Cantinhos acolhedores – Tasca e Hospedaria Viúva Negra 

Cantinhos acolhedores – Tasca e Hospedaria Viúva Negra 

A busca por um pouso durante uma viagem pode trazer surpresas agradáveis com locais maravilhosos que guardamos em um cantinho especial da nossa memória. Às vezes até almejamos fazer de novo aquela viagem, apenas para visitar mais uma vez o lugar que nos deixou uma boa impressão, seja pela comida, pelo atendimento ou mesmo pelas lembranças vividas ali, que nos deixaram saudades. Claro que também há lugares que são o oposto de tudo isso, que gostaríamos de nunca ter entrado, nunca ter estado lá, de poder apagar aquela experiência da memória. Dessa vez falarei de um lugar que deixou impressões fortes. Às vezes a lua, as estrelas e o ar da noite são as melhores escolhas para o viajante cansado. 

A primeira indicação que tive sobre a Tasca e Hospedaria Viúva Negra foi de que encontraria um quarto limpo e uma comida barata, e que se não tivesse grandes pretensões ficaria satisfeita. Isso me pareceu adequado e depois de dias de viagem sem ter uma cama para dormir era mais que satisfatório, era quase um sonho na terra. Mas rapidamente esse sonho se tornou um pesadelo. 

Naturalmente uma hospedaria que tenha também uma tasca não é o lugar mais silencioso do mundo, mas chega a ser tolerável quando se está cansado e com muito sono. 
Ao entrar no lugar àquela noite a procura de um quarto não foi possível evitar notar o estranho comportamento de alguns fregueses. Jamais me esquecerei de um que gritava a plenos pulmões – OLHEM UNICÓRNIOS… Eu quero um. 

Enquanto isso, dois brigavam por causa de chá e um grupo discutia quem ficaria com o unicórnio caso o pegassem. Não faltavam bêbados abusados, que diziam bobagens às moças que entravam. 

Nada disso, no entanto, parecia tão díspar de uma taverna de beira de estrada, mas eu esperava ter um pouso mais tranquilo que aquele. A tasca e hospedaria era bem localizada, ficava perto da praça principal da cidade de Leiria, onde eu me encontrava. Meu cansaço me impediu de reparar inicialmente na decoração do lugar. Tudo era muito escuro, havia cortinas nas cores preta e vermelha. Ao contrário do que me disseram não era tão limpo, pois vi uma teia de aranha enorme na garrafa de vinho que me foi trazida. Ao ver aquilo revolvi pedir outra bebida, pedi um chá e uma fatia de pão. A dona da tasca, uma jovem morena e muito bonita, mas de expressão carrancuda, me olhou como se desejasse minha morte, mas nada disse, e logo fui servida do que pedi em substituição ao vinho. Enquanto entornava a xícara fumegante, lembrei-me do unicórnio que os bêbados viram à janela. Não vi unicórnios àquela noite, mas meu sono foi repleto de pesadelos monstruosos, ouvia barulhos estranhos no quarto ao lado e senti meu estômago doer como se fosse morrer. Acordei na manhã seguinte com um gosto horrível em minha boca. Levantei-me sentindo-me fraca e cansada. Não quis tomar o desjejum, paguei minha estadia e tomei a estrada, preferindo comer alguma ração de viagem. 

A tasca foi criada no dia dezenove de fevereiro de 1462, segundo a proprietária, Claurie, “para ter um lugar aonde poderia beber sossegada, longe de ‘idiotas’, assim como ela titula quem não suporta.” 

Não gosto de ser injusta, então, procurei outros hospedes que estiveram na Viúva Negra e perguntei-lhes o que acharam da experiência. Ao ouvir seus depoimentos eu confesso que me senti sortuda e abençoada, pois ao menos eu consegui escapar. Ainda acredito que há um pouco de exagero nas impressões, talvez o que torne as impressões tão fortemente negativas seja a má impressão que a dona do local causa nos clientes, mas o que achei mais curioso é que apesar das críticas negativas os clientes sempre voltam, e continuam frequentando o lugar. Eu mesma já tive o desejo de voltar, ainda que fosse para descobrir se minhas impressões negativas não foram fruto apenas de cansaço e de uma indisposição ocasional. 

