Nada é mais sagrado numa família do que a honra dos seus membros, mas este tesouro chega a desbotar-se, por precioso que possa ser, e os que estão interessados em preservá-lo deverão fazê-lo encarregando-se eles próprios do papel humilhante de perseguidores das infelizes criaturas que os ofendem? Não seria razoável pôr em equação os horrores com que atormentam a sua vítima e esta lesão tantas vezes quimérica que se queixam de ter recebido? Qual, enfim, é mais culpado aos olhos da razão, uma moça fraca e enganada ou um parente qualquer que, para se erigir em vingador duma família, se torna o carrasco desta infortunada? O acontecimento que vamos pôr sob os olhos dos nossos leitores fará, talvez, decidir a questão.
O conde de Luxeuil, tenente-general, homem de cerca de cinquenta e seis a cinquenta e sete anos, regressava dum posto situado numa das suas terras da Picardia quando, ao passar pela floresta de Compiégne, por volta das seis duma tarde do fim de Novembro, ouviu gritos de mulher que lhe pareceram provir dos lados duma das estradas vizinhas da principal que atravessava; detém-se e ordena ao criado de quarto que corria ao lado da cadeirinha que fosse ver o que se passava. Informam-no de que se trata duma moça de dezasseis a dezassete anos, afogada em sangue, sem que fosse, todavia, possível distinguir onde se encontravam os ferimentos e que implorava socorro; o próprio conde logo se apeia, voa para junto da desafortunada, sente igualmente dificuldade, por causa da falta de luz, em distinguir donde pode vir o sangue que perde mas, das respostas que recebe, vê por fim que é da veia dos braços onde se costuma fazer a sangria.
– Menina – disse o conde, depois de ter assistido a criatura dentro do que lhe era possível -, não estou aqui em situação de lhe perguntar as causas das suas infelicidades e a Menina não está também em estado de mas contar; suba para a minha viatura, peço-lhe, e que os nossos únicos cuidados sejam agora para si, os de se tranquilizar e, para mim, os de auxiliá-la.
Dizendo isto o Senhor de Luxeuil, ajudado pelo criado de quarto, transporta a pobre moça para a cadeirinha, e partem.
Mal esta interessante pessoa se viu em segurança, quis balbuciar algumas expressões de reconhecimento mas o conde, suplicando-lhe para não falar, disse-lhe:
– Amanhã, Menina, amanhã contar-me-á, espero, tudo a seu respeito mas hoje, pela autoridade que me confere sobre si a minha idade e a alegria que senti por lhe ser útil, peço-lhe instantemente que apenas pense em acalmar-se.
Chegam; para evitar dar nas vistas, o conde manda envolver a sua protegida num capote de homem e fá-la conduzir pelo criado de quarto a um apartamento cómodo situado num dos extremos do seu palácio, onde a vem ver, assim que acabou de receber as efusões da mulher e do filho que o esperavam para cear nessa noite.
O conde, ao vir visitar a sua doente, levou consigo um cirurgião; a jovem é examinada, encontram-na num abatimento indizível, a palidez do rosto quase parecia anunciar que lhe restavam apenas alguns instantes de vida, embora não tivesse qualquer ferimento; a sua fraqueza provinha, disse ela, da enorme quantidade de sangue que diariamente perdera nos últimos três meses mas, quando ia relatar ao conde a causa sobrenatural desta perda prodigiosa, caiu de fraqueza e o cirurgião declarou que deviam deixá-la tranquila e contentarem-se em lhe administrar reconstituintes e cordiais.
A nossa jovem infortunada passou uma noite bastante boa mas durante seis dias não se achou em condições de informar o seu benfeitor dos acontecimentos que lhe diziam respeito; no sétimo dia, ao fim da tarde, ignorando ainda toda a gente na casa do conde que ela aí estivesse escondida, e não sabendo ela mesma, devido às precauções tomadas, onde se encontrava, suplicou ao conde que a ouvisse e que lhe concedesse, sobretudo, a sua indulgência, quaisquer que fossem as faltas que lhe confessasse. O Senhor de Luxeuil tomou assento, garantiu à protegida que nunca lhe retiraria o interesse que ela nascera para despertar, e a nossa bela aventureira começou assim a história das suas desgraças.
História da Menina de Tourville
Sou filha, Senhor, do presidente de Tourville, demasiado conhecido e demasiado distinto no seu estado para lhe ser um estranho. Desde há dois anos que saí do convento, nunca mais abandonei a casa de meu pai; tendo perdido a minha mãe muito nova, só ele se ocupava da minha educação e posso afirmar que nada negligenciava para me dar todas as graças e todos os atributos do meu sexo. Estas atenções, estes projectos que o pai anunciava de me casar o mais vantajosamente possível, talvez mesmo um pouco de predilecção, tudo isto, dizia eu, em breve despertou a inveja dos meus irmãos, dos quais um, presidente há três anos, acaba de completar vinte e seis anos e o outro, conselheiro recente, terá daqui a pouco vinte e quatro.
Não imaginava então ser tão fortemente odiada por eles como hoje tenho de estar convencida; nada tendo feito para merecer estes seus sentimentos, vivia no doce engano de que me dedicavam os mesmos que o meu coração por eles inocentemente formara. Oh, Céu misericordioso, como me iludia! Exceptuado o momento dedicado aos cuidados da minha educação, desfrutava em casa de meu pai da maior liberdade; deixando a minha conduta entregue a mim mesma, a nada me obrigava e tinha até, desde há perto de dezoito meses, autorização para passear de manhã com a criada de quarto ou no terraço das Tulherias ou por entre as muralhas junto das quais habitamos e de também fazer com ela, quer passeando a pé, quer numa viatura de meu pai, algumas visitas a amigas minhas ou a parentes, desde que não fosse a horas em que uma moça não pode ficar sozinha num círculo social. Toda a causa das minhas desgraças provém desta funesta liberdade, eis por que dela lhe falo, Senhor, provesse a Deus nunca a ter tido.
