“Fujo para longe de ti,
evitando-te como a um inimigo,
mas incessantemente
te procuro em meu pensamento.
Trago tua imagem em minha memória
e assim me traio e contradigo,
eu te odeio, eu te amo.”
Carta de Abelardo a Heloísa.
“É certo que quanto maior é a
causa da dor, maior se faz
a necessidade de para ela
encontrar consolo, e este
ninguém pode me dar, além de ti.
Tu és a causa de minha pena,
e só tu podes me proporcionar conforto.
Só tu tens o poder de me entristecer,
de me fazer feliz ou trazer consolo.”
Carta de Heloísa a Abelardo
Um dos túmulos mais belos que se encontram no Pére Lachaise é o de Pierre Abélard e Héloïse, protagonistas de um trágico romance interrompido na Paris medieval do século XII. Pedro Abelardo era um filósofo que se apaixonou por Heloísa, de quem era tutor e que era 20 anos mais nova. Os dois tiveram um filho, Astrolábio, e casaram-se às escondidas. Quando o tio de Heloísa, um clérigo de Notre-Dame, soube, mandou castrar Abelardo que foi viver na abadia de St. Denis, onde continuou seus estudos. Heloise retirou-se para um convento. Mesmo distantes, os dois se corresponderam em longas e amorosas cartas, mas nunca mais se falaram pessoalmente. Hoje quase 700 anos depois, estão para sempre juntos numa tumba em estilo neogótico. Os corpos dos amantes, assim como de muitos outros mortos célebres, foram trazidos ao Pére Lachaise para incentivar as pessoas a enterrarem seus mortos lá, pois a princípio os parisienses não aceitavam de bom grado a necrópole, localizada distante do centro numa zona de difícil acesso.
Pierre Abélard (1079-1142) foi teólogo e filósofo francês, nascido em Le Pallet, perto de Nantes, considerado um dos maiores intelectuais do século XII com especial importância no campo da lógica, e precursor do racionalismo francês. Filho de um militar, foi discípulo de Roscelino de Copiègne e de Guilherme de Champeaux em Paris e de Anselmo de Laon (c.1070-1171). De vida atormentada e irrequieta, depois de algumas tentativas de ter sua própria escola a partir dos 22 anos, foi professor na Escola de Notre-Dame (1114-1118), primeira universidade livre da França, onde combateu as idéias de Guilherme, obrigando-o a modificá-las. No Concílio de Soisons (1121), algumas de suas teses foram condenadas e no Concílio de Sens (1140), outras foram rejeitadas e foi acusado de heresia. Foi nessa época que começou sua ligação amorosa com sua aluna de nome Héloise (1100-1164), sobrinha do cônego Fulbert, de desastrosas conseqüências . Após se apaixonar e casar secretamente, foi atacado e castrado por ordem do irado tio. Depois disto ele se tornou monge no mosteiro de Saint-Denise, onde continuou lecionando, e ela freira em um convento de Argenteuil, onde se tornou uma das mulheres mais famosas de sua época. Após o infeliz castigo, mesmo como monge, ele não deixou de ser polêmico e colecionou atritos com outros religiosos como bispos e até mesmo com seus colegas monges, criando muitos inimigos. Morreu na prelazia de Saint-Marcel, perto de Châlons-sur-Saône, onde viveu seus últimos dias de vida sob a proteção de Pedro o venerável de Cluny. Suas obras abrangiam três áreas: lógica, teologia e ética. Em seu primeiro e mais famoso livro Sic et non (1121-1122) já demonstrava sua polêmia personalidade: nele descreveu sobre 158 questões filosóficas e teológicas que dividiram opiniões. Também merecem destaque Glosas literais, Lógica nostrorum, Logica ingredientibus, Dialectica (a mais polêmica), Theologia summi boni, Commentaria in epistulam Pauli ad romanos, Expositio in hexaemeron e Ethica seu scito te ipsum e uma autobiografia Historia calamitatum ou História de minhas desventuras (clique aqui para ler a obra em inglês).
Pedro Abelardo ao lado de Hugo de San-Victor delinearão um novo quadro inovador dos processos educativos. Abelardo em sua obra autobiográfica, em que narra o atormentado amor por Heloísa, põe em destaque uma nova identidade humana, mais individual, mais racional, mais livre, que se propõe também como um modelo formativo. Assim no Epistolário retornam o Abelardo-professor e o Abelardo-homem, carregado de dúvidas, de paixões, estimulado por um desejo de busca que põe a razão (a dialética) como instrumento chave de uma formação propriamente humana. Com o já lembrado Sic et Non, Abelardo, porém, consigna à Escolástica o método de estudo e de estudo racional – articulado sobre a dialética – dos vários assuntos. Com sua tomada de posição em torno da questão dos universais (os universais são conceitos de gênero – ex., humanidade – : eles existem in re, in mente ou são puros nomina?), que interpreta estes como conceitos (seguindo Aristóteles), tendo estatuto lógico e lingüístico, ele delineia uma concepção crítica do pensamento e da pesquisa filosófica que diz respeito à formação de um sujeito como intelectual autônomo e, justamente, crítico, já muito próximo do sujeito moderno.
