Sobre os terços profanos

Sobre os terços profanos – texto publicado na revista eletrônica Carcasse .
Autoria de Shirley Massapust

“Em julho de 2005, logo que estourou o escândalo do mensalão, ficamos a saber que a verba de publicidade do Centro Cultural Banco do Brasil ia para a DNA, a agência de propaganda do Marcos Valério (tesouraria dos assuntos ilícitos da bancada evangélica da Igreja Universal do Reino de Deus – instituição notória, entre outras coisas, pelo empenho infatigável de boicotar e comprar cinemas com o intuito de transformá-los em igrejas ou revendê-los para particulares que façam ali qualquer coisa, menos exibição de filmes). Posteriormente, vimos a intolerante coibição da interatividade do público na instalação audiovisual apresentada na exposição da artista Dora Longo Bahia durante os últimos meses. Essas atitudes marcam uma lastimável mudança na relação de cordialidade e no acompanhamento do CCBB com a classe artística, expressa no não-cumprimento das funções primeiras da instituição perante a população e a própria criação contemporânea.

O caso dos terços profanos

As mais antigas cruzes conhecidas foram gravadas em pinturas ruprestes que datam de dez mil anos a.C. Aparentemente, elas estariam ligadas a uma espécie de culto da fertilidade. Terços também são utilizados por povos orientais (não são exclusivos da fé cristã) e sua invenção sequer é devida à espécie homo sapiens, visto que achados de um determinado sítio arqueológico revelaram que um grupo de homo erectus, de quinhentos mil anos atrás, chegou a confeccionar colares de contas. Por tudo isso, não deveria haver espanto perante o trabalho da artista plástica brasileira Márcia Pinheiro de Oliveira (1959-2005), mais conhecida como Márcia X.

Márcia X. na Casa Petrópolis (jul. 2002) Ela não trabalhava exclusivamente, mas principalmente com terços. Márcia X desenvolveu seu padrão iconográfico nas modalidades “performance” e “fotograma”. Na performance, como desenvolvimento da proposta “desenhando com terços”, usava os objetos para realizar desenhos de pênis no chão, ocupando um grande espaço físico. O público acompanhava o desenvolvimento do trabalho, que poderia consumir vários dias (até um mês) para ser executado. A extensão do desenho evidenciaria a abstração resultante da trama dos terços e o caráter obsessivo do processo. Já no fotograma – cuja técnica, Rayograph, inventada por Man Ray no início do século XX, não produz negativos – utilizava-se uma ou poucas peças. Os desenhos de pênis são realizados com terços diretamente sobre o papel fotográfico e revelados.

Em abril de 2006, sua obra Desenhando com terços foi retirada da exposição Erótica – Os sentidos da arte, promovida pelo Centro Cultural Banco do Brasil, após denúncia do empresário Carlos Dias Filho, que registrou uma queixa-crime no 1º Distrito Policial do Rio, por entender que a obra ofende o catolicismo. Houve uma manifestação indignada de artistas, que organizaram um protesto no CCBB. A mídia deu ampla cobertura ao caso – inclusive em jornais como O Globo, Jornal do Brasil e Folha de S.Paulo – e o próprio ministro Gilberto Gil publicou uma nota no site do Ministério da Cultura contra a retirada do fotograma. Porém, o cardeal-arcebispo, Dom Eusébio Scheid, ficou indignado ao tomar conhecimento do conteúdo da mostra e, como a Igreja manda mais que o Ministério Público, o conselho diretor do Banco do Brasil, em Brasília, informou que preferiu retirar a obra, não tendo a intenção de ferir a religião católica ou de atingir a Igreja com a exposição. Por fim, a direção do Banco decidiu cancelar toda a mostra – com obras de 53 artistas brasileiros e estrangeiros, vindas de diversos países e confeccionadas em diferentes épocas da história –, por apresentar ameaças à marca e aos negócios (alguns manifestantes ameaçaram retirar suas contas, como se a programação do CCBB devesse ser desenvolvida para agradar àqueles que possuem aplicações financeiras no Banco do Brasil). Com esse tipo de atitude, e sendo o Banco do Brasil um órgão federal, presenciamos a implementação tácita no país de uma arte oficial, nos moldes da moral cristã.

Epílogo

Tadeu Chiarelli, curador da exposição, será ouvido pelo delegado Marcus Drucker, da 1ª DP (Praça Mauá), que investiga o caso. As imagens do circuito interno de TV do CCBB ainda devem ser entregues ao delegado. Com isso, será possível verificar se crianças compareceram à exposição nas últimas semanas (como se o curador devesse ser imputado pela falta de responsáveis que levam suas crianças a uma mostra de arte erótica). Ele poderá vir a responder por vilipêndio público de objeto de culto religioso (art. 208 do Código Penal) e exposição de objeto obsceno (art. 234 do mesmo código). Se for condenado, tal homem será sujeitado a até meio ano de prisão, cumulado com multa, – fato que implicará na perda de seu emprego público. Tudo por ser um livre pensador amante das artes, acima de qualquer preconceito. ”

Mais informações sobre a obra de Márcia X visite o site pessoal da artistahttp://marciax.uol.com.br/mxText.asp?sMenu=1&sText=47

Author: Beatrix