Há um ano que passeando como acabo de lhe dizer com a criada de quarto, que se chama Julie, numa álea obscura das Tulherias, onde me supunha mais só do que no terraço e onde me parecia que respirava um ar mais puro, abordam-nos seis jovens estouvados e fazem-nos ver pela indignidade dos seus propósitos que nos tomavam a ambas pelo que se chama mulheres da vida. Horrivelmente embaraçada com uma tal cena, e não sabendo como escapar-lhe, ia buscar a salvação na fuga, quando um jovem que me habituara a ver muitas vezes passear sozinho quase às mesmas horas que eu, e cujo exterior apenas revelava honestidade, calhou a passar quando eu estava neste cruel embaraço.
– Senhor – gritei, chamando-o -, não tenho a honra de ser sua conhecida mas encontramo-nos aqui quase todas as manhãs; o que pode ver de mim deve tê-lo convencido, gabo-me, de que não sou uma moça para aventuras; peço-lhe instantemente que me dê a mão a fim de me conduzir a casa e de me livrar destes bandidos.
O Senhor de…, permitir-me-á calar o seu nome, muitas razões a tal me forçam, logo acorre, afasta os gaiatos que me rodeiam, convence-os do seu erro pelo ar de delicadeza e de respeito com que me aborda, toma-me o braço e conduz-me para fora do jardim.
– Menina – disse-me, pouco antes de chegarmos à nossa porta -, acho prudente deixá-la aqui; se a levo a sua casa, será preciso explicar porquê; talvez nasça daí a proibição de passear sozinha; oculte, pois, o que acaba de suceder e continue a vir como tem feito a esta mesma álea, já que isso lhe agrada e os seus pais lho permitem. Não deixarei um só dia de lá ir e encontrar-me-á sempre pronto a perder a vida se for necessário, para me opor a que perturbem a sua tranquilidade.
Uma tal precaução, uma oferta tão obsequiosa, tudo isso me fez lançar os olhos sobre o jovem com um pouco mais de interesse do que imaginara fazê-lo até então; achando-o dois ou três anos mais velho do que eu e com uma figura encantadora, corei ao agradecer-lhe e as feições inflamadas deste deus sedutor que faz hoje a minha infelicidade penetram-me no coração, antes de ter tempo de me opor. Separámo-nos, mas julguei ver, na maneira como o Senhor de… me deixava, que lhe causara a mesma impressão que me acabava de produzir. Regressei a casa de meu pai, nada disse e voltei no dia seguinte à mesma álea, conduzida por um sentimento mais forte do que eu, que me teria feito enfrentar todos os perigos que lá se pudessem encontrar… que digo eu, que talvez mos fizesse desejar, só para ter o prazer de ser salva pelo mesmo homem… Pinto-lhe a minha alma, Senhor, talvez com demasiada ingenuidade mas prometeu-me indulgência e cada novo traço da minha história vai-lhe mostrar como dela preciso; não é a única imprudência que me verá fazer, não será a única vez em que precisarei da sua piedade.
O Senhor de… surgiu na álea seis minutos depois de mim e, abordando-me logo que me viu:
– Atrevo-me a perguntar-lhe, Menina – disse-me -, se a aventura de ontem não deu nas vistas e se não teve maçadas?
Assegurei-lhe que não, disse-lhe que aproveitara os seus conselhos, que lhe agradecia e que me alegrava por nada perturbar o prazer que sentia vindo assim respirar a frescura da manhã.
– Se nisso encontra alguns encantos, Menina – replicou o Senhor de… com o tom mais honesto -, os que têm a felicidade de aí a ver sentem-nos, sem dúvida, ainda mais vivos, e se tomei a liberdade de a aconselhar ontem a não deixar ao acaso nada que pudesse perturbar os seus passeios, o certo é que não me deve quaisquer agradecimentos; ouso garantir-lhe, Menina, que trabalhei menos por si do que a Menina por mim.
E os seus olhares, ao dizer isto, voltavam-se para os meus com tanta expressão… oh, Senhor, seria preciso que fosse a este homem tão gentil que eu devesse um dia as minhas desgraças! Respondi honestamente às suas palavras, a conversa entabulou-se, demos duas voltas juntos e o Senhor de… não me deixou sem solicitar que lhe revelasse a quem tivera a felicidade de prestar serviço na véspera; não julguei dever-lho ocultar, disse-me também quem era e separámo-nos. Durante perto dum mês, Senhor, não cessámos de nos ver assim quase todos os dias e esse mês, como pode imaginar facilmente, não decorreu sem que nos confessássemos mutuamente os sentimentos que sentíamos e sem que jurássemos mantê-los sempre.
Enfim, o Senhor de… suplicou-me que lhe permitisse vê-lo num recanto menos incómodo do que um jardim público.
– Não me atrevo a apresentar-me em casa de seu pai, bela Émilie – disse-me ele -; nunca havendo tido a honra de conhecê-lo, em breve suspeitaria do motivo que me atraía a sua casa e em vez desta iniciativa ajudar os nossos projectos talvez muito os prejudicasse; mas se realmente for bastante boa, bastante generosa para não me querer deixar morrer de desgosto por nunca mais a ver conceder-me o que lhe ouso exigir, indicar-lhe-ei os meios.
De início recusei ouvi-los mas logo fui fraca a ponto de lhos perguntar. Esses meios, Senhor, eram ver-nos três vezes por semana em casa duma tal Senhora Berceil, dona duma loja de modas na Rua de Arcis, por cuja prudência e honestidade o Senhor de… se comprometia como se fosse sua mãe.
