Entretanto, tirara‑me da mão a mala e caminhava ao meu lado enquanto saíamos da estação. Não pude impedir‑me de olhar para ele: havia quase dois anos que o não via. Pareceu‑me, de tão confuso que estava por causa da extrema fadiga, que ele não mudara em nada, exceto em dois pormenores: a barba, que antes não tinha, e a fixidez inquietante dos olhos, também isso uma novidade. Agradeci‑lhe o ter vindo e arranjado o apartamento; disse‑lhe que a mãe, que ficara em Paris, lhe mandava muitas lembranças; disse‑lhe ainda, com prazer sentido, que estava com ótimo aspecto, melhor do que da última vez, dois anos antes, em que nos víramos. Respondeu‑me que isso dependia da sua satisfação com o trabalho: começara a trabalhar numa empresa de importação‑exportação; ganhava bem; por enquanto vivia numa pensão, mas em breve teria casa sua, tanto mais que estava noivo de uma moça italiana, com quem contava casar dentro em pouco. Enquanto me fornecia, sorrindo, estas informações, chegávamos ao carro. Pôs a minha mala no porta‑bagagens; entrei, ele sentou‑se ao volante e partimos.
Não conheço lá muito bem a cidade de Roma; mas segui com atenção, mais por curiosidade do que por qualquer outra coisa, o percurso do automóvel e fiquei com a impressão de que, um semáforo atrás de outro, atravessáramos todo o centro antigo da cidade; depois, cruzámos uma ponte e passámos para o outro lado do Tibre. O meu filho, enquanto guiava, não parava de falar afetuosamente comigo; dizia como estava contente por me ver após uma separação tão longa; fazia projetos para o meu futuro e o da sua mãe.
Corríamos agora ao longo do Tibre. Do carro, podia ver a margem oposta, do outro lado do rio, cheia de árvores, cujas densas folhas de prata afloravam as águas amarelas e brilhantes. Por trás das árvores, alinhavam‑se as casas por cima das casas, grandes nuvens de trovoada, negras e ameaçadoras, subiam rapidamente, ocupando a zona ainda azul do céu. O meu filho disse‑me que, sem dúvida, viria aí uma tempestade; era assim, havia já alguns dias: de manhã estava bom tempo, depois o dia estragava‑se e, à noite, infalivelmente, levantava‑se um temporal, com relâmpagos, trovões, vento e chuva.
O automóvel rodou um pedaço pelo asfalto da rua ao longo do rio, que tinha, de um lado, o dique do Tibre e, do outro lado, uma fila ininterrupta de casas e edifícios; a seguir, o carro parou num lugar sossegado e livre de trânsito atravessado por uma dessas barreiras pintadas de vermelho e branco que fecham as estradas ou ruas intransitáveis. O meu filho explicou‑me que, naquele pedaço, o dique do rio desmoronara; estavam em curso obras de reparação; por esse motivo, não passavam ali carros e, assim, aquilo era um verdadeiro oásis de paz no meio da cidade, apinhada e tumultuosa. Desci do automóvel e olhei à volta: efetivamente, a rua ao longo do Tibre estava ali quase deserta: dois ou três garotos andavam de patins; um par de namorados caminhava lentamente abraçados pela cintura; num carro parado, junto ao parapeito da muralha, um homem e uma mulher ouviam rádio.
Ergui os olhos para o céu: o temporal adensava‑se cada vez mais; o azul ficara reduzido a um pequeno retângulo, à volta do qual as nuvens se comprimiam agitadamente umas contra as outras, como que com falta de espaço. O meu filho, muito risonho, fez‑me notar uma vez mais a tranquilidade do lugar: “Então, não é um lugar ideal para quem não quer fazer‑se notar?” Quase sem pensar, respondi: “É igualmente um lugar ideal para se assassinar alguém, também sem se ser notado.” O meu filho bateu‑me com a mão nas costas: “Vamos, vamos; de agora em diante, não deves pensar em coisas dessas. De agora em diante, deves confiar em mim; tratarei de te organizar uma vida serena e segura.”
