Jonath

Jonath repousava em sua poltrona em frente a lareira, enquanto degustava de uma taça de vinho tinto seco, não apreciava mais nada do que era doce e suave, preferia refletir em sua boca como a vida era para com ele, assim podia senti-la descer pela garganta, fingindo conseguir digeri-la assim como ela é.

Nessa noite havia algo de especial em sua casa, sua neta Ester o visitara, ele tinha muito apresso por ela, talvez para compensar todo carinho que deixou faltar à mãe da garotinha.


Percebia agora o quanto tinha sido injusto com sua pobre filha, nunca lhe dirigiu uma única palavra de afeto, reflexo da falta de amor que sentiu por sua esposa, com quem se casou a contra-gosto depois de engravidá-la. Mas agora tinha remorso, e se sentia culpado por sua filha ter se tornado a mulher amarga que é.

Ester era adorável e meiga, Jonath se deleitava com a ingenuidade de sua pequena neta, e de como ela se irritava cada vez que ele esquecia sua idade e perguntava:

– Você tem quantos anos mesmo? 12? – e ela com as maças do rosto avermelhadas de raiva respondia:

– Não vovô, eu já tenho 14!

Ele a observava vasculhando caixas antigas trazidas do sótão, onde jazia grande parte da historia da casa e da família, e se espantava com cada coisa que ela tirava das caixas e das lembranças que traziam.

Até que Ester achou alguns discos antigos, com artistas dificilmente conhecidos por pessoas de suas respectivas épocas, quanto mais por uma jovem garotinha, mas um disco chamou a atenção de Ester, era um disco perdido, sem nenhuma espécie de identificação, havia apenas algumas marcas que seu rotulo tinha sido raspado para não ser identificado.

Jonath sentiu uma sensação estranha ao ver aquele disco, mas não pode definir oque era, tentou se lembrar que disco era aquele, mas não conseguia, e não podia imaginar que não lembrava por se tratar de uma lembrança que ele mesmo se obrigou a apagar muito tempo atrás.

Muito curiosa Ester pediu para ouvi-lo, Jonath sentiu algo lhe dizendo pra não atender a esse pedido, mas nada o faria negar um pedido de sua neta.

Pegou uma velha vitrola e botou o disco para tocar.

Um breve silêncio no começo fez os dois imaginarem que não havia nada no disco, mas um som começou a emergir lentamente em meio ao silêncio que pairava no ar. Era uma melodia melancólica, e ao mesmo tempo suave e doce a ponto de acalmar a alma e diminuir as batidas do coração. Aquela musica foi entrando na mente de Jonath que quase a reconhecia, mas seu corpo todo gelou e ardeu, como se um sopro congelante passasse por ali na forma de uma voz feminina tão suave quanto a melodia, uma voz com um tom mórbido e sofrido, como alguém que perde um grande amor para sempre.

Jonath entrou em estado de transe, nem pode ouvir a voz de sua neta a dizer:- nossa que musica linda.

Sim, agora ele reconhecia a musica, e quando isso aconteceu milhares de lembranças e pensamentos dolorosos lhe passaram pela cabeça em segundos.

Como em um sonho, reviveu a pior lembrança de sua vida, uma lembrança que tanto tinha lutado para apagar de sua mente, mas que voltava a tona naquele momento.

 

Ele tinha por volta de 20 anos na época e tudo começou em uma reunião na casa de um amigo, ao sentir-se muito só em meio aquela multidão de gente que rodava pela casa, saiu e começou a caminhar pela rua, até que em uma esquina escura, viu uma garota solitária, se refugiando ali da selva que outros tinham chamado de festa, calma e imóvel, com seus olhos paralisados como se não tivessem mais vida, olhando para o nada.

O vento, que dava a entender que uma breve chuva chegaria, balançava seus cabelos, cobrindo e descobrindo sua face.

Encantado ele se aproximou, mas não perguntou seu nome, e nem disse oi, como se a conhecesse a anos começou uma conversa intima com a frase: – Essas festas só fazem me sentir mais só…

As palavras de um foram se encaixando com as do outro, parecendo que todas saiam da mesma mente, dando a impressão que os dois eram apenas um, separado em dois corpos. E faltando algumas horas para o amanhecer, o inevitável aconteceu, eles se beijaram, mais do que isso, sentiram o amor, como uma corrente elétrica, percorrer seus corpos.

E quando o tempo não estava mais em suas mãos, se despediram como se não fossem se ver nunca mais, apesar de combinarem se encontrar no dia seguinte. E assim se fez, no dia seguinte se reencontraram. Se alguém os visse imaginaria que não se viam a mais de um ano, pela intensidade do encontro.