– Visto que lhe permitem visitar a Senhora sua tia que mora, como me disse, muito perto de lá, bastará fingir que vai a casa dessa tia, fazer-lhe efectivamente curtas visitas e vir passar o resto do tempo que lhe teria dedicado a casa da mulher que lhe indiquei; a sua tia, interrogada, responderá que a recebeu de facto no dia em que disser que a vai ver; trata-se apenas, pois, de verificar o tempo das visitas e é o que pode ficar bem certa que nunca se pensará fazer, desde que tenham confiança em si.
Não lhe direi, Senhor, tudo o que objectei ao Senhor de… para o desviar deste projecto e para lhe fazer sentir os inconvenientes; para que serviria dar-lhe a conhecer as minhas resistências, já que acabei por sucumbir? Prometi ao Senhor de… tudo o que ele quis, vinte luíses que deu a Julie sem eu saber ganharam a moça para os seus interesses e eu apenas trabalhei para a minha perda. Para a tornar ainda mais completa, para me inebriar mais tempo e mais à vontade com o doce veneno que me percorria o coração, fiz uma falsa confidência a minha tia, disse-lhe que uma jovem dama minha amiga (a quem avisara e que devia responder em conformidade) desejara ter para comigo a bondade de me levar três vezes por semana ao seu camarote no Français, que não me atrevia a contar ao meu pai com medo de que ele se opusesse mas que lhe diria que vinha a casa dela e que lhe suplicava que me confirmasse; após algumas objecções, a tia não pôde resistir às minhas instâncias, concordámos que Julie viria em meu lugar e que, ao voltar do espectáculo, a levaria para entrarmos juntas em casa. Beijei-a muitas vezes: fatal cegueira das paixões, agradeci-lhe por se prestar à minha perda, por abrir a porta aos desregramentos que iam colocar-me a beira da cova!
Os nossos encontros começaram, enfim, em casa da Berceil; a loja era soberba, a casa muito decente e ela própria uma mulher de cerca de quarenta anos à qual julguei poder dar toda a confiança. Ai de mim, confiei demais nela e no meu amante… o pérfido, é tempo de lho confessar, Senhor… Na sexta vez que o vi nesta fatal casa, tomou um tal ascendente sobre mim, soube seduzir-me a tal ponto que abusou da minha fraqueza e tornei-me nos seus braços o ídolo da sua paixão e a vítima da minha. Cruéis prazeres, que já me custaram lágrimas e de quantos remorsos me despedaçarão ainda a alma até ao último instante de vida!
Um ano se passou nesta desastrosa ilusão, Senhor, acabava de completar os meus dezassete anos; o pai falava-me todos os dias num casamento e pode imaginar como eu estremecia a tais propostas, quando uma fatal aventura veio, enfim, precipitar-me no abismo eterno onde mergulhei. Triste permissão da Providência, sem dúvida que quis que uma coisa de que eu não tivera qualquer culpa servisse para me punir das faltas reais, a fim de fazer ver que nunca lhe escapamos, que segue por toda a parte aquele que cai em erro, e que é do acontecimento que ele menos suspeita que faz nascer insensivelmente o que vai servir para a vingar.
O Senhor de… avisara-me certo dia de que um negócio inadiável o privaria do prazer de passar as três horas completas que tínhamos costume estar juntos, que viria contudo alguns minutos antes do fim do encontro, ainda que, para não alterar o nosso comportamento habitual, eu continuasse a passar em casa da Berceil o mesmo tempo, que de facto, por uma hora ou duas, sempre me divertiria mais com esta lojista e as empregadas do que sozinha em casa de meu pai; julgava-me suficientemente segura desta mulher para descobrir qualquer obstáculo ao proposto pelo meu amante; prometi, por conseguinte, que viria, suplicando-lhe que não se fizesse esperar muito. Garantiu-me que se desembaraçaria o mais cedo possível e cheguei; oh, dia terrível para mim!
A Berceil recebeu-me à entrada da loja, sem me deixar entrar-lhe em casa como costumava fazer.
– Menina – disse-me logo que me viu -, estou encantada por o Senhor de… não poder vir esta tarde cedo, pois tenho uma coisa a confiar-lhe que não ouso dizer a ele, uma coisa que exige que saiamos as duas depressa um instante, o que não poderíamos fazer se aqui estivesse.
– E de que se trata então, Senhora – disse eu um pouco assustada com este começo.
– De um nada, Menina, de um nada – continuou a Berceil -, comece por se acalmar, é a coisa mais simples do mundo; a minha mãe deu pela sua intriga, é uma velha megera escrupulosa como um confessor e que suporto por causa dos seus escudos; já não quer decididamente que eu a receba, não me atrevo a dizê-lo ao Senhor de…, mas eis o que pensei. Vou levá-la imediatamente a casa duma das minhas colegas, mulher da minha geração e tão segura como eu, travará conhecimento com ela; se lhe agradar, confessará ao Senhor de… que lá a levei, que é uma mulher honesta e que acha boa ideia que os encontros passem a ser lá; se lhe desagradar, o que estou longe de temer, como só nos demoraremos um instante, ocultar-lhe-á a nossa visita; nesse caso incumbir-me-ei de lhe dizer que já não posso ceder-lhe a casa e arranjarão outras maneiras de se verem.
O que esta mulher me dizia era tão simples, o ar e o tom que empregava tão naturais, a minha confiança tão completa e a minha candura tão perfeita, que não achei a mínima dificuldade em lhe conceder o que pedia; apenas me ocorreram lamentações sobre a impossibilidade em que ela estava, dizia, de continuar os seus serviços, mostrei-lhas com todo o meu coração e saímos. A casa onde me conduzia ficava na mesma rua, a sessenta ou oitenta passos de distância no máximo da de Berceil; nada me desagradou no exterior, um portão largo, belas sacadas para a rua, um ar de decência e de limpeza por toda a parte; contudo, uma voz secreta parecia gritar no fundo do meu coração que um acontecimento singular me aguardava nesta fatal casa; sentia uma espécie de repugnância a cada degrau que subia, tudo me parecendo dizer: Onde vais desgraçada, afasta-te destes lugares pérfidos… chegámos, porém, entrámos numa antecâmara muito bela onde não encontrámos ninguém e, daí, num salão que logo se fechou nas nossas costas, como se houvesse alguém escondido atrás da porta… Estremeci, estava muito sombrio nesse salão, mal se distinguia para caminhar; não déramos três passos, senti-me agarrada por duas mulheres, abriu-se então um gabinete e vi um homem de cerca de cinquenta anos no meio de duas outras mulheres que gritaram às que me tinham agarrado:
– Dispam-na, dispam-na, e não a tragam aqui senão toda nua.
