Memórias do convento – o primeiro assassinato

Memórias do convento – o primeiro assassinato

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Beatrix viveu entre os dois e os nove anos de idade em companhia do irmão, que de fato foi a única família que ela chegou a conhecer, uma vez que a mãe morreu pouco tempo depois de seu nascimento e o pai partiu com a filha mais velha Elizabeth para a Irlanda, deixando seus negócios em Montemor aos cuidados do filho mais velho, William.

A diferença de idade entre Beatrix e o irmão era bastante acentuada e por isso era comum que achassem que eles fossem pai e filha e não que fossem irmãos.  Ele de fato se esmerava como um pai, nos cuidados com a irmã e dava a ela todo o carinho e atenção que o verdadeiro pai nunca quis ou foi capaz de dar. Assim foi com pesar que William recebeu a carta de seu pai, Theodore, ordenando que viajasse para a Irlanda, e que encerrasse todos os seus negócios em Portugal. Essa notícia deixaria William feliz caso não fosse um detalhe que o pai fizera questão de enfatizar. Apenas William deveria seguir, pois Beatrix deveria ser deixada em Portugal, internada em um convento de freiras, pois Theodore não desejava vê-la, uma vez que considerava a criança culpada pela morte da esposa Ruth, que morrera de parto.

Assim, foi com pesar no coração, que William levou Beatrix até o convento Nossa Senhora dos Anjos e lá a deixou aos cuidados das freiras. A despedida foi triste, pois William não teve coragem de mentir para a irmã.

– Você já está crescida e deve entender. Eu preciso ir, pois nosso pai precisa de mim, mas não posso levar você. Você ficará aqui e vai buscar fazer sua vida. Eu deixei a nossa casa e nosso pedaço de terra arrendados e é desse arrendamento que você vai tirar seu sustento e pagar sua morada aqui no convento. Se quiser tornar-se freira, na idade certa poderá vender a propriedade e assim pagar seu dote. Se quiser casar a propriedade também servirá de dote. Você está por sua conta agora. Tenha juízo e que Jah te abençoe. – Ele disse e abraçou a menina.

Beatrix fez um esforço para não chorar quando abraçou o irmão. Ela sabia que ele também estava se esforçando e que era difícil dizer que o verdadeiro motivo era que o pai não a queria por perto. Só lhe restava aceitar.

– Está bem, mas, por favor, se puder, venha me ver um dia. Nosso pai não precisa saber. Sei que ele não gosta de mim, mas para mim, você é meu pai.

Ela disse em despedida, e seu irmão William virou o rosto para que ela não visse as lágrimas. E assim ele a deixou.

Os primeiros meses foram difíceis, pois Beatrix não era muito disciplinada, e o irmão fazia todas as suas vontades. Ela também ficava com o trabalho mais pesado, praticamente o mesmo que era dado as órfãs que o convento recebia, pois o dinheiro que o pai de Beatrix deixou do arrendamento de suas propriedades era pouco, comparado com o que pagavam as famílias de outras alunas do convento, que provinham de famílias abastadas. O convento acolhia jovens de boas famílias e algumas órfãs como prática de caridade.  As moças de família rica tinham bons quartos e recebiam certa liberdade para decorá-los e até receber visitas. Suas tarefas eram leves e a maior parte delas estava ligada ao preparo para que se tornassem jovens de fina educação, para atenderem aos esposos e exibirem-se socialmente como boas esposas e anfitriãs. As órfãs deviam dominar as prendas do lar, aprender a fazer quitutes e a bordar, a costurar e a tecer, para tornarem-se boas criadas e cozinheiras. A maioria no entanto, estava ali para seguir a vida religiosa e tomar votos. Era a única opção para as jovens que queriam estudar e livrar-se do jugo de um matrimônio não desejado. Para algumas não era uma escolha, mas uma imposição da família. Para as famílias o matrimônio era mais interessante e lucrativo, mas quando as jovens perdiam sua honra ou não eram tão belas a ponto de atraírem pretendentes, esse era considerado um destino honrado e menos vergonhoso. Havia é claro as que possuíam uma vocação sincera e estavam lá de livre escolha. Era sem dúvida uma diversidade de destinos femininos reunidas sob um único teto, e Beatrix não se encaixava em nenhum deles.

Lá as jovens também aprendiam a temer a Jah e a seguir seus preceitos, tornarem-se virtuosas e tementes aos seus maridos e senhores.

Apesar de não gostar das restrições que sofria e nem da forma como lhe exploravam, Beatrix levava sua rotina, tentando tirar dali algo de bom para seu futuro. Quando não estava trabalhando na tecelagem do convento estava na cozinha preparando doces que eram vendidos sob encomenda.  Seus momentos de folga eram para ler e estudar.

Às vezes ela tinha vontade de fugir, e se exasperava com aquela rotina, pois sua liberdade era inexistente e não havia mais espaço para as coisas que tanto gostava, como atirar com arco e flecha, brincar de luta de espadas, desenhar ou tocar flauta e alaúde. Todas essas eram coisas que aprendeu com o irmão, prazeres simples que lhe foram tirados. A única presença de música que era permitido era o cantochão que as internas entoavam durantes as cerimônias litúrgicas que eram tantas.