Tinha extraído do bolso um molho de chaves e aproximara‑se do portão de um palácio; disse‑me que o edifício não tinha porteiro e que, desse modo, podia sair e entrar sempre que quisesse sem ser visto nem observado. Entramos no átrio comum, mas não tivemos que entrar no elevador: o apartamento era no térreo. O meu filho abriu a porta e entrou à minha frente no interior, que me pareceu logo bastante triste, com essa tristeza particular que é fastidiosamente característica das casas há muito sem gente. Os móveis eram completamente neutros, quase mais de escritório do que de casa de habitação, e reduziam‑se ao mínimo necessário: na sala, havia apenas um divã e duas poltronas; no quarto de dormir, apenas a cama, uma cadeira e uma mesa pequena. Havia ainda uma espécie de quarto menor, junto da entrada, com um catre desfeito onde parecia ter dormido alguém há pouco tempo. Passamos diante da cozinha e então vi, de pé junto ao fogão, uma jovem africana. Perguntei ao meu filho quem era aquela mulher e ele respondeu‑me que era uma empregada somaliana, que cozinharia para mim e me faria a limpeza enquanto ali estivesse morando. “Fala a nossa língua”, acrescentou o meu filho, “podes ter absoluta confiança”.
Fomos nos sentar no quarto, eu em cima da cama e o meu filho na cadeira”. quase de repente, a mulher entrou, trazendo em uma bandeja o jantar, que havia acabado de cozinhar. Enquanto com gestos graciosos, inclinando-se para adiante, dispunha os pratos na mesa, olhei‑a e notei que era alta, flexível e elegante, com ombros largos, braços redondos e fortes, ancas estreitas, uma verdadeira beleza no seu gênero. Dispós bem os pratos na mesa, procedeu a uma leve inclinação, olhando‑me diretamente nos olhos, como se tivesse querido fazer‑me compreender alguma coisa, e depois foi‑se embora. O meu filho convidou‑me a comer; lancei uma olhadela aos pratos e vi que continham comida tradicional do nosso país, cozinhada, segundo parecia, com todo o apuro; mas mal pensei estender a mão e começar a comer alguma coisa, senti uma repugnância tão invencível como misteriosa e disse ao meu filho que não tinha fome, mas apenas sono e que, por isso, o melhor seria que ele me deixasse agora repousar; ver-nos‑íamos no dia seguinte e então eu faria já todas as coisas normais da existência, a começar pelas honras devidas à ótima cozinha nacional preparada pela mulher somaliana.
O meu filho pareceu contrariado com a minha recusa; insistiu para que eu me alimentasse, comendo pelo menos um pouco; de outro modo, disse, ainda adoecia, uma vez que, segundo a minha própria confissão, não comia havia um dia. Respondi que o medo me tirara todo o apetite; agora queria dormir; dormindo, o medo ir‑se‑ia; quando despertasse, já teria fome e então pensaria em comer. Pouco satisfeito, mas resignado, o meu filho chamou a empregada somaliana pelo nome, ela reapareceu; enquanto voltava a pôr os pratos na bandeja, inclinou‑se de novo para mim, olhando‑me direto nos olhos, antes de sair. O meu filho pusera‑se agora em pé algo bruscamente; atirou‑me os braços ao pescoço, beijando‑me nas duas faces e dizendo‑me que dormisse: encontrar‑nos‑íamos no dia seguinte.
Não sei por que, apesar do tormento daquela terrível vontade de dormir, mal o meu filho saiu da sala, refleti que, enquanto me abraçava, sentira a sua mão tocar‑me não só os ombros, o que seria normal, mas também ao longo dos flancos até a base da coluna, um gesto insólito e improvável da sua parte: é desse modo que se tocam as pessoas suspeitas, para ver se não estarão armadas. A este reparo seguiu‑se em mim um desejo súbito de observar de novo o meu filho. Corri à janela, abri as portadas e olhei lá para fora.
Precisamente naquele momento, estava ele saindo de casa e entrando no automóvel. Uma vez mais sem motivo, demorei‑me à janela, para seguir com os olhos o automóvel que se afastava. Mas o carro não foi muito longe. Na barreira vermelha e branca, deteve‑se. Um homem que estava sentado numa atitude ociosa, com as pernas a balançar, no parapeito do dique, desceu do seu pouso e dirigiu‑se ao automóvel. O meu filho abriu a porta do carro e, depois, voltou a partir.