Recuperada do desvairamento em que ficara quando as mulheres me tinham deitado a mão e vendo que a minha salvação dependia mais dos meus gritos do que dos meus temores, soltei-os medonhos. A Berceil fez quanto pôde para me acalmar.
– É coisa dum minuto, Menina – dizia ela -, um pouco de condescendência, rogo-lhe, far-me-á ganhar cinquenta luíses.
– Megera infame – gritei -, não julgues negociar assim a minha honra, vou-me atirar pela janela se não me fazes sair já daqui.
– Só chegaria a um pátio que nos pertence e onde seria apanhada, minha filha – disse uma destas celeradas, arrancando-me as roupas -, assim, creia-me o melhor que tem a fazer é não oferecer resistência…
Oh, Senhor, poupe-me o resto destes horríveis pormenores, fui posta nua num instante, interceptaram-me os gritos por intermédio de precauções bárbaras, e fui arrastada até ao homem indigno que, não fazendo caso das lágrimas e divertindo-se com as minhas resistências, só se preocupava em apoderar-se da infeliz vítima a quem rasgava o coração; duas mulheres não cessaram de me segurar e de me entregar a este monstro que, senhor de fazer tudo o que queria, apenas extinguiu, contudo, os fogos do seu culpado ardor com apalpadelas e beijos impuros, que me deixaram sem injúrias…
Ajudaram-me prontamente a voltar a vestir e devolveram-me às mãos da Berceil, abatida, confusa, entregue a uma espécie de dor sombria e amarga que me punha lágrimas no fundo do coração; lancei olhares furiosos a esta mulher…
– Menina – disse-me ela numa terrível perturbação, ainda na antecâmara desta fatal casa -, sinto todo o horror que acabo de praticar, mas suplico-lhe que me perdoe… e que reflicta um pouco antes de se entregar à ideia de fazer um escândalo; se revelar isto ao Senhor de…, escusa de dizer que a trouxeram à força pois é um género de falta que ele nunca lhe perdoará e só conseguirá ficar para sempre zangada com o único homem do mundo que mais lhe interessa conservar já que não tem outro meio de reparar a honra de que ele se apoderou senão levando-o a desposá-la. Ora fique certa de que ele jamais o fará se lhe disser o que acaba de passar-se.
– Desgraçada, porque me precipitaste então neste abismo, porque me colocaste em tal situação que ou engano o meu amante ou perco a honra e a ele?
– Devagarinho, Menina, não falemos do que está feito, o tempo urge, ocupemo-nos só do que é preciso fazer. Se falar, está perdida; se não disser nada, a minha casa estará sempre aberta para si, jamais será traída seja por quem for e continuará com o seu amante; veja se a pequena satisfação duma vingança de que, no fundo, eu me riria porque sabendo do seu segredo impediria sempre o Senhor de… de me incomodar, veja, dizia-lhe eu, se o pequeno prazer desta vingança a compensará de todos os aborrecimentos que acarreta…
Sentindo bem, então, com que indigna mulher lidava, e atingida pela força das suas razões, por terríveis que elas fossem:
– Saiamos, Senhora, saiamos – disse-lhe eu -, não me faça estar aqui mais tempo, nada direi, faça o mesmo; utilizarei os seus serviços porque não poderia dispensá-los sem revelar infâmias que se torna importante calar, mas terei a satisfação de, no fundo do coração, a odiar e desprezar tanto como merece.
Voltámos a casa da Berceil… Céu misericordioso, que nova inquietação senti quando nos disseram que o Senhor de… viera, que lhe tinham dito que a Senhora saíra para tratar de assuntos urgentes e que a Menina ainda não chegara; ao mesmo tempo uma das empregadas da casa entregou-me um bilhete que ele me escrevera à pressa. Continha somente estas palavras: Não a encontrei, suponho que não pôde vir à hora do costume, não a poderei ver esta tarde, é-me impossível esperar, até depois de amanhã sem falta.
Este bilhete não me acalmou, a frieza que ele revelava parecia-me de mau augúrio… não esperar por mim, tão pouca paciência… tudo isto me perturbava a tal ponto que se torna impossível descrevê-lo; não se teria ele apercebido da nossa saída, seguido e, se assim fosse, não era eu uma moça perdida? A Berceil, tão inquieta como eu, interrogou toda a gente, disseram-lhe que o Senhor de… chegara três minutos depois de termos saído, que parecia muito inquieto, que se retirara imediatamente e que voltara para escrever este bilhete talvez meia hora depois. Mais inquieta ainda, mandei buscar uma viatura… mas acreditará, Senhor, a que ponto de descaramento esta indigna mulher ousou levar o vício?
– Menina – disse vendo-me partir -, nunca diga uma palavra sobre isto, não me canso de lho recomendar, mas se por infelicidade vier a zangar-se com o Senhor de…, creia-me, aproveite da sua liberdade para se divertir, isso vale muito mais do que um amante; sei que é uma menina como deve ser, mas é jovem, com certeza lhe dão pouco dinheiro e, linda como é, fá-la-ia ganhar todo o que quisesse… Vá, vá, não é a única, há tantas que pertencem à melhor sociedade, que se casam, como poderá fazer um dia, com condes ou marqueses, e que, ou por própria iniciativa, ou por intermédio da governanta, nos passaram pela mãos como a Menina; temos pessoas especiais para as bonequinhas da sua espécie, já o viu bem; servem-se delas como duma rosa, respiram-nas e não as fazem murchar; adeus, minha bela, de qualquer modo não nos zanguemos, vê bem que ainda lhe poderei ser útil.
