Porque o defunto deixou a igreja: Origem dos cemitérios no século XVII

Aconteceu no mundo inteiro, um fenômeno curioso no final do século XVII. Por medida sanitária os sepultamentos passam a realizar-se em área aberta, nos chamados campos-santos ou cemitérios secularizados.

Isto já não era novidade,  japoneses, chineses, judeus e outros povos já traziam tradicionalizada a inumação a “céu aberto”. Os protestantes também, em muitos países o faziam. A mudança afetou principalmente os povos de predominância católica. No Brasil o enterro fora da igreja era reservado aos não-católicos, protestantes, judeus, muçulmanos, escravos e condenados, até que por lei, inspirada na correlação que se fez entre a transmissão de doenças através dos miasmas concentrados nas naves e criptas das igrejas, se instalaram os campos de sepultamento ensolarados.

 

“Esta a morte perfeita, nem lembranças, nem saudade, nem o nome sequer. Nem isso…”Lygia Telles(Venha ver o pôr-do-sol) 

 

Um outro motivo, que embora não diga respeito a realidade brasileira merece ser citado, diz respeito a laicização do Estado e sua separação da Igreja. Um exemplo digno de nota é o caso do Pére Lachaise de Paris, que apesar de receber o nome de um padre católico abriga tanto pessoas de várias religiões quanto não-religiosos, sendo um dos dos primeiros cemitérios laicos e também um dos mais famosos do mundo.

A urbanização acelerada e o crescimento das cidades é também uma importante razão para a criação dos cemitérios coletivos a céu aberto, visto que o crescimento populacional desenfreado não permitia mais o sepultamento em capelas e igrejas, que já não comportavam o aumento da demanda.

Numa primeira impressão o fato parece ter explicação simples,mas quando se atenta para o resultado ocorrido, sobre mais de um século, estudando-se o fantástico derrame de fortunas nas construções tumulárias pomposas, dos abastados de cada cidade, quando se verifica a diferença de comportamento entre a sepultura de igreja e a de construção livre arbitrada pela fantasia do usuário, e também quando se considera a história social e cultural do mesmo período, então se percebem outras razões no fenômeno. Não foi somente uma questão do ponto de vista higiênico, ou seja, uma razão metade prática e metade científica (e também política e social), da sociedade oitocentista.Se esta mudança acontecesse apenas por esse motivo, os cemitérios católicos em descampados teriam permanecido sóbrios e padronizados do mesmo modo que os erigidos por irmandades em mausoléus coletivos, ou como os de outras religiões.

A simplicidade dos padrões tradicionais e primitivos continuou caracterizando a sepultura coletiva enquanto o fausto e a arrogância da tumulária individual se desenvolveu espantosamente.

Portanto a verdadeira razão da grande mudança de atitude e gosto já existia há longos tempos no anseio de monumentalizar-se perante a comunidade. Era e sempre foi o desejo dos mais abastados, distinguir-se através de uma marca perene, de um objeto de consagração- o túmulo- pela atração de compara-se aos grandes personagens da história, sem a menor cerimônia, incluindo nesta leva os soberanos, os faraós, os reis, os papas e os príncipes, que mereceram sepulcros diferenciados dos demais.

Há de fato túmulos monumentais de papas de acordo com a pompa de cada época, contudo sempre integrados à construção da igreja. Há papas que não restaram por virtudes, e sim pela eventualidade do valor artístico, ou monumental de seus túmulos. De qualquer modo, erigia-se a igreja como bem público, integrada ao uso coletivo, e nela se fazia a sepultura do seu doador e benfeitor…

Entretanto em muitas igrejas, originalmente levantadas para serem o jazigo do doador, este descansa sob uma lápide que nem perturba o nível do chão.

A arte tumulária varia com a data, acompanha cada estilo de época, e de região, e jamais sonega o caráter, a espiritualidade do meio em que ocorre. Sob tal prisma, isto é, tomando-se a arte tumulária como representativa desses atributos, podemos entender as estruturas sociais e culturais dos meios, mesmo quando tal se acha restrita a uma parcela da população. Aliás tal restrição relaciona-se diretamente com o tipo de economia da sociedade, estando deste modo a arte cemiterial condicionada a fatores de caráter sociológico, econômico e cultural.

 

 

 

por Beatrix Algrave


 

BIBLIOGRAFIA CONSULTADA

  • FORGANES,Rosely.Os mortos que nunca descansam.In: Caminhos da Terra,:Azul,Março de 1998,Ano 07 nº3 Edição 71,p.66-71.

  • LANGALDE,Vincent de.Ésoterisme, Médiuns, Spirites du Père Lachaise. Paris: Vermet,Collection Cemetières de Paris et d’ailleurs,1990.

    SCAVONE, Míriam. Surpresas de bronze e mármore. In: Veja SP, : Abril, 30 de out., 1996. p. 12-19.

    VALLADARES, Clarival do Prado.Arte e Sociedade nos Cemitérios Brasileiros.Brasília: MEC-RJ, 1972.

Author: Beatrix