Abelardo e Heloísa – Uma História de Amor. (este trecho trata-se de um resumo romanceado sobre a história dos dois)
Conhecidos como os amantes imortais, ambos viveram em Paris no século XII. O romance entre Heloísa e o filósofo Pedro Abelardo iniciou-se em Paris, no período entre o final da Idade Média e o início da Renascença.
Abelardo havia sido transferido recentemente e nomeado professor pela Escola Catedral de Notre Dame, tornando-se, em pouco tempo, muito conhecido por admirar os filósofos não-cristãos, numa época de forte poder da Igreja Católica.
Heloísa, que já ouvira falar sobre Abelardo e se interessava por suas teorias polêmicas, tentou aproximar-se dele através de seus professores, mas suas tentativas foram em vão.
Numa tarde Heloísa saiu para passear com sua criada Sibyle, e aproximou-se de um grupo de estudantes reunidos em torno de alguém. Seu chapéu foi levado pelo vento, indo parar justamente nos pés do jovem que era o centro da atenções, o mestre Abelardo. Ao escutar seu nome, o coração de Heloísa disparou. Ele apanhou o chapéu, e quando Heloísa aproximou-se para pegá-lo, ele logo a reconheceu como Heloísa de Notre Dame, convidando-a para juntar-se ao grupo. Risos jocosos foram ouvidos, mas cessaram imediatamente quando o olhar dos dois posaram um sobre o outro. Heloísa recolocou seu chapéu, fez uma reverência a Abelardo e se retirou.
Desde esse encontro, porém, Heloísa não consegui mais esquecer Abelardo. Fingiu estar doente, dispensou seus antigos professores e passou a interessar-se pelas obras de Platão e Ovídio, pelo Cântico dos Cânticos, pela alquimia e pelo estudo dos filtros, essências e ervas. Ela sabia que Abelardo seria atraído por suas atividades e viria até elas. Quando ficou sabendo dos estudos de Heloísa, conforme previsto por ela Abelardo imediatamente a procurou.
Abelardo tornou-se amigo de Fulbert de Notre Dame, tio e tutor de Heloísa que logo o aceitou como o mais novo professor de sua sobrinha, hospedando-o em sua casa, em troca das aulas noturnas que ele lhe daria. Em pouco tempo essas aulas passaram a ser ansiosamente aguardadas e, sem demora, contando com a confiança de Fulbert, passaram a ficar a sós. Fulbert ia dormir, e a criada retirava-se discretamente para o quarto ao lado.
Em alguns meses, conheciam-se muito bem, e só tinham paz quando estavam juntos. Um dia Abelardo tirou o cinto que prendi a túnica de Heloísa e os dois se amaram apaixonadamente. A partir desse momento Abelardo passou a se desinteressar-se de tudo, só pensando em Heloísa, descuidando-se de suas obrigações como professor.
Os problemas começaram a surgir. Primeiro, esse amor começou a esbarrar nos conceitos da época, quando os intelectuais, como Heloísa e Abelardo, racionalizavam o amor, acreditando que os impulsos sensuais deveriam ser reprimidos pelo intelecto. Não havia lugar para o desejo, que era um componente muito forte no relacionamento dos dois, originando um intenso conflitos para ambos. Ao mesmo tempo Sibyle, a criada, adoecera, e uma outra serva que a substituíra encontrou uma carta de Abelardo dirigida a Heloísa, e a entregou a Fulbert, que imediatamente o expulsou. No entanto isso não foi suficiente para separá-lo.
Heloísa preparou poções para seu tio dormir e, com a ajuda da criada Sibyle, Abelardo foi conduzido ao porão, local que passou a ser o ponto de encontro dos dois.
Uma noite, porém, alertado por outra criada, Fulbert acabou por descobri-los. Heloísa foi espancada, e a casa passou a ser cuidadosamente vigiada. Mesmo assim o amor de Abelardo e Heloísa não diminuiu, e eles passaram a se encontrar onde pudessem, em sacristias, confessionários e catedrais, os únicos lugares que Heloísa podia freqüentar sem acompanhantes a seu lado.
