “fraises”, peitilhos, blusas, vestidos inteiros enroupavam numa neboulosidade vaporosa de contos de fada, nas festas fidalgas ao som das valsas vienenses, as silhuetas delgadas das donzelas, os talhes padronizados dos cavaleiros. (Mendonça:1959:43)
Formas de “incorporação” da renda de bilro: Portugal & Brasil
A oposição usual que se faz, no ocidente, entre homem/mulher e entre cultura/natureza e que, geralmente, relaciona o homem à cultura e a mulher à natureza, também classifica os trabalhos manuais dos quais estamos falando, na esfera feminina. As atividades de fiação, tecelagem, costura, bordados ou rendas estão ligadas ao domínio feminino e essa imagem se encontra presente no imaginário de diversos povos. Entre os mitos mais conhecidos podemos citar o de Aracne, de origem grega. Aracne era uma jovem muito habilidosa como bordadeira e seus trabalhos eram admirados por todos. Tantos elogios levaram-na a se comparar à Atena, deusa da sabedoria, da inteligência e do ofício. Esse fato logo chegou aos ouvidos da deusa, que considerou tal ato de extrema petulância e resolveu desafiar Aracne em uma competição de bordados. Ambos os tapetes ficaram tão belos e majestosos, que a competição terminou empatada. Atena ficou furiosa com o resultado e transformou Aracne em uma aranha, condenando-a a tecer eternamente.
Outro mito reforça a suposta relação entre as mulheres, as atividades de fiação e a vida, ou a natureza: são as Moiras (versão grega) ou Parcas (romana). Moira, cujo nome significa ‘destino’, era mãe das três irmãs (Cloto, Láquesis e Átropos) responsáveis por determinar o curso da vida das pessoas, decidindo de modo inconteste questões sobre vida e morte. Esse trabalho se dava, respectivamente, por meio da fabricação, tecelagem e corte do fio da vida. Na versão romana, os personagens eram outros, mas suas funções eram as mesmas: Nona tecia o fio da vida; Décima determinava sua extensão e caminho e, Morta o cortava. Seus nomes fazem referência ao tempo da gravidez humana, que é de nove luas. Assim, Nona tece o fio durante a vida uterina da criança, até a nona lua, ao passo que Décima representa a vida a partir de seu nascimento, ou seja, da décima lua. Morta, por sua vez, é a extremidade final do fio, o fim da vida. Essas personagens eram as protetoras, tanto em Roma como na Grécia, das funções de gestação e nascimento, crescimento e desenvolvimento e morte, respectivamente.
O fato de as mulheres serem consideradas mais ‘íntimas dos trabalhos manuais e, ao mesmo tempo, dotadas de determinadas habilidades, não torna as mesma inatas. Ao contrário, a incorporação desse conhecimento é fruto de um longo processo, que exige paciência e empenho tanto por parte da aprendiz, quanto da ‘mestra’. É uma habilidade aprendida, incorporada ao longo de anos de observação e prática, de muitos erros e repetições. Nesse sentido, podemos evocar Bourdieu, quando argumenta que “what is ‘learned by body’ is not something that that one has, like knowledge that can be brandished, but something that one is” (grifo meu, 1995:73).
O ‘ser’ a que Bourdieu se refere é aquele definido pelo habitus, uma espécie de “círculo mágico”, no qual o indivíduo não se insere por decisão própria, mas por ‘berço’ou por um lento processo de iniciação equivalente a um segundo nascimento. Durante esse período, o sujeito internaliza e ‘incorpora’ o sistema classificatório próprio de sua classe, ou o habitus de classe10, definido como “a subjetive but non-individual system of internalized structures, commom schemes of perception, conception an action, with are the precondition of all objetification and apperception” (1995: 60). Nesse sentido, o processo de aprendizagem do saber-fazer da renda de bilro, seja ele formal (por meio das instituições de ensino) ou não, é de extrema importância para a compreensão desse saber enquanto elemento identitário.
Conforme vimos, no primeiro momento, o uso da renda era símbolo de distinção e nobreza. Com o passar o tempo, fazer renda tornou-se parte da instrução formal apropriada às moças ‘de família’ européias, sendo ensinadas em escolas e conventos de Portugal, Espanha, Alemanha, entre outros. No Brasil, a renda desembarcou do Reino juntamente com prendadas senhoras portuguesas que vinham acompanhando seus maridos, mas se difundiu de maneira específica.