Lancei um olhar horrorizado a esta criatura e saí prontamente sem lhe responder; apanhei Julie em casa de minha tia, como era meu hábito fazê-lo, e regressei a casa.
Já não tinha maneira de dizer qualquer coisa ao Senhor de…, pois vendo-nos três vezes por semana, não usávamos escrever-nos, tornando-se assim necessário aguardar a altura do encontro… Que me iria ele dizer… que lhe responderia eu? Manteria o mistério do que se passara, não haveria o maior perigo no caso disso se vir a descobrir não seria mais prudente confessar-lhe tudo?… Todas estas diferentes possibilidades mantinham-me num estado de inquietação inexprimível. Decidi-me, enfim, a seguir o conselho da Berceil, e bem segura de que esta mulher era a primeira interessada no segredo, resolvi-me a imitá-la e a nada dizer… Ah, céu misericordioso, de que me serviam todas estas congeminações se não deveria voltar a ver o meu amante e o raio que se ia abater sobre a minha cabeça já resplandecia!
O meu irmão mais velho perguntou-me, no dia seguinte ao sucedido, porque me permitia sair assim sozinha um tão grande número de vezes na semana e a tais horas.
– Está bem, meu querido irmão – respondi-lhe, tremendo -, vou-lhe confessar tudo: uma das minhas amigas, que conhece bem, a Senhora de Saint-Clair, tem a gentileza de me levar três vezes por semana ao seu camarote no Français; nada me atrevi a dizer com medo que o pai o desaprovasse mas a tia sabe tudo perfeitamente.
– Se vai ao espectáculo – disse-me o meu irmão -, podia-me ter dito, eu tê-la-ia acompanhado e a coisa tornava-se mais simples… mas sozinha com uma mulher que não lhe pertence e quase tão nova como a menina…
– Vamos, vamos, meu amigo – disse o meu outro irmão que se aproximara durante a conversa -, a Menina tem os seus prazeres, não se deve perturbá-los… procura esposo seguramente, farão bicha com essa conduta…
E ambos me voltaram secamente as costas. Esta conversa assustou-me; contudo o meu irmão mais velho parecia convencido com a história do camarote, supus ter conseguido enganá-lo e que ele ficaria por ali; aliás, mesmo que tivessem dito mais coisas, salvo se me fechassem à chave, nada do mundo teria força bastante para me impedir de ir ao próximo encontro; tornava-se demasiadamente essencial explicar-me com o meu amante, para que algo no mundo pudesse privar-me de ir vê-lo.
Quanto a meu pai, era sempre o mesmo, idolatrando-me, não suspeitando de nenhum dos meus dissabores e nunca se metendo comigo. Como é cruel ter de enganar pais assim e como os remorsos que disso nascem semeiam de espinhos os prazeres que se obtêm à custa de traições desta espécie! Funesto exemplo, cruel paixão, pudésseis vós afastar dos meus erros as que se achem no mesmo caso que eu e possam as penas que me custaram os meus criminosos prazeres detê-las ao menos à beira do abismo se alguma vez conhecerem a minha deplorável história.
O dia fatal chega por fim, apanho Julie e esquivo-me como de costume, deixo-a em casa de minha tia e alcanço prontamente no meu fiacre a casa da Berceil. Desço… o silêncio, a obscuridade que reinam nesta casa, alarmam-me enormemente de início… nenhum rosto conhecido se me apresenta, só me aparece uma velha, que nunca vira mas que ia ver demasiadas vezes para minha infelicidade, que me diz para ficar na dependência onde estou, que o Senhor de…, nomeia-mo, virá já ali ter comigo. Um frio universal apodera-se-me dos sentidos e caio em cima duma poltrona sem ter a força de dizer uma palavra; mal aí estou, apresentam-se os meus dois irmãos, de pistola em punho.
– Desgraçada! – exclamou o mais velho -, eis, pois, como tu nos enganas; se ofereces a mínima resistência, se dás um grito, considera-te morta. Segue-nos, vamos ensinar-te a trair ao mesmo tempo a família que desonras e o amante a quem te entregavas.
Ao ouvir estas últimas palavras, perdi o conhecimento e só recuperei os sentidos por me encontrar no fundo duma carruagem que me pareceu ir muito depressa, entre os meus dois irmãos e a velha de que acabo de falar, as pernas ligadas e as duas mãos apertadas num lenço; as lágrimas, retidas até então pelo excesso da dor, abriram passagem com abundância e fiquei uma hora num estado que, por muito culpada que fosse, enterneceria qualquer um que não os carrascos de quem dependia. Não me falaram durante todo o tempo de viagem, imitei o seu silêncio e afundei-me na minha dor; chegámos, enfim, no dia seguinte às onze horas da manhã, entre Coucy e Noyon, a um castelo situado no fundo dum bosque, pertencente ao meu irmão mais velho; a viatura entrou no pátio, ordenar-me que lá ficasse até que os cavalos e os domésticos fossem afastados; então o meu irmão mais velho veio-me buscar. “Siga-me”, disse-me brutalmente depois de me ter desatado… Obedeci tremendo… Meus Deus, qual é o meu susto ao ver o lugar de horror que me vai servir de retiro! Era um quarto baixo, sombrio, húmido e obscuro, fechado com grades em toda a parte e apenas recebendo um pouco de luz do dia por uma janela que dava para um fosso largo e cheio de água.