Ela às vezes pensava que logo o seu irmão apareceria com a notícia de que ele a viera buscar, que o pai se arrependia em odiá-la e que a queria novamente perto de si. Mas esse dia nunca chegou.

Uma noite no convento, ela teve um pesadelo, e nesse sonho mau, ela viu seu irmão morrer em um naufrágio, quando vinha busca-la. Ela acordou assustada e chorando, e como não conseguiu mais dormir, buscou uma caneca de água fresca, na moringa que havia no dormitório, mas ela estava vazia. Então, ela tomou uma vela e foi até a cozinha do convento, onde sabia que havia sempre uma moringa de água fresquinha. Antes de chegar à cozinha ela ouviu barulho, e ficou assustada. O convento era um lugar onde havia muito dinheiro, tanto vindo das ricas bolsas dos pais das jovens abastadas que ali viviam quanto de doações e da venda de doces conventuais. Como ali só havia mulheres, algum bandido velhaco poderia bem achar que era um bom alvo para um roubo.

Temerosa que fosse esse o caso, Beatrix dirigiu-se silenciosamente até a cozinha, onde tomou uma faca afiada.

O barulho feito pelo ladrão, no entanto acordou uma das freiras, que dormia perto do escritório da Madre Superiora, onde o bandido buscava o dinheiro guardado displicentemente em uma caixa de madeira. A Madre era inocente ao ponto de achar que ninguém ousaria roubar de um convento, por temor a Jah.

 A jovem freira levantou-se, foi até a porta da sala e a abriu-a deparando-se com a figura do bandido. Antes que ela pudesse gritar ele agarrou a freira e a dominou, encostando uma faca em sua garganta.

– Se gritar rasgarei sua garganta, irmã.

Ele disse sussurrando em voz baixa, indicando para a freira que não teria piedade dela apesar do hábito. O hálito do homem tinha um forte cheiro de cebola e alho estragados vindo dos dentes podres, ele inteiro cheirava mal, e aquela proximidade dava ânsias de vômito à religiosa.

Encarando-o nos olhos ela o reconheceu. Já o vira dormir no albergue do convento dos padres, onde as freiras iam para preparar e servir sopa aos mendigos que recebiam assim a caridade de uma refeição quente.

Ele não cobrira o rosto e notou que fora reconhecido. Se ele a deixasse viva, ela poderia denuncia-lo. Assim, o destino da freira já estava traçado, e ele a mataria de um jeito ou de outro.

Mas antes de matar a freira e sair com o saco de moedas e alguns castiçais, o homem resolveu aproveitar aquela situação, pois se apercebeu que a freira era ainda moça e tinha as carnes apetitosas. Há muito que ele não se deitava com mulher, pois nem mesmo as meretrizes o aceitavam, tão sujo e sem dinheiro.

Enquanto orava baixinho a Jah, pedindo que o homem tivesse misericórdia e a deixasse, ela sentia o aço frio do punhal em seu pescoço, e a mão violenta erguendo seu hábito e apalpando grosseiramente seu corpo. De calça arriada o homem preparava-se para violar a freira.

Foi essa cena que a menina Beatrix se deparou, ao chegar à porta escancarada e se deparar com a irmã Benedita com a roupa levantada e o homem em cima dela com uma faca em seu pescoço.

Não houve tempo para reação do mendigo, nem grito da freira. Beatrix silenciosa e em um gesto firme cravou a faca na nuca do homem, que caiu sem saber o que lhe atingiu. Um golpe que não possuía força, mas que foi certeiro em um ponto delicado e fatal.  O homem tocou o chão já morto, sem receber a extrema unção, nem pedir perdão dos pecados. Ele não era digno da misericórdia de Jah. Foi o que aquela menina de dez anos pensou.

Depois disso, houve o grito histérico da freira e o local se encheu de outras freiras e internas. A faca ensanguentada ainda estava na mão de Beatrix e ela só a soltou quando a Madre ordenou que fizesse em nome de Jah. Depois daquele seu primeiro assassinato ela parecia alheia ao que estava a sua volta. Recolheu a faca do chão, levou-a a cozinha e a lavou. Tomou a água que inicialmente procurava, bebendo-a em uma caneca, e foi se deitar como se nada tivesse acontecido.

Na manhã seguinte ela ainda se recusava a falar do assunto. Era como se fosse um pesadelo, e nada mais. As irmãs ainda abaladas resolveram respeitar o seu silêncio.

A Madre deixou um pouco e lado a avareza e contratou empregados para ajudarem no serviço e alguns guardas para vigiarem o convento a noite, para garantir a segurança das religiosas, pois as famílias pressionaram e ameaçaram retirar suas doações e enviarem as filhas para outros conventos, caso nada se fizesse.

Daquele dia em diante as coisas mudaram, o tratamento que a menina Beatrix recebia não era mais o mesmo, ela agora contava com certas regalias, e assim foi até que ela deixasse o convento.

Nesse dia, a irmã Benedita agradecida, deu-lhe um abraço e sussurrou em seu ouvido.

– Obrigada, criança.

Beatrix não disse nada, apenas se afastou dela, pegou seu alforge e partiu rumo a sua vida, que ia tecer.

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