Luiz Antônio Cunha, no livro entitulado “O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata” (2005), não faz referência aos trabalhos com fios, com exceção da tecelagem. Não obstante, o texto traz informações históricas acerca do ‘aviltamento’ e desvalorização do trabalho manual. Ele argumenta que nós herdamos da Antiguidade Clássica a concepção de trabalho manual como uma atividade indigna para um homem livre. Nesse sentido, entre os gregos, o escravagismo estabeleceu a separação entre a contemplação (cidadãos) e a ação (escravos), conforme assinala o seguinte trecho de Aristóteles (apud Cunha, 2005): “É preciso mesmo, para que sejam verdadeiramente cidadãos, que eles não se façam lavradores, porque o descanso lhes é necessário para fazer nascer a virtude em sua alma, e para executar os deveres civis”. No entanto, durante o Feudalismo o artesanato voltou a ser valorizado, mas agora em um âmbito diferente do anterior, do catolicismo. A Regula Benedict, normas redigidas em 540 d.C. para os monges beneditinos, trouxe uma nova concepção de trabalho, na qual “em vez de ser visto como condição para a virtude, a exemplo da Antiguidade, o ócio passou a ser definido como o pai dos vícios” (Cunha, 2005: 11). O autor destaca, no entanto, que a função do trabalho nos mosteiros era mais moral do que produtiva, aproximando-se da noção atual de hobby. Na cultura ibérica, a rejeição ao trabalho manual aparece satirizada por Montesquieu em Cartas persas:
Pois deve-se saber que, quando alguém tem algum mérito na Espanha pára de trabalhar: sua honra exige o repouso de seus membros. Quem fia sentado dez horas por dia alcança assim a metade a mais de consideração do que alguém que passa apenas cinco horas sentado, porque é nas cadeiras que se adquire nobreza (apud Cunha, 2005).
No Brasil, desde o início de sua colonização, as relações escravagistas afastaram os homens livres de grande parte dos trabalhos manuais, como o artesanato e a manufatura. Cunha chama atenção, no entanto, para o fato de que nem todas as profissões exclusivamente ‘manuais’ são vistas negativamente. O ofício de dentista, por exemplo, não foi afetado por tal concepção, uma vez que não se enquadra na representação depreciativa dos trabalhos manuais. Nesse sentido, ele considera mais apropriado “dizer que foi a rejeição do trabalho vil (isto é: reles, ordinário, miserável, insignificante, desprezível, infame) que levou ao preconceito contra o trabalho manual” (2005: 23).
À primeira vista, tais relatos poderiam se opor ao que foi dito anteriormente, sobre a renda e seu aspecto distintivo, tanto no que se refere às roupas que adornam como às moças de família, para as quais esses saberes eram de fundamental importância. Ao invés de contraditórios, acredito que um dado complementa e reforça o outro. Cunha não inclui nenhum trabalho de renda ou bordado na relação que fez, justamente porque tal habilidade não detem status de trabalho, nem para os livres e nem para os escravos. Podemos atestar esse fato por meio da não correspondência entre os trabalhos de linha e a caracterização que faz do trabalho vil. Nesse sentido, a renda de bilro e os bordados são enquadrados enquanto um passatempo exclusivamente feminino. Inicialmente, apenas as mulheres das camadas sociais mais abastadas praticavam essa atividade. De acordo com Carvalho, “o trabalho manual doméstico tinha funções de disciplinamento do corpo e do espírito e significava, para a mulher, um ócio moralmente valorizado” (2008: 76). Essa autora utiliza livros de etiqueta, revistas e textos sobre administração doméstica como fontes de pesquisa e ressalta o que fazem uso recorrente de termos como rotinas, hábitos e repetições. Os trabalhos domésticos, apresentados enquanto “rotinas introjetadas de comportamento” também podem ser vistos como um processo de disciplinamento. A postura, os gestos e as formas do corpo são elementos de hierarquização e distinção social, conforme retrata o seguinte trecho do periódico O Echo, citado por Carvalho (2005: 234):
A finura das mãos e a brancura da pelle que as cobre, são pelo geral um privilégio das pessôas de alto tom, e as veias mais ou menos pronunciadas, as protuberancias tendenciosas, a grossura dos dedos e as calosidades dão a conhecer o indivíduo que se entrega a trabalhos physicos. Com effeito, pela mão distingue-se o ferreiro, o sapateiro, o artista, o homem de letras, o que levou alguem a dizer que o homem traz nas mãos o sello de sua condição social. (2005: 234)
No Brasil, assim como em Portugal, os trabalhos manuais constituíam parte da educação formal das jovens, por enquadrar-se à formação artístico-doméstica considerada necessária às mulheres da época. Apesar de inúmeras técnicas constarem entre as ensinadas oficialmente no Brasil, seja em escolas ou conventos, não encontrei nenhuma referência acerca do ensino institucionalizado da renda de bilro. Mendonça, em seu trabalho sobre rendas e rendeiras no Nordeste (1959), menciona que a educação das filhas dos senhores-deengenho e latifundiários locais ficava a cargo de missionárias, que em grande parte pertenciam a ordens religiosas francesas. Constavam em seu currículo: português e francês, história, geografia, ciências naturais, pintura, música e aprendizado do trabalho manual de agulha. Dentre os trabalhos de agulha ensinados encontra-se ponto cruz, bordados em diferentes tecidos, ornamentos com pedras e lantejoulas, tricô, crochê e bainhas em geral. “Quanto às rendas, apenas aprendiam alguns tipos de rendas de agulhas, sendo completamente desconhecido nesses ambientes de educação católica feminina a renda de bilro” (1959: 45). Carvalho (2008: 77), por sua vez, enumera as disciplinas do currículo da Escola Profissional Feminina de São Paulo, criada em 1911: aulas de confecção, bordado e trabalhos artísticos (flores, pintura, cerâmica entre outros). Nesse caso, encontramos apenas um registro da renda de bilro, citada dentre outras como matéria-prima para apliques do curso de bordados.