– Eis a sua habitação, Menina – disseram-me os meus irmãos -, uma moça que desonra a família só aqui pode estar bem… A sua alimentação corresponderá ao resto do tratamento, eis o que lhe vai ser dado – continuaram, mostrando-me um pedaço de pão igual ao que se dá aos animais -, e como não pretendemos fazê-la sofrer muito tempo e, por outro lado, queremos retirar-lhe qualquer possibilidade de sair daqui, estas duas mulheres – disseram-me eles apontando a velha e uma outra parecia que havíamos encontrado no castelo -, estas duas mulheres ficam encarregadas de lhe fazer sangrias nos dois braços tantas vezes por semana quantas as que foi encontrar-se com o Senhor de… a casa da Berceil; insensivelmente, esperamo-lo pelo menos, este regime conduzi-la-á ao túmulo e só ficaremos realmente tranquilos quando soubermos que a família está desembaraçada dum monstro como a menina.
Após estas palavras, ordenam às mulheres que me agarrem e diante deles, os celerados, Senhor, perdoe-me esta expressão, diante deles… os cruéis mandaram-me fazer sangrias nos dois braços ao mesmo tempo e só detiveram este cruel trato quando me viram perder o conhecimento… Voltando a mim, encontrei-os aplaudindo-se da sua barbaridade e, como se quisessem que todos os golpes me fossem vibrados ao mesmo tempo, como se se deleitassem em romper-me o coração no mesmo instante em que derramavam o meu sangue, o mais velho tirou uma carta da algibeira e apresentou-ma.
– Leia, Menina – disse-me -, leia, e conheça aquele a quem deve os seus padecimentos.
Abro a carta a tremer, os olhos mal têm força para reconhecer esta funesta letra: Oh, Deus do Céu… era o meu próprio amante, era ele quem me traía; eis o que continha a cruel carta, as palavras estão ainda impressas a sangue no meu coração:
Cometi a loucura de amar a sua irmã, Senhor, e a imprudência de a desonrar; ia reparar tudo; devorado pelos remorsos, ia cair aos pés de seu pai, confessar-me culpado e pedir-lhe a filha; tinha a certeza do meu amor estava pronto a casar-me; na altura em que se formavam estas resoluções… os meus olhos, os meus próprios olhos convencem-me de que estou ligado a uma mulher da vida que a coberto de encontros determinados por um sentimento honesto e puro, ousava ir satisfazer os infames desejos do mais crápula dos homens. Não aguarde, pois, qualquer reparação da minha parte, Senhor, não lha devo, apenas lhe devo o abandono e a ela o ódio mais inviolável e o desprezo mais decidido. Junto a direcção da casa onde a sua irmã se ia corromper, Senhor, para que possa verificar se lhe minto.
Mal acabei de ler estas funestas palavras, recaí na agitação mais terrível… “Não”, dizia de mim para mim arrancando os cabelos, “não, cruel, nunca me amaste; se o mais leve sentimento houvesse inflamado o teu coração, não me terias condenado sem me ouvir, não me terias julgado culpada dum tal crime quando era a ti que eu adorava… Pérfido, é a tua mão que me entrega, é ela que me precipita nos braços dos carrascos que me vão fazer morrer pouco a pouco… e morrer sem te provar a minha inocência, morrer desprezada de tudo o que adoro, quando nunca o ofendi voluntariamente, quando nunca passei duma pateta e vítima, oh não, não, esta situação é demasiado cruel, está acima das minhas forças sustentá-la!” E, lançando-me em lágrimas aos pés dos meus irmãos, implorei-lhes ou que me ouvissem ou que acabassem de fazer correr o meu sangue gota a gota para morrer imediatamente.
Consentiram ouvir-me, contei-lhes a minha história, mas desejavam perder-me e não me acreditaram, só me tratando ainda pior; após me terem, enfim, enchido de invectivas, após haverem recomendado às duas mulheres que executassem ponto por ponto as suas ordens sob ameaça de morte, deixaram-me, asseverando-me que não me esperavam voltar mais a ver.
Assim que partiram, as minhas duas guardiãs deixaram-me pão, água, e fecharam-me à chave, mas ao menos fiquei sozinha, podia entregar-me aos desvarios do meu desespero e senti-me menos desgraçada. Os primeiros impulsos de desespero levaram-me a tirar as ligaduras dos braços e a deixar-me morrer acabando de perder o sangue. Mas a ideia horrível de cessar de viver sem provar a minha inocência ao meu amante, dilacerava-me com tamanha violência que nunca me pude resolver a esta decisão; um pouco de calma devolve a esperança… a esperança, este sentimento consolador que nasce sempre no meio das penas, presente divino que a natureza nos faz para as compensar ou as dulcificar… “Não”, disse para comigo, “não morrerei sem o ver, só para isso devo trabalhar, só com isso me devo preocupar; se ele persistir em crer-me culpada, será então tempo de morrer e fá-lo-ei pelo menos sem remorsos, pois é impossível que a vida possa ter encantos para mim quando tiver perdido o seu amor.”
Tomada esta decisão, resolvi não negligenciar nenhum dos meios que me pudessem arrancar à odiosa residência. Havia quatro dias que me consolava com este pensamento, quando as minhas duas carcereiras reapareceram para renovar as minhas provisões e fazer-me perder ao mesmo tempo as poucas forças que elas me davam; sangraram-me ainda dos dois braços e deixaram-me de cama sem movimentos; no oitavo dia reapareceram e, como eu me lançasse a seus pés implorando-lhes misericórdia, apenas me sangraram dum braço. Dois meses assim se passaram, durante os quais fui constantemente sujeita a sangrias alternadamente num e noutro braço, todos os quatro dias. A força do meu temperamento sustinha-me, a minha idade, o excessivo desejo que sentia de escapar a esta terrível situação, a quantidade de pão que comia a fim de restaurar o meu esgotamento e de poder executar as minhas decisões, tudo me auxiliou e, logo no início do terceiro mês, muito feliz por haver perfurado uma muralha, por me ter introduzido, pela abertura feita, num quarto vizinho que estava aberto, e por me ter, enfim, evadido do castelo, tentava alcançar a pé como podia a estrada de Paris, quando as minhas forças me abandonaram totalmente no local onde me viu e obtive do Senhor o generoso socorro que o meu reconhecimento sincero lhe agradece e que ouso suplicar que mantenha para me voltar a pôr entre as mãos do meu pai e quem certamente iludiram e que nunca será tão bárbaro que me condene sem me permitir provar a minha inocência. Convencê-lo-ei de que fui fraca mas verá que não fui tão culpada como as aparências parecem mostrar e graças a si, Senhor, terá não só trazido à vida uma infeliz criatura que não cessará de lhe agradecer, mas também devolvido a honra a uma família que a julga injustamente perdida.