Heloísa acabou engravidando, e para evitar aquele escândalo, Abelardo levou-a à aldeia de Pallet, situada no interior da França. Ali, Abelardo deixou Heloísa aos cuidados de sua irmã e voltou a Paris, mas não agüentou a solidão que sentia, longe de sua amada, e resolveu falar com Fulbert, para pedir seu perdão e a mão de Heloísa em casamento.
Surpreendentemente, Fulbert o perdoou e concordou com o casamento.
Ao receber as boas novas, Heloísa, deixando a criança com a irmã de Abelardo, voltou a Paris, sentindo, no entanto, um prenúncio de tragédia. Casaram-se no meio da noite, às pressas, numa pequena ala da Catedral de Notre Dame, sem nem trocar alianças ou um beijo diante do sacerdote.
O sigilo do casamento não durou muito, e logo começaram a zombar de Heloísa e da educação que Fulbert dera a ela. Ofendido, Fulbert resolveu dar um fim àquilo tudo. Contratou dois carrascos e pagou-os para invadirem o quarto de Abelardo durante a noite e arrancar-lhe o membro viril.
Após essa tragédia, Abelardo e Heloísa jamais voltaram a se falar.
Ela ingressou no convento de Santa Maria de Argenteul, em profundo estado de depressão, só retornando à vida aos poucos, conforme as notícias de melhora de seu amado iam surgindo. Para tentar amenizar a dor que sentiam pela falta um do outro, ambos passaram a dedicar-se exclusivamente ao trabalho.
Abelardo construiu uma escola-mosteiro ao lado da escola-convento de Heloísa. Viam-se diariamente, mas não se falavam nunca. Apenas trocavam cartas apaixonadas.
Abelardo morreu em 142, com 63 anos, Heloísa ergueu um grande sepulcro em sua homenagem, e faleceu algum tempo depois, sendo, por iniciativa de suas alunas, sepultada ao lado de Abelardo.
Conta-se que, ao abrirem a sepultura de Abelardo, para ali depositarem Heloísa, encontraram seu corpo ainda intacto e de braços abertos, como se estivesse aguardando a chegada de Heloísa.
Leia mais esse texto sobre um interessante livro que trata da correspondência trocada entre os dois:
Uma história de amor: Abelardo e Heloísa
por Alexandre Piccolo
O caso de Abelardo e Heloísa é uma história de Amor das antigas, anterior a Romeu e Julieta, do século XII para ser mais preciso. Pouco sabemos de verdade sobre este amor entre professor e aluna, sequer se existiu. O livro em si, Correspondência de Abelardo e Heloísa *, além de um breve estudo inicial, nos apresenta cinco epístolas – gênero muito difundido na antiguidade latina – trocadas entre os famosos “amantes”, as quais juntas costuram um tecido de uma apaixonante colcha de casal medieval, sem rasgá-lo ou remendá-lo por completo. Ao contrário, deixam dúvidas descobertas tão atrozes que inúmeros estudos e hipóteses são bordados há quase 1000 anos. Enfim, um belíssimo texto no sentido pleno.
A primeira das cartas é, na verdade, uma confissão de Abelardo a um amigo. Toda a história dos infortúnios é contada longa e complacentemente: das aulas (e confusões) de filosofia que o professor ministrava nas incipientes escolas medievais, dos primeiros encontros furtivos com a bela e jovem Heloísa ao trágico episódio da castração do protagonista (sim, castração!) e o longo e conseqüente arrefecimento de uma “concupisciência literária” amaldiçoada na obra. O gênero epistolar e a tragédia da emasculação podem parecer desestimulantes ou desagradáveis (principalmente aos homens…) mas, ao contrário, a prosa é por demais envolvente e impetuosa. O tom íntimo e confessional da carta, bem como a retórica e erudição do autor – exageros de linguagem característicos destes tempos “barrocos” – cativam e inebriam, ainda que desconfiemos da soberba do protagonista em suas confissões, ora puramente arrogante, ora calorosa: “Sob o pretexto de estudar, entregávamos inteiramente ao amor. As lições nos propiciavam esses tête-à-tête secretos que o amor anseia. Os livros permaneciam abertos, mas o amor mais do que nossa leitura era o objeto dos nossos diálogos; trocávamos mais beijos do que proposições sábias. Minhas mãos voltavam com mais freqüência a seus seios do que a nossos livros. O amor mais freqüentemente se buscava nos olhos de um e outro do que a atenção os dirigia sobre o texto” [1].
Heloísa coloca sua colher na obra quando recebe e lê por acaso a carta endereçada ao amigo de Abelardo. Responde-lhe então com o fervor e a paixão do amor feminino, mas um amor já contido e amargurado pela desgraça dos infortúnios que lhes afligira (certamente, muito mais a ele!), um amor já em princípio de revolta, tamanha submissão religiosa por ela aceita – ambos dedicam-se à vida monástica após o fracasso amoroso. Abelardo recebe e responde a epístola de sua amada, porém ensaia uma resposta com ensinamentos de uma frieza tão grande que chega a parecer desdém aos pedidos de boa notícia que Heloísa tanto lhe rogava. Aí ela “roda a baiana” na quarta carta – um reconhecido ponto alto da obra.