Alguns relatos beiram a fantasia, mas os reproduzo aqui para reflexão. 

“Eu vim de passeio até a cidade de Leiria, ouvia falar muito da tasca Viúva negra e da sua dona Clarie que vive a tratar mal o povo e amedrontar com ameaças de morte. A tasqueira Clarie parece mesmo uma louca, pois vende pão envenenado a preço muito baixo para o povo comprar, comi no primeiro dia um pão e fiquei com grandes dores de barriga, acabando por vomitar horas mais tarde no lago. A tasca serve peixe com ervas que dão alucinações a preço mais barato da cidade. Apesar dos desacatos e da comida amaldiçoada, a tasca serve muita cerveja e o povo bebe muito para conseguir aturar a tasqueira. Desafio o povo corajoso do reino a conhecer a tasca Viúva Negra.” 

Declarou o senhor Actoze, que apesar da experiência tão ruim, continua a ser um assíduo frequentador. Ao que parece eu não fui a única a ser afetada pelo pão da Viúva Negra. 

Também bastante curioso o relato do senhor David, morador da cidade de Leiria e frequentador da Tasca e Hospedaria Viúva Negra. O senhor David também fez reclamações sobre o atendimento, e parece que as referências ao mau humor da senhorita Clarie são unanimes. 

“A dona insultou-me e me agrediu. Pensei que estivesse num mau dia e voltei lá outras vezes, mas sempre foi igual, ela chama-me de gordo, algo que é uma mentira clara. O serviço é então muito mau. Quanto aos produtos, ela serve pão envenenado, e ela própria admite, só não entendo como ninguém faz nada, aquilo deveria estar fechado. Além de servir com produtos maus e ser mal humorada ainda fica sempre bêbada o que falta de profissionalismo e ainda exige que lhe paguem bebidas. Só posso dizer que não quero lá voltar mais e espero que ninguém o faça, pois não é seguro.” 

O senhor David não foi o único a comentar sobre o mau humor da proprietária. Isso é bastante comentado na cidade de Leiria, pelo que pude averiguar. 

 

A senhorita Talita, uma entusiasta da dança, declarou que ficou bastante constrangida quando foi proibida de dançar na tasca, mas mesmo assim não deixou de frequentar o lugar. 
“Ela (Clarie) detesta que dancem na tasca, mas eu não sabia dessa regra, porque era cliente e geralmente os clientes que mandam, porém ela me expulsou, mesmo assim voltei dançando e ela me expulsou de novo, até que desisti de dançar.” 

Quanto aos quartos, a experiência da senhorita Talita reforça minha impressão inicial. 

“O quarto em que eu dormi tinha uma boa cama, mas ouvia uns barulhos e não consegui dormir muito bem. Era boa para deitar e não para dormir. É um pedaço do inferno, na cidade do paraíso.” 

Sobre as explicações para continuar frequentando o lugar ela destaca. 

“A bebida é barata então, depois de bêbado, dá para passar despercebida alguma coisa.” 

Será esse realmente o segredo da Viúva Negra ainda manter suas portas abertas? 

Parece que nem a sua proprietária, a senhorita Clarie sabe ao certo o motivo, mas também não está interessada em descobrir. 

“Não levo ninguém a Tasca Viúva Negra, vai lá quem quiser. Só não espere ser bem recepcionado, principalmente se  eu não for com a sua cara. Se entrou consuma alguma coisa, não vou suportar olhar a sua cara de graça. Mas Já aviso. Dizem que a Tasca é o Portal para o inferno. E eu lhe digo, todo paraíso precisa de um pouco de inferno.” 

Essa foi mais uma crônica da série “Cantinhos acolhedores”, em que pretendo contar detalhadamente as experiências boas e ruins que vivenciei em hospedarias de Portugal. 

Publicado em 16/08 1462

Comments are closed.