– Menina – disse o conde de Luxeuil depois de prestar o máximo de atenção a toda a história de Émilie – é difícil vê-la e ouvi-la sem sentir por si o mais vivo interesse; não foi, sem dúvida, tão culpada como julgaram mas há na sua conduta alguma imprudência que lhe deverá ser muito difícil dissimular.
– Oh, Senhor!
– Ouça-me, Menina, peço-lhe, ouça o homem mundano que mais interesse tem em servi-la. A conduta do seu amante é horrível, não só é injusta, porque deveria elucidar-se melhor e vê-la, mas é também cruel; se se está avisado a ponto de não mais querer voltar, nesse caso abandonamos uma mulher mas não a denunciamos à família, não a desonramos, não a entregamos indignamente aos que a devem perder, não os excitamos a vingarem-se… Reprovo, pois, infinitamente o procedimento daquele que adora… mas o dos seus irmãos é muito mais indigno ainda, esse é atroz sob todos os pontos de vista, apenas os carrascos se podem conduzir assim. Faltas desta espécie não merecem semelhantes castigos; nunca as cadeias serviram para alguma coisa; calamo-nos em tais casos mas não se faz perder nem o sangue nem a liberdade dos culpados; estes meios odiosos desonram muito mais os que os empregam do que os que deles são vítimas; ganharam o seu ódio, alcançaram escândalo e nada repararam. Por muito cara que nos seja a virtude duma irmã, a sua vida deve ter um preço bem diferente a nossos olhos, a honra pode recuperar-se, mas não o sangue que se derramou; este procedimento é, pois, de tal modo horrível que seria certamente punido se fosse apresentada queixa ao governo, mas estes meios que só imitariam os dos seus perseguidores, que só atrairiam as atenções para o que nos interessa calar, não são os que devemos seguir. Vou pois actuar de modo muito diferente para a servir, Menina, mas previno-a que apenas o farei nas condições seguintes: a primeira, que me dê por escrito as moradas de seu pai, de sua tia, da Berceil e do homem a quem a Berceil a conduziu, e a segunda, Menina, que me diga o nome sem levantar dificuldades da pessoa que lhe Interessa. Esta cláusula é de tal maneira essencial que não lhe oculto que me é absolutamente impossível servi-la seja no que for se persistir em me esconder o nome que exijo.
Émilie, confusa, começa por cumprir exactamente a primeira condição e, havendo indicado essas moradas ao conde:
– Exige portanto, senhor – disse, corando -, que lhe revele o nome do meu sedutor.
– Absolutamente, Menina, nada posso fazer sem isso.
– Está bem, Senhor… é o marquês de Luxeuil…
– O marquês de Luxeuil – exclamou o conde, não podendo disfarçar a emoção em que o lançava o nome do filho. – Foi capaz desta acção, ele… – E dominando-se: – repará-la-á. Menina… repará-la-á e será vingada… fique-se com a minha palavra, adeus.
A agitação espantosa em que a última confidência de Émilie acabava de pôr o conde de Luxeuil muito surpreendeu esta infeliz, que receou ter cometido uma indiscrição; porém, as palavras pronunciadas pelo conde ao sair tranquilizaram-na e, sem nada compreender da ligação de todos os factos que se lhe tornava impossível destrinçar, não sabendo onde estava, decidiu-se a esperar com paciência o resultado das diligências do seu benfeitor; os cuidados que lhe continuaram a dispensar enquanto elas decorriam acabaram de sossegá-la e de persuadi-la de que só trabalhavam para a sua felicidade.
Teve todas as razões para ficar inteiramente convencida quando viu, no quarto dia seguinte às explicações que dera, o conde entrar no seu quarto trazendo pela mão o marquês de Luxeuil.
– Menina – disse-lhe o conde -, trago-lhe ao mesmo tempo o autor dos seus infortúnios e quem os vem reparar suplicando-lhe de joelhos que não lhe recuse a sua mão.
A estas palavras, o marquês lança-se aos pés da que adora, mas esta surpresa fora demasiadamente viva para Émilie; ainda sem forças para a suportar, desmaiara nos braços da mulher que a servia; à custa de atenções, em breve recuperou, porém, o uso dos sentidos e, achando-se nos braços do amante;
– Cruel homem – disse-lhe, vertendo uma torrente de lágrimas -, que desgostos causou àquela que amava! Como a pôde julgar capaz da infâmia de que ousou suspeitar? Émilie, amando-o, podia ser vítima da sua fraqueza e da velhacaria dos outros, nunca podia ser infiel.
– Oh, tu que eu adoro – exclamou o marquês -, perdoa um transporte de ciúmes horrível fundado em aparências enganadoras, temos agora todos bem a certeza, mas estas funestas aparências, ai de mim, não eram, pois, contra ti?
– Devia estimar-me, Luxeuil, e não poderia julgar-me feita para o enganar, devia escutar menos o seu desespero do que os sentimentos que me orgulhava de lhe inspirar. Que este exemplo ensine ao seu sexo que é quase sempre por demasiado amor… quase sempre cedendo demasiado depressa que perdemos a estima dos nossos amantes… Oh, Luxeuil, ter-me-ia amado melhor, se eu o tivesse amado com menos entusiasmo; puniu-me pela minha fraqueza e o que deveria fortificar o nosso amor foi o que o fez suspeitar do meu.