Ela confessa-lhe um amor inimaginável, supremo e irrestrito, acima do Deus a quem ela serve por obrigação do pedido de Abelardo, unicamente como prova de amor incondicional a seu amado terreno. Assim, Heloísa profere vitupérios ao destino (a deusa Fortuna, para a cultura latina), à sabedoria, à prudentia, à temperança, à castidade e a todos os valores que lhe parecem falsos por terem lhes conduzido à infeliz ruína amorosa – resumo de sua vida conjugal. E o aparato filosófico e bíblico esquenta o conflito entre intelecto monástico e mente pecaminosa, caliente em diversas passagens: “Os prazeres amorosos que juntos experimentamos têm para mim tanta doçura que não consigo detestá-los, nem mesmo expulsá-los de minha memória. Para onde quer que eu me volte, eles se apresentam a em meus olhos e despertam meus desejos. Sua ilusão não poupa meu sono. Até durante as solenidades da missa, em que a prece deveria ser mais pura ainda, imagens obscenas assaltam minha pobre alma e a ocupam bem mais do que o ofício. Longe de gemer as faltas que cometi, penso suspirando naquelas que não pude cometer” [2]. Nem os homens nem mesmo as mulheres escapam a suas vociferações (“As mulheres não poderão então jamais conduzir os grandes homens senão à ruína” [3]) – argumento a favor da manipulação e falsidade da própria obra.
Abelardo encerra neste livro o conjunto das correspondências com uma carta consoladora. Uma espécie de tratado que defende os valores sacrossantos do matrimônio (pois resignou-se a acreditar que seu casamento fora um atentado ao pudor – ah, se eles imaginassem a lascívia do mundo de hoje…), uma contra-argumentação sólida dos pontos fortes expostos por Heloísa que se assemelha a um primeiro tratado de pura retórica. E digo “neste livro” e “primeiro tratado” pois parece haver continuação desta seqüência de epístolas, de essência puramente filosófica, diferente destas apaixonantes cartas – tema de novos tratados para um outro livro. Para os mais eufóricos com o cinema, há uma adaptação de 1988 deste caso de amor para as telas, o filme Stealing Heaven (traduzido no Brasil como Em nome de Deus), que, além das cores reluzentes, não guarda a mágica das palavras, ainda que conte quase a mesma história…
Há um encaixe perfeito entre as epístolas (ou coesão do conjunto, um discurso compacto e persuasivo, segundo Duby [4]) que nos faz questionar não só a autenticidade da correspondência mas também o propósito monástico de tais escritos. Há um ambiente cristão misturado a valores pagãos, o que tempera a imaginação com muito misticismo medieval. Uns se questionam: houve mesmo tamanho desencontro e sofrimento nesta tragédia, no sentido medieval do termo (ação com final infeliz), como nos lembra Zumthor no prefácio do livro. Há a valorização da tradição latina em confronto com o ideal cavaleiresco que surge no período e inúmeros outros apontamentos. Enfim, muito já se falou e ainda é possível falar sobre esta facinante história de amor de tão longes tempos. E uma infinidade de leituras permite também uma inesgotável gama de análises – proposta que foge do objetivo deste curto ensaio. Como este amor fracassou ou por quê Abelardo foi castrado? – estas ciladas da curiosidade ficam ao leitor e leitora que desejam saber mais de uma história de Amor que vale a pena ser conhecida.
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* Correspondência de Abelardo e Heloísa, tradução do francês de Lúcia Santana Martins, prefácio de Paul Zumthor, ed. Martins Fontes, SP – 2000, p. 41
[1] Op. cit. , p. 41
[2] Op. cit., p. 119
[3] Op. cit., p. 116
[4] Duby, G., Heloísa, in Heloísa, Isolda e outras damas no século XII, Companhia das Letras, SP – 1995, p.68
Fontes:
Na internet:
Medieval Sourcebook (em inglês)
The Humanities Handbook (em inglês)
Chronicles of Love and Resentment (em inglês)
L’Encyclopédie de L’Agora – Pierre Abélard (em francês)
Abelard – Filósofo e Teólogo (em inglês)
Pierre Abelard – vida e obra (dicionário filosófico em inglês)
A Medieval Love Story
Bibliografia:
DUBY, George .Heloísa, Isolda e outras damas no século XII. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
CAMPI, Franco. História da Pedagogia. São Paulo: UNESP, 1999.