Dia após dia assim se seguiu, o amor que um tinha para com o outro parecia interminável. Então em uma noite clara, onde a lua cheia servia de vela, eles se entregaram um ao outro, a beira de um lago de águas negras. E ali permaneceram, dois seres desnudos, não só de suas roupas, mas também de suas mascaras e algemas que pudessem os esconder ou prender.

Foi quando o jogo começou a se virar contra eles. Jonath sentiu aqueles delicados lábios tocarem seu ouvido e murmurar: – Eu te amo.

Seu coração disparou, e uma sensação estranha o tomou, ele temeu…

Teve medo de amar, de entregar não seu corpo, mas sua alma a outro coração, e é isso que representaria a ele ter de repetir as palavras dela. E em um impulso irracional ele se levantou e se arrumou rapidamente para partir, enquanto ela desnorteada buscava em vão uma resposta: – Oque foi? Oque eu fiz? Fale comigo.

Antes de ir ele apenas disse: – Não posso… – e se foi.

Daquele dia em diante ele perdeu as noites de sono em angustias e duvidas, não sabia oque dizer, não sabia oque pensar e não sabia oque fazer. Até que passado um mês, ele recebeu um bilhete dela, onde pedia para o encontrar apenas mais uma vez.

No dia marcado milhares de coisas passaram pela cabeça de Jonath, mas ele sabia que teria que decidir, imaginava que sua vida e seu futuro estavam em suas mãos naquele momento.

Pensava que preferia morrer a ter de viver aquele momento, olhá-la nos olhos, e entregar-se ou não, e sabia que depois daquele momento não teria mais volta.

A noite chegou, e com ela a hora do encontro, o local era um galpão abandonado, onde antes funcionou uma fabrica.

Chegando no local, estava tudo muito escuro, havia apenas algumas velas em um canto, onde havia uma vitrola, tocando aquela musica. Caminhou em direção as velas, e lá achou um bilhete, então o leu:

– Eu estava perdida no escuro, e você me estendeu as mãos, nelas eu coloquei minha alma, meu coração e minha vida. Sua pele me conheceu onde nenhum outro homem jamais se aproximou, e seus olhos mergulharam profundamente nos meus, como nem eu mesma imaginava ser possível. O inevitável aconteceu, depois de tudo, te entreguei também meu destino, e você o decidiu. Eu morri quando descobri que teria de viver sem teu amor, e farei do amor que senti por você minha lapide…

Ao ler aquilo um medo maior tomou seu coração, e percebeu o quanto tinha sido idiota, e que tentou fugir do amor dela, não por medo de se entregar, mas por medo de um dia o amor que um sentia pelo outro se acabar e levar com ele aquela fantasia perfeita, que mais parecia um sonho.

Foi quando a musica parou, fazendo-o olhar para a vitrola, e ver a marca de sangue que escorria até o chão. Ele se desesperou, não, ela não teria feito aquilo, ele ainda a encontraria e diria mil vezes que a amava, e o quanto tinha sido tolo…

Jonath seguiu a trilha de sangue cada vez mais nervoso, tropeçou em cada lata no caminho, queria evitar… Ainda não era tarde…

A trilha o levou até o lado de fora, onde deitada e encostada na parede verde de limo, estava ela, com os pulsos ensangüentados e a cabeça pendendo sobre o peito. Correu e a agarrou, aquilo só podia ser um pesadelo… Ela não podia estar morta… Não agora…

Enquanto a sacudia ele gritava: -Eu te amo… Não morra… Eu preciso de você…

Suas lagrimas se misturavam ao sangue dela, e ali permaneceu até o amanhecer. Imaginando que a qualquer hora acordaria daquele pesadelo, e ela tomaria vida e o beijaria como na ultima noite de amor que tiveram.

 

Ester puxava o casaco de seu avô e o chamava tentando acordá-lo do transe, mas ele não pode vê-la, viu apenas a taça de vinho escorregar de sua mão e cair no chão, tomou um caco em sua mão e o pressionou contra o outro pulso.

Sua neta estava muito assustada e gritava desesperada:- vovô para, vovô eu fiz alguma coisa errada? Vovô fala comigo,…

Ele apenas a olhou nos olhos, e disse:- Eu não posso…

E jogou-se nos braços gélidos da morte.


Por Gustavo Lima – lgml85@hotmail.com – Publicado em 31/07/2005

Author: Beatrix