– Que tudo se esqueça entre qualquer das partes – interrompeu o conde -; Luxeuil, a sua conduta é lastimável e se não se tivesse prontificado a repará-la há pouco, se não tivesse conhecido essa vontade no seu coração, nunca mais o quereria ver. Quando se gosta muito, diziam os nossos antigos trovadores, mesmo que se ouça, mesmo que se veja alguma coisa prejudicial à amiga, não se deve crer nem nas orelhas nem nos olhos, só se deve escutar o coração (1). Menina, aguardo o seu restabelecimento com impaciência – prosseguiu o conde dirigindo-se a Émilie -, não a quero levar de volta a casa de seus pais senão na qualidade de esposa de meu filho e espero que não recusarão unir-se a mim para reparar as suas desgraças; se não o fizerem, ofereço-lhe a minha casa, Menina; o seu casamento será aí celebrado e até ao meu último suspiro não deixarei de ver em si uma nora querida de que sempre me sentirei honrado, quer aprovem ou não o seu himeneu.
Luxeuil lançou-se ao pescoço do pai, a Menina de Tourville desfez-se em lágrimas apertando as mãos do seu benfeitor e deixaram-na repousar durante algumas horas duma cena cujo prolongamento excessivo teria prejudicado o restabelecimento que se desejava com tanto ardor.
Enfim, quinze dias após o seu regresso a Paris, a Menina de Tourville ficou em estado de se levantar e de andar numa viatura; o conde fez-lhe envergar um vestido branco análogo à inocência do seu coração, nada foi descuidado para realçar o brilho dos seus encantos que uns vestígios de palidez e fraqueza tornavam ainda mais interessantes; o conde, ela e Luxeuil fizeram-se transportar a casa do presidente de Tourville que não estava prevenido de nada e cuja surpresa foi imensa ao ver entrar a filha. Estava com os dois filhos, cujas testas se encheram de rugas e de raiva perante esta visita inesperada; sabiam que a irmã se evadira mas supunham-na morta nalgum recanto da floresta e disso se consolavam, como se vê, o mais alegremente possível.
– Senhor – disse o conde, apresentando Émilie ao pai -, eis a inocência em pessoa que trago a seus joelhos – e Émilie aí se precipitou. – Imploro a sua graça Senhor – continuou o conde -, e não seria eu a pedir-lha se não estivesse seguro de que ela a merece; de resto, Senhor – continuou rapidamente -, a melhor prova que lhe posso dar da profunda estima que sinto pela sua filha é pedi-la para o meu filho. As nossas classes sociais estão feitas para se aliarem, Senhor, e se houver alguma desproporção da minha parte no tocante a bens, venderei tudo o que tenho para entregar a meu filho uma fortuna digna de ser oferecida à menina sua filha. Decida, Senhor, e permita-me que não o deixe sem receber a sua palavra.
O velho presidente de Tourville, que sempre adorara a sua querida Émilie, que no fundo era a bondade personificada e que até, devido à excelência do seu carácter, já não exercia o cargo há mais de vinte anos, o velho presidente, dizia eu, encharcando de lágrimas o seio desta querida criança, respondeu ao conde que se sentia muito honrado com tal escolha e que só se preocupava se a sua querida Émilie dela não fosse digna; o marquês de Luxeuil lançando-se, por sua vez, aos joelhos do presidente, rogou-lhe que lhe perdoasse as suas faltas e que lhas permitisse reparar. Tudo se prometeu, tudo se concertou, tudo sossegou, dum lado e doutro, apenas os irmãos da nossa interessante heroína se recusaram a partilhar a alegria geral e repeliram-na quando deles se aproximou para os beijar; o conde, furioso com tal procedimento, quis deter um que pretendia sair do apartamento. O Senhor de Tourville gritou para o conde:
– Deixe-os, Senhor, deixe-os, enganaram-me horrivelmente; se esta querida criança fosse tão culpada como eles diziam, consentiria em entrega-la a seu filho? Perturbaram a felicidade dos meus dias privando-me da minha Émilie… deixe-os…
E os desgraçados saíram rebentando de raiva. Então o conde pôs o Senhor de Tourville ao corrente de todos os horrores dos filhos e das verdadeiras faltas da filha: o presidente vendo a pequena proporção que havia entre as faltas e a indignidade do castigo, jurou que não voltaria a ver os filhos; o conde acalmou-o e fez-lhe prometer que retiraria tais propósitos da ideia. Oito dias depois celebrou-se o casamento sem que os irmãos tivessem comparecido mas dispensaram-nos bem, desprezando-os; o Senhor de Tourville contentou-se em recomendar-lhes o máximo silêncio sob ameaça dele próprio os mandar prender e assim se calaram embora não o bastante para não se vangloriarem do seu infame procedimento condenando a indulgência do pai; os que souberam desta Infeliz aventura exclamaram, terrificados pelos pormenores atrozes que a caracterizam:
– Oh, Céu misericordioso, eis pois os horrores que se permitem tacitamente os que se metem a punir os crimes dos outros! Há bastas razões para dizer que tais infâmias estão reservadas a estes frenéticos e ineptos sequazes da cega Témis que, alimentados por um rigorismo imbecil, insensíveis desde a infância aos gritos do infortúnio, manchados de sangue desde o berço, vituperando tudo e entregando-se a tudo, imaginam que a única maneira de cobrir as suas torpezas secretas e as suas prevaricações públicas é exibir uma rigidez inflexível que, assemelhando-os exteriormente a gansos, a tigres interiormente, nada mais obtém, contudo, manchando-os de crimes, do que iludir os parvos e fazer detestar ao homem prudente, quer os seus odiosos princípios, quer as suas desprezíveis pessoas.
NOTAS:
1 São os trovadores provençais que diziam isto, não os da Picardia.
Marquês de Sade – Contos Eróticos