Dessa maneira, a renda de bilro não constituía item do aprendizado feminino formal. Então, como se explica sua rápida difusão, tanto geográfica quanto social, no Brasil? Sugiro que tal difusão tenha se dado por outras vias, que não as oficiais. O saber-fazer da renda de bilro percorreu vias consideradas ‘informais’, como aquelas do parentesco, da amizade e da vizinhança. Nesse sentido, a casa se apresenta como espaço privilegiado de incorporação de tais hábitos e habilidades, ou conforme nos diria Bourdieu (1995), de objetificação do habitus. Foi no contexto da casa, ou no seu entorno, que o conhecimento da renda de bilro foi transmitido e difundido. Acerca desse aspecto, Mendonça faz a seguinte colocação:
A julgar pelos fatos históricos, presumo que na Região Sul, onde se localizaram os primeiros núcleos de colonização, alguma portuguesa se teria dado ao trabalho de ensinar a “troca dos bilros” a qualquer mestiça. E, observando-lhe a habilidade, ensinara-lhe sucessivamente os trutrus, os entremeios estreitos, os bicos, as aplicações, até chegar às rendas mais largas e mais difíciais. Daí em diante, de família em família, foi-se introduzindo o costume agradável de fazer renda nas horas de lazer (1959: 73).
No trecho transcrito acima, o sul do Brasil é apresentado como um dos primeiros centros ‘receptores’ da renda de bilro. A imigração açoriana naquela região justifica tal explicação; no entanto, existem outras versões, como a da influência holandesa no Nordeste, desde o século XVII. Essa região é, ainda hoje, conhecida foco de produção de renda de bilro, da qual o Ceará é o Estado de maior representação, no qual essa técnica é mais difundida e a rendeira é considerada como um “símbolo de identificação grupal” (Fleury, 2002: 18). A tese mais defendida pelos especialistas, acerca da chegada da renda de bilro no Brasil, é que tenha vindo juntamente com a colonização portuguesa. O fato é que, dentre suas similares, essa técnica foi a que atingiu maior abrangência geográfica, sendo encontrada em vários Estados: Pernambuco, Sergipe, Piauí, Maranhão, Amazonas, Pará, Rio de Janeiro e Santa Catarina. Nesse sentido, Dantas aponta para a possibilidade da renda de bilro ter procedências distintas:
Não obstante a escassez de fontes escritas, não podemos descartar a possibilidade de múltiplas origens, tendo sido a técnica aqui introduzida em diferentes momentos históricos como resultado do fluxo migratório de diversos grupos humanos, como aliás sugere a variação nos tipos de almofadas encontradas no Brasil (2006: 21).
Ao longo do processo de difusão, a renda foi aprendida por mulheres de todas as camadas sociais e, assim, teve seu uso e significado radicalmente alterados. Nesse sentido, tal conhecimento deixou de representar um elemento de status e distinção social próprio das mulheres das camadas sociais mais elevadas, sendo incorporado pelas demais mulheres e representando uma possibilidade de obtenção de renda. Dessa maneira, uma mesma atividade adquire significados e importância distintos em cada situação social na qual se apresenta. Assim, aquilo que antes era produzido por imposição social, ou por prazer, se inseriu em outra ordem, na qual tornou-se necessária por outro motivo que não a distinção, mas pelo dinheiro ao qual dá acesso. No entanto, o movimento contrário também acontece e, conforme poderemos constatar na Prainha, hoje a renda não se apresenta mais como uma atividade essencial à reprodução familiar, embora continue a ser feita por prazer. Adiante, poderemos verificar que tal possibilidade de ganho se inseriu à ordem social vigente de maneira adequada, isto é, sem provocar rupturas ou alterações significativas.
Fonte:
Trechos extraídos da Dissertação de Mestrado “Da “renda roubada” à renda exportada: a produção e a comercialização da renda de bilros em dois contextos cearenses”, de Júlia Dias Escobar Brussi
Outras Fontes: