Em um final de tarde de primavera, em que já se achegava o verão, estavam as tecelãs reunidas no Ateliê da Donzela, que era mãe e também anciã. Dali a mais alguns dias a Litha chegaria trazendo o dia mais longo e a noite mais curta do ano.
Após a grande tosquia da primavera, os carneiros corriam leves pelo campo, sem a sua densa lã. A tosquia acontecia somente uma vez por ano, ao final do inverno, pois a camada de lã era a proteção dos animais contra os rigores da estação. Mas no verão ela causava calor intenso e poderia prejudicar os animais, trazendo desconforto e podendo levar até à morte. Era raríssimo isso acontecer com os carneiros de Beatrix, mas já havia ocorrido ao menos uma vez de um dos carneiros ter fugido e ter sido encontrado tarde demais. Por isso todo o cuidado na contagem durante a tosquia. Nenhum deles poderia escapar do ritual. Os melhores carneiros forneciam até mais de quatro quilos de lã bruta.
Carneiros esquilados, a lã era enrolada, curtida, depois separada e tratada. Durante dias ela era lavada para tirar a gordura, que depois seria aproveitada para sabão.
Depois de lavada e seca, começaria a cardação. Naquela noite no galpão do atelier, entre bolos, pasteis e biscoitos, muita conversa e chávenas de chá, Beatrix estava reunida com as suas tecelãs.
Todas estavam animadas para o serão. Fazia tempo que Beatrix não participava pessoalmente da cardação e tinha saudades daqueles momentos, por isso uniu-se ao grupo. A agora baronesa sentou-se em um banco, e enquanto separava a lã para penteá-la no cardador propôs ao grupo.
– Então, quem começa a contar histórias? Olha que a noite já chega e ela será longa pois temos muito trabalho.– Comentou Beatrix.
Enquanto Laurinda separava a lã que cardaria em um cesto, ela propôs a Beatrix.
– Ora, porque não começa você? Nunca contou em detalhes o que lhe aconteceu em Alexandria e nem porque expulsaram você e aquele romano maluco do barco. Aliás, comece contando como foi sua chegada em Alexandria, o que você viu. Quero detalhes.
Ela disse e sorriu. Sentou-se no chão e colocou o cesto de lã entre as pernas. Na mão estavam os pentes para a cardação. Qualquer história que fosse ali contada, teria como acompanhamento a melodia do bater dos pentes.
As demais fiandeiras concordaram. Entre elas estava a anciã Atília, que a altura dos seus mais de setenta anos parecia bastante lépida e muito lúcida. Talvez ela tivesse mais idade, talvez menos, era difícil saber. Era magra alta, e seus cabelos brancos presos em coque eram sempre bem cuidados. Os seus olhos olhos azuis transmitiam um vigor e determinação que até assustavam. Seus traços manifestavam uma misteriosa beleza que indicava o quanto fora bela no passado. A sua maneira, a anciã continuava bela e de uma dignidade admirável. Assim era a fiandeira anciã, e velha druidesa, a “senhora Atropos” era cheia de vida. Uma das poucas praticantes da religião antiga naquelas terras.
– Acho que todos estamos curiosos. Você nunca nos contou em detalhes de fato o que se passou nas terras de Alexandria. Queremos suas histórias. Espero que sua convivência com aquele bando sem graça não tenha apodrecido a sua imaginação. Não sei como você não morre de tédio nessas reuniões, minha filha. Volte a admirar a hora dourada, essa letargia que eles trazem suga suas energias e te deixa pálida. – Comentou Atília
Depois dessa leve bronca, Atília apertou de leve as bochechas de Beatrix. A jovem senhora diante da anciã se convertia novamente em uma menina.
– Mas vamos às suas histórias.
Beatrix notou o desejo das fiandeiras em especial de Laurinda e Atília. A senhora ruiva sorriu diante do pedido delas, e ficou meio sem graça com a bronca de Atília, principalmente porque ela a tratava como criança.
A tecelã sabia muito bem de quem Atília estava falando. A druidesa nunca aceitou totalmente sua relação com o aristotelismo, e quanto mais próxima dos caminhos de Aristóteles mais Atília reclamava que aquilo deixava a “sua menina” pálida e sem energias. Beatrix realmente se sentia um pouco cansada as vezes, mas aquilo não era culpa dos clérigos, e sim do excesso de trabalho que ela acabava tomando para si. Era seu defeito. “Nada além do melhor é bom o suficiente”. Aquele lema perfeccionista tinha lá seu papel no cansaço da ruiva que se desdobrava entre vários espaços diferentes para exercer as atividades que gostava.
– Ah! Não seja injusta. Ninguém anda apodrecendo minha imaginação. Que ideia! Talvez me faltem mais aventuras, mas também não sou mais a jovem de antes, e a vida cobra seu preço. Carrego cicatrizes de guerra, de crueldades… Sou mãe, sou esposa, sou mulher. Eu já me arrisquei demais no mundo, fiz algumas maluquices, mas não me arrependo pois ao menos tenho as minhas histórias. E a hora dourada continua presente, ainda que não da forma que você esperava. Mas tem outros momentos que eu aprendi a apreciar além da escuridão da noite.
Eu sempre respeitei suas crenças, respeite pois as minhas e de Laurinda. Clotilde também fez a sua escolha.
Ela sorriu e tomou um gole de chá. As duas mulheres lançavam suas broncas mútuas entre sorrisos e cumplicidade.
– O que posso falar? Antes de chegar na melhor parte, vou falar da viagem. Bem, a viagem com o Gennaro foi dolorosa, por vários motivos, primeiro ele não parava de reclamar, segundo porque ele criou uma expectativa tão grande sobre “A Agulha” que eu me vi com a minha auto-estima pisoteada. Ao mesmo tempo em que ele parecia crer em minha capacidade, ele me espetava com desdém e incredulidade. Ele parecia nunca perdoar o fato de eu ser mulher. Parecia que quando ele esquecia esse detalhe era feliz e orgulhoso de mim, enquanto discípulo, mas quando ele lembrava se maldizia. Que inferno aquele homem. Ah! E a noite que a capitã se perdeu no mar? Em pleno Mediterrâneo, a escuridão da noite, então veio uma tempestade e nos desorientou. Passamos três dias a deriva sem vislumbrar uma estrela no céu nublado e logo a seguir uma calmaria que nos custou mais dias de viagem quando mal nos movíamos. O Gennaro chorava feito criancinha, enfurnado na cabine, ora praguejando, ora enchendo a cara de vinho.Tinha que dividir a cabine com ele, e era o inferno. Aproveitei a primeira noite de porre dele e escondi as bebidas todas que ele tinha comprado na França, fiz trancarem os barris todos no porão e não teve Christos que convencesse os franceses a abrir o porão. O romano queria matar-me. Ah! Como ele praguejava. Então, ele achou minha reserva de whisky. Gennaro passou dos limites e totalmente bêbado desfilou no convés de ceroulas e começou a cantar com a tripulação. Pior que depois ele não acreditou em nada do que eu contei que ele fez.
Ela disse e entre risos suspirou triste ao lembrar como a morte de Gennaro foi horripilante.