Não pensei coisa nenhuma. O meu espírito estava ocupado pelo sono, à maneira de uma névoa espessa que ocupa uma paisagem, impedindo‑nos de ver tal como é. Fechei a janela, atirei‑me para cima da cama, completamente vestido, tal como estava, e fiquei um pedaço de costas, com os olhos abertos. A porta do quarto estava entreaberta; disse para comigo que deveria tê‑la fechado à chave; mas não o fiz. A mulher devia estar ainda na cozinha; ouvia‑a cantar em surdina não sei que canção do seu país. Embalado por essa toada que parecia, como os olhares de havia pouco, destinar‑se a mim, exclusivamente, adormeci.
Dormi violentamente, como se protestasse contra qualquer coisa, talvez contra o próprio sono. Durante todo o tempo, senti que cerrava os dentes com força e os punhos com raiva. Em certo momento da noite, ouvi o trovão ribombar, pesado e clamoroso, e depois, nos intervalos dos trovões, ouvi o murmúrio da chuva se espalhando. Então, embora adormecido, pareceu‑me ver o asfalto da rua ao longo do rio inundado pela água abundante que caía; em seguida, relampejava com força e eu vi um homem sentado na muralha numa atitude ociosa, que, subitamente, descia do seu lugar e se dirigia a um automóvel parado na chuva, enquanto me dava conta de que lá dentro estava o meu filho. Revi esta cena várias vezes: o homem estava sentado, depois descia da muralha e corria para o automóvel, e, ei‑lo de novo sentado, voltando a descer e a correr e assim sucessivamente, uma e outra vez.
Finalmente, contudo ainda dentro do sono, à força de ouvir os trovões e a chuva, formou‑se no meu espírito esta pergunta: “Onde e quando ouvi estes trovões, esta chuva?”
Sempre dormindo, dei‑me a seguinte resposta: na infância. Estou mais perto dos sessenta anos que dos cinquenta; a recordação fazia‑me recuar meio século. Era na casa dos meus pais; acordava sobressaltado no escuro, sentia a queda da chuva e o ruído do trovão; então levantava‑me da cama e corria para refugiar‑me no quarto do lado, entre os braços seguros e quentes da minha mãe. Como agora. Levantei‑me de repente, por um impulso instintivo, irresistível, atravessei o quarto e saí para o corredor.
A porta do quartinho onde a somaliana dormia estava mal fechada. Entre a escuridão de pez e a luz violenta e efêmera dos relâmpagos, cheguei à entrada do quarto. Não quis acender a luz; pensava que me bastaria entrever a mulher no intervalo de dois relâmpagos, como entrevira a minha mãe naquela noite, há cinquenta anos. E assim foi. Relampejou e vi a mulher, que dormia profundamente, com a face apoiada na palma da mão, o corpo envolvido no lençol, o braço nu e dobrado. Observei‑a assim, entre relâmpagos, demoradamente; recordava agora o seu olhar direto no meu enquanto me servia e levantava os pratos depois do jantar; e perguntava‑me o que teria querido então dizer‑me e se, na verdade, era ela quem me queria dizer alguma coisa ou eu quem desejava que me fosse dita alguma coisa. Por fim, senti‑me mais calmo e senhor dos meus nervos. Retirei‑me, fechando a porta atrás de mim e voltei para o meu quarto. Na realidade, enquanto contemplava a mulher adormecida, tomara uma decisão e agora não me restava mais do que pô‑la em prática.
Esperei, deitado de costas, na cama, mais umas duas horas; depois, ao primeiro alvor da manhã, levantei‑me, peguei na minha pequena mala e saí na ponta dos pés do quarto. No corredor, detive‑me um momento diante da porta dela e escutei, sabe‑se lá por que. Mas não me chegou o menor rumor: estava adormecida. Abri a porta de fora, atravessei a entrada do edifício e saí para a rua ao longo do Tibre. Era de madrugada, todas as árvores estavam encharcadas de chuva; o asfalto brilhava em poças de água esparsas; o céu estava mesclado, entre o branco e o cinzento. No momento em que fechei a porta do edifício para a rua, os candeeiros ainda acesos no passeio apagaram‑se todos ao mesmo tempo. Comecei a caminhar a passo rápido em direção à ponte vizinha.